O Brasil começou a década comemorando recordes de redução nas taxas de desmatamento na Amazônia: o pico de 27.772 km2 registrado em 2004 caiu para 4.571 km2 em 2012, graças a mudanças na política ambiental lideradas pela ministra Marina Silva e ao pacto entre as empresas de reduzir o cultivo de soja na região.
Sob o mandato de Dilma Rousseff, e depois de Michel Temer, as taxas de desmatamento voltaram a subir, até dar um novo salto em 2019, durante a presidência de Jair Bolsonaro – a perda registrada de floresta foi de 9.762 km2, a pior da década.
Entre 2011 e 2016, também durante Dilma e Temer, a Amazônia se viu palco de diversos projetos hidrelétricos controversos, entre eles a construção de Belo Monte, duas grandes usinas no Rio Madeira e ainda várias barragens no rio Teles Pires. O escândalo de corrupção da Lava Jato e a crise econômica terminaram por frear a construção de hidrelétricas.
A década termina com a consolidação do poder ruralista no Brasil, primeiro com a anuência de Temer, depois com o apoio declarado de Jair Bolsonaro. As políticas anti-ambientais e anti-indígenas de Bolsonaro são uma marca de seu governo, tendência que deve continuar em 2020.
Em 2010, havia motivos fortes para se preocupar com o futuro da Amazônia, a maior floresta remanescente do mundo. Imensos projetos hidrelétricos estavam em andamento; o agronegócio, particularmente a criação de gado, estava se embrenhando na floresta; e o plantio de culturas geneticamente modificadas havia sido autorizado, permitindo uma rápida expansão da soja em condições climáticas antes desfavoráveis. Menos áreas protegidas eram criadas e a demarcação de terras indígenas acontecia a passos de tartaruga.
Mesmo assim, havia espaço para esperança. Os ambientalistas estavam animados com a redução da taxa anual de desmatamento para cerca de um quarto em relação a níveis anteriores – de 27.772 m² em 2004 para 7 mil km² em 2010. Desmatar uma área de floresta tropical equivalente a quase cinco vezes o municípo de São Paulo por ano poderia parecer assustador, mas pelo menos a tendência era de redução. E a escala do desmatamento não parecia representar um risco iminente à existência da floresta. A década que se iniciava, alguns diziam, era até promissora.
Por que o desmatamento caiu na Amazônia, e depois cresceu
Para entender o que aconteceu no país na última década, é necessário recuar um pouco mais no tempo. Em 2003, o presidente recém-eleito Luiz Inácio Lula da Silva nomeou Marina Silva como ministra do Meio Ambiente. Conhecida por seu comprometimento com a causa ambiental, Marina nasceu numa família de seringueiros do Acre. Embora a taxa de desmatamento tivesse crescido nos dois primeiros anos do governo Lula, ela caiu durante o mandato de Marina; e, até 2012, pouco depois de ela deixar o cargo, estava em 4.511 km² por ano – um sexto do total de 2004.
A maior parte do sucesso de Marina foi devida à sua estratégia de conter a pressão desenvolvimentista, criando áreas protegidas em torno de grandes projetos de infraestrutura e da expansão do agronegócio. Ambientalistas criaram planos para grandes unidades de conservação, que foram em princípio obstruídos pelo Congresso. A bancada ruralista – hoje dominante no governo – já era poderosa, e formava um grande bloco no Legislativo, criando problemas para Lula.
Então, houve o assassinato da freira norte-americana Dorothy Stang, em janeiro de 2005.
Irmã Dorothy, como era chamada, lutara destemidamente contra madeireiros ilegais, grileiros e fazendeiros de gado que destruíam a floresta e ameaçavam o sustento de populações rurais na região amazônica. Seu assassinato brutal foi um vexame político para o governo. Respondendo à indignação internacional, Lula tirou da gaveta os planos de Marina para proteger grandes extensões da Floresta Amazônica.
Irmã Dorothy, como era chamada, lutara destemidamente contra madeireiros ilegais, grileiros e fazendeiros de gado que destruíam a floresta e ameaçavam o sustento de populações rurais na região amazônica. Seu assassinato brutal foi um vexame político para o governo. Respondendo à indignação internacional, Lula tirou da gaveta os planos de Marina para proteger grandes extensões da Floresta Amazônica.
Poucos dias depois do assassinato da irmã Dorothy, Lula, ao lado de Marina, anunciou a criação de um mosaico de 8,3 milhões de hectares de áreas protegidas no sul da Bacia Amazônica, entre os estados do Pará, do Mato Grosso e de Rondônia – um bloqueio de conservação contra a invasão do agronegócio.
O mosaico, junto com outras medidas do governo, certamente contribuiu para o declínio do desmatamento. Mas um motivo mais prosaico – uma pausa no boom das commodities em 2004 – também teve um papel importante. O fator subjacente que incentivava o desmatamento na Amazônia era a expansão da produção de soja pelo seguinte processo: especuladores desmatavam a floresta, vendiam as terras para criadores de gado que, depois de alguns anos, repassavam-nas para produtores de soja que criavam lavouras imensas na Amazônia. A queda nos preços da soja, portanto, pode ter contribuído para o declínio do desmatamento.
Outro fator também foi a disponibilidade de áreas derrubadas. Após o pico de desmatamento em 2004, o gado e o agronegócio não precisavam de mais terras. Esse período de respiro incentivou ONGs a influenciarem companhias internacionais de commodities a mudarem seu comportamento. Primeiro, em 2006, veio a moratória da soja, segundo a qual as empresas exportadoras concordavam em não comprar soja cultivada em áreas recém-desmatadas de Floresta Amazônica. Depois, em 2009, veio a moratória da carne. Embora falhas estruturais tenham permitido aos fazendeiros encontrar caminhos para driblá-las, as moratórias refletiram uma preocupação crescente dos consumidores com o desmatamento na Amazônia.
Lula e Dilma: hidrelétricas e mais hidrelétricas
Então vieram os retrocessos. Durante o segundo mandato de Lula (de 2007 a 2010), a economia voltou a se tornar dependente da exportação de commodities, fortalecendo o poder dos ruralistas e encorajando-os a enfrentar os ambientalistas. Mas a inteligência política de Lula encontrou uma forma de mediar o conflito: o presidente aprovava uma grande hidrelétrica na Amazônia para atender aos ruralistas, e depois acalmava os ambientalistas criando mais áreas protegidas.
Sua sucessora, Dilma Rousseff (2010-2016), não tinha o mesmo talento político. Ela continuou com as políticas de Lula mas não fez muitos esforços para agradar os ambientalistas. Tornou-se amplamente rejeitada por conservacionistas, e eventualmente também pelos ruralistas, que mais tarde contribuiriam com sua queda.
Em junho de 2011, Dilma deu início à construção de Belo Monte, a mega-hidrelétrica no Rio Xingu – anunciada então como a terceira maior do mundo. Rhett Butler, fundador da Mongabay, escreveu um artigo na época no qual se mostrava chocado com a decisão do governo, observando que a hidrelétrica deslocaria 16 mil pessoas e inundaria 40 mil hectares de floresta.
“Quando dou palestras, uso o Brasil como exemplo de um país que está liderando a transição para uma economia mais justa e sustentável”, ele escreveu. “Com Belo Monte, não tenho mais certeza de que o Brasil é o modelo a seguir.” De fato, Belo Monte – com o desmatamento, a devastação de habitats naturais e a destruição de comunidades indígenas e tradicionais, além da corrupção – foi um anúncio do que estava por vir.
Annual rate of deforestation in Brazil’s Legal Amazonia from 1998-2019 in square kilometers. Image by Mongabay / data by INPE.Em 2016, os principais analistas concluíram que Belo Monte era um projeto ruim “do ponto de vista econômico, fiscal, ambiental e humano”.
Com o tempo, a escala do dano catastrófico de Belo Monte ficou clara. Dezenas de milhares de indígenas e moradores tradicionais foram deslocados de seu território e perderam seu sustento. A morte de peixes fez com que as populações do Rio Xingu diminuíssem muito. No final de 2019, ficou claro que o próprio futuro da hidrelétrica estava comprometido por causa de secas recorrentes – fenômenos que ocorrem periodicamente há décadas e que deveriam ter sido previstos –, enquanto a construção da represa foi até mesmo considerada falha, com perigosos erros de projeto.
Belo Monte não foi um caso isolado. Numa série de grandes projetos de desenvolvimento, Lula e Dilma deram início à construção de duas grandes hidrelétricas no Rio Madeira, próximas à fronteira com a Bolívia. Ambas causaram sérios problemas ambientais e sociais, e continuam causando. Eles também construíram quatro hidrelétricas no Rio Teles Pires, deixando de consultar os povos indígenas, como é exigido por tratado internacional, e permitindo até mesmo a dinamitação de corredeiras tidas como sagradas para o povo Munduruku.
Quando promotores do Ministério Público Federal (MPF) iam aos tribunais em defesa dos grupos indígenas para impedir as represas do Teles Pires, com frequência ganhavam, mas o governo usou um instrumento jurídico altamente questionável – a chamada “Suspensão de Segurança” – para conseguir o que queria. Por meio desse instrumento, um legado da ditadura militar, o governo pode adiar o cumprimento de qualquer decisão de um tribunal inferior até a conclusão do que costuma ser um longo processo legal, simplesmente declarando uma ameaça à “segurança nacional”. Na prática, isso significa que a decisão de impedir a construção das represas foi revertida.
Ainda assim, o governo e as construtoras nem sempre saíram ganhando. Os Munduruku e outros grupos indígenas, junto com comunidades tradicionais, lutaram com ferocidade contra as hidrelétricas. Em agosto de 2016, depois de uma persistente pressão indígena, o Ibama negou a licença para a construção de outra usina gigante no Rio Tapajós: o projeto São Luiz do Tapajós, com capacidade de 8 mil megawatts. Nenhum governo subsequente tentou reverter a decisão.
Temer enfraquece conquistas socioambientais
Foram os grandes projetos de hidrelétricas financiados pelo governo que, ao final, ajudaram a derrubar Dilma e o Partido dos Trabalhadores, levando a extrema-direita ao poder.
As investigações da operação Lava Jato descobriram que o PT vinha administrando um esquema gigante de propina envolvendo a Petrobras e grandes construtoras. O esquema: construturas como Odebrecht e Andrade Gutierrez ofereciam contribuições vultosas ao PT e outros partidos em troca da construção das hidrelétricas e de uma variedade de contratos de obras. A Lava Jato e a indignação popular com a corrupção acabaram levando ao impeachment de Dilma, em agosto de 2016, e sua substituição por Michel Temer.
Temer, cuja taxa de aprovação nunca passou de um dígito, foi facilmente dominado pelos ruralistas. Em meados de 2017, eles já estavam abertamente dando as cartas, ao passo que Temer pedia seu apoio para impedir o Congresso de destituí-lo por conta de um esquema de corrupção envolvendo o frigorífico JBS.
Os ruralistas usaram seu poder para fomentar o agronegócio e reduzir a proteção ambiental, especialmente determinados a enfraquecer os direitos indígenas à terra. Os ruralistas há muito reclamam do fato de os povos indígenas ocuparem 12% do território, enquanto representam apenas 0,5% da população. Ignorando o papel fundamental que as comunidades indígenas desempenham na proteção das florestas, eles afirmam o tempo todo que isso é tremendamente injusto. Mas, com o tempo, ficou cada vez mais claro que sua verdadeira motivação é a ambição pelas terras.
A prioridade dos ruralistas no governo Temer, portanto, foi impedir o lento e meticuloso processo de demarcação de reservas indígenas, em andamento desde a implantação da Constituição de 1988, por meio da qual os grupos indígenas ganharam reconhecimento formal das terras que ocupam.
A estratégia dos ruralistas não era apresentar projetos de lei no Congresso, onde ainda não tinham votos suficientes para sua aprovação, mas usar estratégias indiretas, tais como aceitar uma recomendação feita pela Procuradoria Geral da República de que os órgãos federais deveriam adotar novos critérios, mais rígidos, para reconhecer as terras indígenas, com o objetivo de paralisar o processo de demarcação.
O respeitado jurista Dalmo de Abreu Dallari disse que o novo critério de demarcação tinha como objetivo “extorquir das comunidades indígenas o direito à terra que tradicionalmente ocupavam”.
Temer fez muito mais: lançou uma anistia a multas ambientais, especialmente por desmatamento ilegal. Para a indignação dos ativistas de direitos humanos, ele decretou o enfraquecimento da definição de escravidão, excluindo aqueles que trabalham em condições degradantes e desumanas. Nem tudo, porém, foram vitórias em seu mandato: sua tentativa de abrir a gigante e selvagem Renca (Reserva Nacional de Cobre e Associados), no norte da Amazônia, aos interesses de companhias de mineração transnacionais e canadenses foi derrotada diante da indignação pública nacional e internacional.
Por outro lado, encorajados pelas estratégias bem-sucedidas de avanço sobre a floresta, os ruralistas intensificaram ataques violentos em áreas remotas. Em 2017, o Brasil se tornou o país mais perigoso do mundo para ativistas sociais e ambientais, com 57 assassinatos resultantes de conflitos de terra.
E então veio Bolsonaro
Em outubro de 2018, os ruralistas finalmente solidificaram seu poder, apoiando o capitão reformado do Exército Jair Bolsonaro, eleito presidente.
Os latifundiários agora operam as alavancas do governo, controlando 44% do Congresso e sendo representados por um presidente cujas políticas extremas deixaram até algumas figuras do agronegócio desconfortáveis. Bolsonaro é um negacionista do clima, mostra-se abertamente hostil aos povos indígenas, acredita que os proprietários de terra têm o direito de portar armas para se defender de ataques e, além disso, ainda demonstra saudade pelo período da ditadura militar.
Desde seu primeiro dia no governo, Bolsonaro começou a reduzir a rede de leis, regulações e órgãos que deveriam impedir os danos ambientais causados pela mineração, pelo agronegócio e por grandes projetos de infraestrutura.
O jornalista Bernardo Mello Franco, do jornal O Globo, definiu o ministro do Meio Ambiente Ricardo Salles, investigado por crime ambiental, como um “antiministro, empenhado em destruir o que deveria proteger” e que está transformando “seu ministério num playground dos ruralistas”.
Mesmo antes de Bolsonaro assumir o governo, a falta de preocupação com a segurança ambiental custou muito ao país. Em novembro de 2015, uma barragem de rejeitos da mineradora Vale ruiu em Mariana, Minas Gerais, matando 19 pessoas e poluindo 710 km do Rio Doce. Depois, em janeiro de 2019, enquanto Bolsonaro assumia o poder, outro desastre com uma barragem de rejeitos da Vale aconteceu em Brumadinho, também em Minas Gerais. Um total de 249 pessoas morreram, e outras 21 continuam desaparecidas.
Sob o governo Bolsonaro, à medida que madeireiros ilegais e grileiros se valem do clima político permissivo, o desmatamento voltou a crescer. No total, 7.604 km² de floresta foram desmatados durante os primeiros nove meses deste ano, um aumento de 85% em relação ao mesmo período do ano passado.
Em agosto, imagens de incêndios na Amazônia tomaram as capas dos jornais internacionais, particularmente depois que a cidade de São Paulo ficou escura no meio do dia quando os ventos que carregavam fumaça das queimadas bloquearam a luz do sol. Esse evento foi considerado simbólico do que pode estar por vir para o meio ambiente, a Amazônia e os povos que nela habitam.
A violência, por sua vez, também aumentou: criminosos rurais, encorajados pelos ruralistas e pela retórica incendiária de Bolsonaro, vem matando de modo sistemático ativistas sociais, políticos e ambientais. Entre muitos incidentes recentes, dois líderes indígenas Guajajara foram assassinados a tiros no início de dezembro, perto de onde outro líder Guajajara, membro da brigada Guardiões da Floresta, foi morto um mês antes.
Além disso, o que está acontecendo no Brasil afeta o mundo inteiro. Especialistas alertam que o desmatamento atual praticamente impossibilitará que o país, o sétimo maior emissor de gases de efeito estufa do mundo, cumpra os compromissos que fez no Acordo de Paris de 2015, o que pode prejudicar todo o acordo global.
Fora isso, o desmatamento, combinado com as mudanças climáticas, está levando a Amazônia a um ponto de virada de transformação da floresta em savana, o que resultaria na morte massiva de árvores e no desprendimento do carbono sequestrado na atmosfera num momento em que o mundo não pode se dar a esse luxo. Ironicamente, a seca que poderá em breve devastar as florestas da Amazônia também alterará o padrão de chuvas e terminará sendo catastrófica para o agronegócio – e portanto, para toda a economia do país.
Uma das consequências disso é que algumas das maiores companhias do mundo, preocupadas com o futuro da Amazônia, passaram a responder negativamente às políticas de Bolsonaro. Em setembro de 2019, cerca de 230 investidores globais, com US$ 16,2 trilhões (R$ 66,3 trilhões) em ativos, pediram às empresas para livrar os rastros de desmatamento de suas cadeias de fornecimento. Em dezembro, 87 grandes companhias do Reino Unido, incluindo a Tesco e a Sainsbury, assinaram uma carta dirigida a Bolsonaro pedindo que o governo impeça o desmatamento da Amazônia para a produção de soja.
A pressão internacional deve crescer à medida que o presidente fica cada vez mais beligerante e agressivo, mas será preciso mais do que alertas para salvar Amazônia. Alguns ativistas acham que a única esperança atual para a floresta está num boicote internacional. Combinado à crescente mobilização de movimentos sociais em andamento no país, um boicote como esse poderia fazer o governo Bolsonaro repensar suas políticas nos próximos anos.
Enquanto isso, cientistas alertam que o desmatamento da Amazônia pode estar levando a floresta a um perigoso colapso mais cedo do que se imagina. Para garantir um futuro positivo para o Brasil e o mundo, é necessário pisar no freio antes de chegar ao precipício.
Matéria originalmente publicada aqui.
Imagem do banner: Guerreiro Munduruku (PA). Foto: Maurício Torres.