Dinheiro do contribuinte está ajudando a alavancar uma das atividades produtivas mais propensas ao desmatamento no Brasil, segundo estudo. Na última década, os governos estaduais e federal abriram mão de R$ 12,3 bilhões por ano para estimular a criação de gado e a indústria de carne no Brasil. Retorno em impostos, porém, foi de R$ 15,1 bilhões por ano.
Fazendo a conta, quer dizer que, de cada R$ 5 arrecadados em impostos pelo setor de carne bovina, apenas R$ 1 efetivamente retorna para a sociedade – o restante é devolvido em benefícios aos produtores.
A pegada de carbono acumulada em uma década (2008-2017) pela cadeia no Brasil passa de 25 kg de CO²e para 78 kg de CO²e por quilo de carne, quando o desmatamento é levado em consideração. Na Amazônia Legal, a pegada de carbono se eleva 8,5 vezes quando a floresta derrubada entra na conta: de 17 kg para 145 kg de gases nocivos por quilo de carne.
Segundo o levantamento, sistemas integrados lavoura-pecuária, no qual o produtor cultiva o campo em períodos intercalados com o pasto, revelam pegada de carbono negativa – ao invés de emitir os gases, eles os sequestram. Entretanto, apenas 4% dos pastos na Amazônia utilizam sistema integrado.
Um de cada dez bifes que chegam ao prato do brasileiro foi pago pelo dinheiro do contribuinte. A cadeia da carne bovina no país é uma das atividades produtivas mais subsidiadas pelos governos estaduais e federal – que ofereceram, em média R$ 12,3 bilhões ao ano para o setor em incentivos fiscais, crédito facilitado e até anistias de dívida.
Embora seja uma indústria bilionária – no último dia 25 de março, a JBS reportou lucro de R$ 6 bilhões em 2019, o melhor resultado da sua história –, o retorno que dá aos cofres públicos é pequeno, se comparado aos incentivos governamentais: em média, R$ 15,1 bilhões ao ano.
Fazendo a conta, quer dizer que, de cada R$ 5 arrecadados em impostos pelo setor de carne bovina, apenas R$ 1 efetivamente retorna para a sociedade – o restante é devolvido em benefícios aos produtores.
O cálculo levou em consideração a década entre 2008 e 2017. Porém, entre 2015 e 2016, a arrecadação foi inferior ao que governos estaduais e a União ofereceram em benefícios para o setor.
Essas são algumas das conclusões do estudo “Do pasto ao prato: subsídios e pegada ambiental da carne bovina”, um esforço do Instituto Escolhas que trouxe à luz dados inéditos para o Brasil.
“O poder público investiu na cadeia da carne R$ 123 bilhões em uma década. Esse é um resultado completamente novo, que não existia nem para essa cadeia e nem para outras no país”, assinalou, em entrevista ao site do Escolhas, o economista Petterson Molina Vale, coordenador a parte econômica do estudo. A Mongabay enviou ao pesquisador perguntas sobre o trabalho, mas ele preferiu não responder.
Se a produção de carne no Brasil se apoia sobre um confortável colchão de recursos públicos, ela deixa como rastro o comprometimento do meio ambiente, sobretudo em áreas da Amazônia e do Cerrado brasileiro.
O Instituto Escolhas constatou que a pegada de carbono da carne nos estados da Amazônia Legal é seis vezes superior ao medido em outros estados da federação. Isso quer dizer que o sistema de criação e industrialização, quando ocorre nesta parte do país, emite seis vezes mais gases de efeito estufa do que em outras regiões.
Na região do Matopiba (na divisa de Maranhão, Piauí, Tocantins e Bahia), onde está sendo aberta uma das principais fronteiras agrícolas brasileiras no momento – e cuja vegetação é um mosaico que inclui floresta amazônica e savanas do Cerrado –, a contaminação da atmosfera pela cadeia do gado é oito vezes maior do que no restante do Brasil.
“É a maior emissão relativa por quilo de carne produzido. Embora, em termos absolutos, a Amazônia emita muito mais porque é mais extensa e a vegetação derrubada contém quantidade muito maior de carbono”, assinala o biólogo Roberto Strumpf, coordenador da área ambiental do estudo.
A indústria da carne é uma das mais propensas ao desmatamento. Três grandes frigoríficos do país respondem por 42% dos abates na Amazônia Legal brasileira e, no ano passado, o Ministério Público Federal disse, que mesmo com os acordos de responsabilidade feitos com a indústria e o varejo, é impossível assegurar carne livre de desmatamento quando os rebanhos estão em áreas de floresta.
O próprio Instituto Escolhas, em estudo anterior, havia verificado que uma política de desmatamento zero poderia não impactar a bovinocultura e nem impedir sua expansão, desde que fossem aproveitadas as terras já desmatadas e seguidas as melhores práticas agrícolas.
“Se já existe estoque de terras que podem ser usadas para aumentar a produção, os subsídios não estariam servindo de estímulo para o desmatamento?”, questionam os pesquisadores no sumário executivo do levantamento “Do pasto ao prato”.
Os resultados, entretanto, não permitem afirmar que o dinheiro público esteja financiando derrubadas, embora a equipe sugira que “os subsídios poderiam ser adotados para estimular práticas produtivas mais sustentáveis ou produtos mais saudáveis”.
“Para concluir que parte do dinheiro do contribuinte financia o desmatamento, seria preciso aprofundar o levantamento. Mas agora sabemos que a cadeia da carne depende muito de recursos públicos e também sabemos o que ela entrega em termos ambientais, então é possível debater que tipo de produção nós queremos financiar”, sugere Jaqueline Ferreira, gerente de projetos e produtos do Instituto Escolhas.
O estudo do Escolhas considerou toda a trajetória da cadeia da carne para os cálculos da pegada ambiental – que incluem o consumo de água e as emissões de gases de efeito estufa por quilo de carne produzida na Amazônia Legal, Matopiba e no restante do Brasil. O mesmo foi feito para o cálculo dos subsísios concedidos, que consideram governos estaduais e a União.
Foram contabilizados dados envolvendo os insumos à produção, informações sobre a cria e engorda de animais, incluindo o manejo do solo e a remoção de vegetação natural, uso de maquinário agrícola e também o processamento da carne (abates e industrialização) e o caminho até o consumidor, seja no mercado interno ou na exportação.
“A cadeia da carne é fundamental. Gera muita receita e é importante também do ponto de vista cultural e da ocupação produtiva. Mas é hoje o principal vetor do desmatamento, especificamente na Amazônia. Estamos propondo uma abordagem econômica para debater uma das grandes questões ambientais e tentar de alguma forma avançar sobre os entraves para o desenvolvimento sustentável”, justifica Ferreira.
Desmatamento em 2019 coloca em risco uma década de redução de emissões na Amazônia
Sem surpreender os pesquisadores, o estudo do Instituto Escolhas comprovou que, entre todas as etapas da produção mapeadas, o que mais pesa no cálculo da pegada de carbono da cadeia da carne é mesmo o desmatamento.
Eles compararam cenários em três grandes regiões do Brasil (Amazônia Legal, Matopiba e demais estados em conjunto; e ainda a média nacional), considerando apenas emissões próprias dos rebanhos e do pasto e também essas duas variáveis mais as áreas de vegetação derrubada de acordo com os sistemas do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe).
O resultado é que, em todo o Brasil, a pegada de carbono acumulada em uma década (2008-2017) passa de 25 kg de CO²e por quilo de carne para 78 kg de CO²e/kg, quando o desmatamento é levado em consideração. (CO²e é a medida que os cientistas usam para calcular as emissões de gases de efeito estufa, que são todos convertidos em uma medida de carbono). Na região da Amazônia Legal, a pegada de carbono se eleva 8,5 vezes quando a floresta derrubada entra na conta: de 17 kg de CO²e/kg para 145 kg de CO²e/kg.
A média dos dez anos esconde um dado relevante: as emissões estão caindo mesmo dentro da Amazônia. Variaram de 344 kg de CO2e por quilo de carne em 2008 para 66 kg CO2e/kg em 2017, representando uma queda de 81% ao longo da década.
O problema é que o levantamento chegou apenas ao ano de 2017. “Todos os dados do Inpe de 2018 e 2019 apontam para um aumento substancial do desmatamento. Essa ressalva é bem importante pois, se continuarmos nesse retrocesso ambiental, todo esse ganho pode ser perdido, o que vai impactar na reputação do setor e pode incorrer em barreiras não tarifárias para a carne brasileira”, alerta o biólogo Roberto Strumpf.
O estudo mediu ainda a pegada hídrica da pecuária nacional. A constatação, nesse caso, é boa: a cadeia do gado brasileira consome em média 64 litros de água por quilo de carne produzida no país, considerando a década entre 2008 e 2017. “É bem menos do que em outros países”, explica o pesquisador. Importante salientar que essa é a chamada “pegada azul”, que se refere ao uso de águas subterrâneas ou de reservatórios que podem sofrer competição com outras atividades produtivas ou até com o consumo humano.
Como o setor se abastece majoritariamente de gado criado a pasto, o maior volume de água que incide sobre a produção é a chuva, necessária para deixar o campo fresco. É a pegada verde, que no caso brasileiro é alta, mas não compromete sistemas hídricos e tem baixo impacto ambiental, segundo Strumpf.
Mas, com as mudanças climáticas em curso, um alerta se acende para a produção no Centro-Oeste, onde se concentra uma grande parte do rebanho brasileiro. O regime de chuvas nessa região depende muito da Amazônia, que caminha para um processo de savanização caso não se interrompa a atual trajetória de desmatamento. Ou seja, em um cenário de seca, a atividade econômica pode ser comprometida.
Manejo adequado faz da bovinocultura aliada do meio ambiente
Se por um lado confirma que a maior parte das emissões da cadeia do carbono de fato ocorre “da porteira para dentro”, nas fazendas de gado – sobretudo porque muitas estão em área desmatada –, o estudo também indica um caminho possível para manter a atividade e reduzir o comprometimento do meio ambiente. Segundo o levantamento, sistemas integrados lavoura-pecuária, no qual o produtor cultiva o campo em períodos intercalados com o pasto, ao invés de emitirem carbono para a atmosfera, sequestram os gases de efeito estufa, contribuindo para a saúde planetária.
Na Amazônia Legal, esse formato de bovinocultura teve emissões negativas em todos os anos medidos pela pesquisa – mesmo quando considerados os efeitos nocivos do desmatamento. Entretanto, apenas 4% dos pastos na Amazônia utilizam sistema integrado, embora 35% das áreas pastoris sejam consideradas bem manejadas, que é o estágio anterior ao ideal.
“A capacidade dos solos de remover carbono da atmosfera é algo discutido na academia há algum tempo, mas faltavam dados”, observa Strumpf, que oferece agora à ciência números comparáveis a medições já realizadas, mas contabilizados por região brasileira, o que não existia até então.
O que segue sem ter uma resposta clara é por quantos anos esse sistema de pasto bem cuidado consegue segurar carbono ao invés de lançar o gás na atmosfera: “O comportamento do solo com o carbono é como o de uma esponja na água. Se estiver seca, a capacidade dessa esponja de sugar a água é enorme, mas vai chegar um ponto em que ela fica saturada. É muito semelhante ao solo, só que a gente não sabe quanto tempo ele consegue se manter absorvendo”, argumenta Strumpf.
É por conta das pastagens degradadas que o Matopiba saiu campeão no levantamento da pegada de carbono: 48% do pasto nessas áreas tem essa característica. Diante de um cenário tão heterogêneo da pecuária no país, os pesquisadores avaliaram que era preciso lançar um questionamento, registrado no sumário executivo do estudo: “Como a pecuária brasileira abriga produtores eficientes e outros de baixíssima produtividade, é válido questionar se o dinheiro público não estaria contribuindo para manter produtores que não teriam condições de competir em condições normais de mercado em razão da sua ineficiência e pouca lucratividade?”. E ainda: “Quais os gargalos a serem superados por meio de políticas públicas para que essas práticas ganhem escala?”
Programas de fomento à pecuária não incluem sustentabilidade como critério
Os dados do estudo do Instituto Escolhas evidenciam o fato de que os maiores programas de fomento à pecuária no Brasil – o Plano Safra e o Pronaf – não incluem critérios de sustentabilidade na hora da avaliação da concessão de crédito subsidiado. Os pesquisadores assinalam que, se houvesse “exigência de compromissos e metas que tornassem a produção do setor ambiental e economicamente mais eficiente, reduzindo emissões e melhorando a produtividade”, o cenário poderia ser outro.
Uma saída, neste caso, poderia ser condicionar os empréstimos públicos ao chamado programa ABC, do Ministério da Agricultura, que estimula atividades agrícolas e pecuárias com baixa emissão de carbono. “Além disso, os mecanismos que os bancos usam para monitorar a sustentabilidade são muito frágeis, quando não inexistentes”, acrescenta Jaqueline Ferreira, gerente de projetos e produtos do Instituto Escolhas.
Outro problema, na opinião da executiva, é o lobby que o setor do agronegócio nacional exerce sobre os governantes. “O governo federal não concede anistias de uma dívida olhando a sustentabilidade, mas sim por pressão política”, lamenta ela, que salienta que o estudo está sendo distribuído a parlamentares e tomadores de decisão para subsidiar debates sobre o tema.
Imagem do banner: Marizilda Cruppe/EVE/Greenpeace.