Em um documento de 94 páginas intitulado ‘Querida Amazônia’, o papa Francisco fez um forte apelo aos líderes mundiais, às companhias transnacionais e à população de todo o planeta para aumentarem os esforços de proteção da floresta amazônica e dos povos indígenas que nela vivem.
Além do crescente desmatamento no Brasil, Peru, Bolívia e Colômbia, a violência contra os povos indígenas também está aumentando. Segundo pesquisadores, a mudança climática e o desmatamento estão impulsionando uma transformação da floresta em savana, próximo a um ponto de inflexão, que pode levar à morte massiva de árvores, à liberação de grandes quantidades de CO2 e a uma catástrofe global.
“Somos água, ar, terra e vida do meio ambiente criado por Deus”, escreve Francisco em ‘Querida Amazônia’. “Por conseguinte, pedimos que cessem os maus-tratos e o extermínio da ‘Mãe Terra’. A terra tem sangue e está sangrando, as multinacionais cortaram as veias da nossa ‘Mãe Terra’.”
Líderes religiosos elogiaram o papa. “O cuidado com a criação e a justiça social para os povos indígenas e para comunidades florestais são parte de um único tecido moral”, diz joe Corcoran, da Interfaith Rainforest Initiative. Mas grande parte da imprensa ignorou a mensagem do líder católico, focando ao invés disso em sua decisão de não permitir que padres da Amazônia se casem.
Em um esforço para reacender sua influência como um líder ambiental global, o papa Francisco apresentou em 12 de fevereiro o documento “Querida Amazônia”, uma resposta ao histórico encontro ocorrido no Vaticano no ano passado sobre o destino do bioma e dos povos indígenas da região.
Na exortação de 94 páginas, Francisco defendeu a importância ecológica da Amazônia — a maior e mais biodiversa floresta tropical do mundo — e descreveu os serviços de ecossistema gerados pelo bioma, o clima amplamente benéfico da região e a mitigação da mudança climática gerada pela vegetação a partir do armazenamento de carbono. O pontífice destacou que os povos indígenas são os mais adequados para proteger a floresta, considerando que vivem na região desde tempos imemoriais.
O documento foi lançado em um momento em que a região enfrenta “desmatamento em taxas perigosas”, impulsionado pela extração ilegal de madeira e minério, pela pecuária e pelo agronegócio no Peru, na Bolívia, na Colômbia e no Brasil. O Brasil também é palco de um acentuado aumento de assassinatos de ativistas indígenas.
“Querida Amazônia” não é só direcionada aos católicos, mas “a todas as pessoas de boa vontade”. O texto resume as conclusões de um sínodo no Vaticano em outubro do ano passado, que reuniu pela primeira vez centenas de bispos católicos, líderes indígenas e ativistas ambientais de nove países da América do Sul. A resposta de Francisco é organizada em quatro “sonhos”: social, cultural, eclesial e ecológico.
O pedido do pontífice em defesa da floresta é ao mesmo tempo científico, humanista, político e espiritual: “Se o cuidado com pessoas e o cuidado com ecossistemas são inseparáveis, isto se torna especialmente importante em locais onde a floresta não é um recurso a ser explorado; ela é um ser, ou vários seres, com o qual temos que nos relacionar”, escreve Francisco na seção voltada à ecologia. “Os indígenas, quando permanecem nos seus territórios, são quem melhor os cuidam, desde que não se deixem enredar pelos cantos das sereias e pelas ofertas interesseiras de grupos de poder.”
Francisco se junta a pesquisadores e ativistas em seu aviso. O desmatamento do bioma, em rápido crescimento, já ameaça o principal objetivo do Acordo de Paris de 2015 — impedir que o mundo ultrapasse um aumento de 1,5 grau Celsius em relação à era pré-industrial. O cita especificamente a importância vital das florestas na desaceleração do aquecimento global.
Importantes pesquisadores já alertam que a mudança climática e o desmatamento podem fazer com que a Amazônia cruze um ponto de inflexão, resultando na rápida conversão da floresta em savana. Ao mesmo tempo, o bioma pode começar a liberar uma grande quantidade de carbono acumulado, levando o mundo em direção a uma catástrofe climática.
Os alertas acontecem em um momento em que o Brasil tem sido palco de incêndios e violentas apropriações de terras. Em 2019, a Amazônia brasileira perdeu 8.805 km² de floresta — quase seis vezes o tamanho do município de São Paulo. O número representa um aumento de 85% em relação a 2018.
No entanto, como relatado na revista jesuíta America, “as palavras do papa Francisco certamente não irão agradar o presidente brasileiro, Jair Bolsonaro, que, na véspera da publicação da exortação, enviou uma proposta de lei ao Congresso que permitiria atividades de mineração dentro de reservas indígenas, incluindo na região da Amazônia, sem o consentimento dos povos”.
Defendendo a natureza — novamente
“Querida Amazônia” é um enfático complemento da Laudato Si, Sobre o Cuidado da Casa Comum, uma encíclica papal publicada em junho de 2015 com objetivo de estimular um resultado positivo nas negociações das Nações Unidas que levaram ao Acordo de Paris em dezembro daquele ano. Uma encíclica é um documento católico da mais alta ordem, possuindo “autoridade moral”.
A Laudato Si colocou Francisco no cenário mundial como um líder ecumênico e defensor da conservação ambiental. Sem rodeios, ele culpou a atividade humana pelo aquecimento global e criticou o crescente consumismo e o capitalismo desenfreado como aceleradores da destruição da Terra.
Diversas comunidades religiosas ao redor do mundo foram inspiradas a agir depois da fala do papa. No entanto, o controverso manifesto recebeu críticas mistas na América Latina, onde muitos veem a conservação como um obstáculo ao crescimento econômico. Autoridades do Vaticano classificam a ação climática desde então como um “imperativo moral”.
A mensagem de “Querida Amazônia parece” ainda mais urgente quando comparada à encíclica de 2015, sendo feita em resposta ao rápido agravamento da situação na Amazônia: “Somos água, ar, terra e vida do meio ambiente criado por Deus”, escreve Francisco. “Por conseguinte, pedimos que cessem os maus-tratos e o extermínio da ‘Mãe Terra’. A terra tem sangue e está sangrando, as multinacionais cortaram as veias da nossa ‘Mãe Terra’.”
A encíclica Laudato Si foi publicada quando o papa progressista estava no auge de sua popularidade global, e foi elogiada e citada por meses pela imprensa internacional. Mas o pedido urgente de “Querida Amazônia” até o momento tem sido amplamente ignorado. Parte da imprensa tradicional, ao invés disso, focou quase exclusivamente na decisão de Francisco de não permitir o casamento de padres que atuam na Amazônia, o que seria uma maneira de impulsionar o número de religiosos na região, em queda dramática.
O New York Times — que, como outros veículos, destacou a divisão política entre os progressistas e os conservadores da Igreja Católica — chegou apenas a relatar que “seus conselheiros mais próximos reconheceram que o impacto do papa diminuiu no cenário global, especialmente em questões centrais como imigração e meio ambiente”.
Pessoas de fé respondem
Francisco provavelmente não irá desistir sem uma luta. Ele pediu para governos da América Latina aplicarem suas leis de proteção ambiental, devolverem direitos de terras aos povos indígenas e reconhecerem que as florestas da Amazônia são mais que um recurso econômico a ser monetizado para “indústrias extrativas, energéticas, madeireiras e outras que destroem e poluem”.
“O equilíbrio da terra depende também da saúde da Amazônia”, escreve o pontífice. “Juntamente com os biomas do Congo e do Bornéu, deslumbra pela diversidade das suas florestas, das quais dependem também os ciclos das chuvas, o equilíbrio do clima e uma grande variedade de seres vivos.”
Líderes religiosos procurados pela Mongabay olharam além das políticas do Vaticano e elogiaram a mensagem do papa no documento mais recente, dizendo que ele é revigorante no que diz respeito às estratégias para a conservação.
“Proteger florestas é fundamentalmente uma questão ética, onde o cuidado pela criação e a concretização de justiça social para povos indígenas e para comunidades florestais são parte de um único tecido moral”, diz Joe Corcoran, gerente de projetos da ONU para a Interfaith Rainforest Initiative (IRI), uma ONG que faz lobby por ações climáticas governamentais em seis países amazônicos.
“Através da IRI, estamos vendo que a liderança do papa Francisco não só está fazendo com que católico ajam, mas também está inspirando líderes religiosos de outras fés a protegerem florestas ao redor do mundo”, diz Corcoran.
Laura Vargas lidera as ações da IRI no Peru: “Acredito que ‘Querida Amazônia’ marca um ponto de virada para toda a vida da Igreja na Amazônia e para além de suas fronteiras. Se acreditarmos que tudo é interconectado, percebemos que o que acontece com a maior floresta tropical do mundo afeta todo o planeta”.
Para a Christian Aid, uma organização global de ativismo ambiental sediada em Londres, “o papa continua sendo um dos mais populares e amados, com influência significativa não só sobre mais de um bilhão de católicos, mas sobre muitos outros também”, diz o porta-voz, Joe Ware.
Ware destaca que o ano de 2020 é crucial, porque é quando o Acordo de Paris entra em vigor. O acordo continua perigosamente incompleto, conforme líderes do mundo industrializado continuam adiando políticas agressivas para redução de emissões, mesmo com pouco tempo para começar a diminuir o carbono da economia global. A ONU alertou em 2018 que o mundo tem apenas 12 anos para evitar uma catástrofe climática.
“É vital”, diz Ware, “que tenhamos a voz da Igreja Católica e do povo de fé ao redor do mundo impulsionando líderes políticos neste ano a adotarem as decisões mais corajosas possíveis”.
Legenda da imagem do banner: Papa Francisco se encontra com povos indígenas da Amazônia durante a segunda semana do Sínodo de Bispos para a Amazônia, no Vaticano, em 17 de outubro de 2019. Foto: CNS photo/Vaticano.
Justin Catanoso é um colaborador regular da Mongabay e professor de jornalismo na Wake Forest University, na Carolina do Norte, Estados Unidos.