A Mongabay está lançando uma nova edição do livro “Uma Tempestade Perfeita na Amazônia”; a obra está sendo publicada em versão online, por partes e em três idiomas: espanhol, inglês e português.
O autor, Timothy J. Killeen, é um acadêmico e especialista que estuda desde a década de 1980 as florestas tropicais do Brasil e da Bolívia, onde viveu por mais de 35 anos.
Narrando os esforços de nove países amazônicos para conter o desmatamento, esta edição oferece uma visão geral dos temas mais relevantes para a conservação da biodiversidade da região, serviços ecossistêmicos e culturas indígenas, bem como uma descrição dos modelos de desenvolvimento convencional e sustentável que estão competindo por espaço na economia regional.
A criação de áreas protegidas e reservas indígenas oferece a melhor esperança de conservar a biodiversidade da Amazônia; no entanto, a gestão das paisagens modificadas pelo homem determinará se a sociedade vai proteger os serviços ecossistêmicos essenciais para a saúde econômica do continente. Os modelos preveem que um ponto de inflexão ecológico será ultrapassado quando cerca de 25% das florestas da região tiverem sido convertidas em agricultura – apenas alguns pontos percentuais acima do nível atual de 18%. Quando (se) esse ponto de inflexão for ultrapassado, o declínio na reciclagem de água atmosférica levará a um decréscimo catastrófico nas chuvas em todas as terras agrícolas da América do Sul, incluindo as do sul da Amazônia, mas também as do Brasil Central, Paraguai, Bolívia e norte da Argentina.
O ponto de inflexão previsto em torno de 25% de desmatamento é uma métrica de toda a bacia; no entanto, grandes partes do sul da Amazônia ultrapassaram essa métrica há aproximadamente vinte anos. Dezenas de municípios no Pará, Mato Grosso e Rondônia perderam mais de quarenta por cento de sua cobertura florestal original. Essas paisagens estão agora mais quentes e mais secas. Poderia ser pior. Os produtores ainda se beneficiam da água reciclada na Amazônia Central e, à medida que mais paisagens a favor do vento forem desmatadas, elas deixarão de fornecer esse subsídio à precipitação. Quando isso acontecer, os agricultores e pecuaristas de Mato Grosso serão forçados a se adaptar a uma nova realidade.
Alguns produtores migrarão para paisagens menos suscetíveis a quedas de precipitação, um processo que já está em andamento à medida que os agricultores se expandem para o norte, atraídos por terras baratas e custos logísticos menores (consulte o Capítulo 3). A maioria usará novos cultivares resistentes à seca e adotará práticas de gestão que conservem a umidade do solo. Alguns procurarão usar a tecnologia de irrigação. Haverá também pressão – e incentivos – para mudar a forma como usam a terra.
Alguns acadêmicos defendem uma abordagem de “poupar terras” que se baseia na tecnologia para intensificar a produção em paisagens de produção existentes a fim de reduzir a demanda por novas áreas de cultivo. Outros afirmam que é necessária uma abordagem de “compartilhamento de terras” que diversifique os sistemas de produção para conservar os serviços ecossistêmicos. Ambas as táticas têm lugar em uma estratégia de desenvolvimento coerente, mas seus impactos sociais, econômicos e ambientais variam de acordo com a perspectiva do observador e a escala da avaliação.
O crescente reconhecimento nos mercados financeiros de que a mudança climática é uma ameaça existencial à sociedade global criou uma demanda por investimentos que atendam aos critérios definidos como ambientais, sociais e de governança (ESG-Environmental, Social and Governance). Entre os mais comuns estão os “títulos verdes” que pretendem financiar empreendimentos comerciais que reduzam as emissões de gases de efeito estufa, sequestrem carbono e conservem a floresta e a biodiversidade. Simultaneamente, os compromissos públicos e privados para erradicar o desmatamento das cadeias de suprimento de commodities concentraram a atenção na economia agrícola do sul da Amazônia. Se acreditarmos nos analistas financeiros e nos especialistas da mídia, a Amazônia Meridional receberá em breve bilhões de dólares de capital público e privado que, espera-se, transformarão os modelos de negócios que há muito tempo ameaçam a Amazônia. Como de costume, “o diabo mora nos detalhes”.
Intensificação sustentável: O nexo soja-carne bovina na Amazônia brasileira
Todas as iniciativas das diversas partes interessadas voltadas para eliminar o desmatamento das cadeias de suprimento de commodities incluem programas para aumentar a produtividade dos produtores. São apresentadas como uma “cenoura” (incentivo) para os agricultores e pecuaristas que estão sendo coagidos a limitar (pôr fim) a expansão de seu setor através do desmatamento. A lógica é simples: um aumento de dez por cento no rendimento pode compensar uma redução de dez por cento na área (futura) de cultivo. Isso certamente é verdade em escala global, mas não tanto em escala local e regional. Os números falam por si.
A colheita total de soja em Mato Grosso aumentou de 18 milhões de toneladas em 2008 para mais de 35 milhões de toneladas até 2020. Doze por cento desse aumento foram provenientes de práticas agronômicas aprimoradas (intensificação); o restante foi devido a uma expansão da terra cultivada (extensificação). Os defensores do agronegócio argumentam que a expansão da área cultivada (nesse caso) também foi uma forma de intensificação sustentável porque ocorreu por meio da conversão de pastagens degradadas e não pela expansão em áreas de floresta. Alguns afirmam que a aplicação da lei e os incentivos de mercado conseguiram eliminar o desmatamento da cadeia de suprimentos da soja. Essa história feliz, no entanto, tem uma explicação mais sutil.
As pastagens degradadas eram supridas por fazendeiros que haviam acumulado um grande excedente de pastagens subutilizadas devido ao desmatamento maciço das décadas anteriores. Devido ao sobrepastoreio, uma grande parte (cerca de 60%) foi degradada. A restauração do solo representa um investimento significativo, mas é muito mais barata do que a derrubada de florestas. Os produtores de soja optaram pelo crescimento por meio da conversão de pastagens porque era a opção mais econômica. Os fazendeiros se beneficiaram porque puderam monetizar um ativo de baixo desempenho, seja por meio de uma venda ou pelo arrendamento de suas terras a um produtor por um determinado período (~5 anos). Aqueles que optaram pelo arrendamento recuperaram um ativo de terra valorizado com solos restaurados e pastagens renovadas.
Aproximadamente cinco milhões de hectares de pastagens foram convertidos em terras agrícolas em Mato Grosso entre 2008 e 2020; no entanto, a área total de pastagens cultivadas permaneceu constante em ~21 milhões de hectares. A conversão de pastagens foi compensada por novos desmatamentos na fronteira florestal e em remanescentes florestais em paisagens consolidadas. Simultaneamente, o rebanho bovino aumentou de 26 para 32 milhões de cabeças, o que se traduz em um aumento da taxa média de lotação de 1,3 cabeça por hectare para 1,5 cabeça por hectare. O manejo do pasto é apenas um aspecto da produtividade da carne bovina, e o setor também investiu em genética, saúde e nutrição animal, o que aumentou ainda mais a produtividade de sua cadeia de suprimentos.
Tanto o setor de carne bovina quanto o de soja expandiram sua produção por meio da intensificação: os produtores de soja aumentaram a produtividade e expandiram para o pasto, enquanto os pecuaristas aumentaram as taxas de lotação e melhoraram a saúde dos animais. As alegações de que eles evitaram o desmatamento são imprecisas, no entanto, porque o cultivo intensivo deslocou a pecuária para um setor que continua que continua a se expandir por meio do desmatamento. No vernáculo da economia de recursos naturais, isso é chamado de mudança indireta no uso da terra, enquanto os auditores de carbono se referem a isso como vazamento. Os defensores do meio ambiente o rotulam como greenwash.
Eventualmente, toda a área de pastagem adequada para culturas anuais, estimada em cerca de dez milhões de hectares, será ocupada por produtores agrícolas. Os fazendeiros do Mato Grosso precisarão dobrar a taxa de lotação para manter os níveis atuais de produção de carne bovina se quiserem evitar o desmatamento futuro. Eles provavelmente atingirão esse nível de produtividade; entretanto, outros fatores influenciarão a expansão de sua presença espacial. Como mencionado anteriormente, a valorização da terra é parte integrante do modelo de negócios de um fazendeiro.
A intensificação tende a melhorar as margens de lucro, o que proporciona aos produtores mais capital e, como os empresários de todo o mundo, a maioria usará esse capital para expandir as operações. Pode ser verdade que a oferta e a demanda por commodities seja uma equação de soma zero em escala global, mas certamente não é verdade em escala local ou regional.
Empresas frigoríficas e comerciantes de commodities pretendem usar o financiamento ESG para eliminar o desmatamento de sua cadeia de suprimentos. Talvez. Utilizarão imagens de satélite para monitorar o uso da terra e brincos com chips codificados em cadeia de blocos para documentar a origem de uma rês. Não está claro, no entanto, como a tecnologia pode resolver a questão da mudança indireta no uso da terra ou detectar pecuaristas que comercializam bezerros em mercados informais. Os investidores devem prestar muita atenção aos indicadores-chave de desempenho (KPI – Key Performance Indicators) usados para avaliar se seus credores atendem ou não aos critérios de ESG.
“Uma tempestade perfeita na Amazônia” é um livro de Timothy Killeen que contém as opiniões e análises do autor. A segunda edição foi publicada pela editora britânica The White Horse em 2021, sob os termos de uma licença Creative Commons (licença CC BY 4.0).
Leia as outras partes extraídas do capítulo 4 aqui:
Capítulo 4. Terra: A mercadoria definitiva
- CAPÍTULO 4. Terra: a mercadoria definitiva 14 Dezembro 2023
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