A Terra Indígena Ituna/Itatá, no Pará, abriga diversos grupos de povos isolados, que dependem da floresta ao redor para sobreviver.
No entanto, cada vez mais pessoas têm ocupado e desmatado terras para agricultura e mineração. Autoridades brasileiras estimam que cerca de 10% do território tenha sido invadido e destruído ilegalmente apenas este ano, e dados de satélite mostram que o desmatamento ainda está aumentando. Devido à expansão de tais incursões, Ituna/Itatá agora é considerada a terra indígena mais desmatada do Brasil.
Ainda que os ataques a terras indígenas no Brasil aconteçam há décadas, ativistas afirmam que o forte aumento do desmatamento e da apropriação de áreas em Ituna/Itatá este ano está intimamente ligado ao novo presidente. Bolsonaro também lançou um ataque aberto à Funai, a agência governamental encarregada de proteger os interesses indígenas no Brasil.
O Ibama respondeu ao ataque à TI Ituna/Itatá com pelo menos cinco operações na área, entre 2018 e 2019. No entanto, o impacto em longo prazo parece ser limitado: poucas semanas após a última repressão, ativistas e fontes locais relatam que os grileiros voltaram a desmatar a floresta.
Tudo o que ainda resta da exuberante floresta que uma vez cobriu parte da Terra Indígena Ituna/Itatá, no Pará, são alguns galhos secos e poucos troncos de árvore. De um lado, uma enorme escavadeira abandonada, acumulando poeira no meio da Amazônia. Mais adiante, a selva densa e intocada se estendendo por quilômetros.
A cena, capturada pelas autoridades federais no final de agosto, é apenas um vislumbre do aumento nas recentes invasões da Terra Indígena Ituna/Itatá, área de cerca de 142 mil hectares no município de Altamira. O território corresponde a uma vasta extensão de floresta densa e virgem, situada a mais de 900 quilômetros de Belém. Por lei, deveria abrigar povos indígenas vivendo em isolamento voluntário – e mais ninguém.
A presença desses povos isolados foi detectada pela primeira vez durante o planejamento da hidrelétrica de Belo Monte. A partir de 2011, forasteiros foram proibidos de entrar no território, como forma de proteger os indígenas contra doenças do homem branco.
No entanto, a proibição não impediu que invasores derrubassem áreas cada vez maiores de floresta em Ituna/Itatá, o que levou o lugar a conquistar o sombrio título de TI mais desmatada do Brasil no ano passado, segundo a Rede Xingu+, rede formada por indígenas e grupos ambientais que operam na bacia do Xingu.
Estima-se, porém, que o desmatamento tenha aumentado ainda mais este ano: dados de satélite da Universidade de Maryland registraram cerca de 57 mil alertas de perda de cobertura florestal entre 1° de janeiro e 21 de outubro, com quase 70% ocorrendo desde o início de agosto. As autoridades brasileiras estimam que cerca de 10% do território tenha sido invadido e destruído ilegalmente apenas em 2019.
“Existe uma grande preocupação porque as tribos isoladas que vivem nessa área podem não ser capazes de se defender”, afirma Mikaela Weisse, gerente da plataforma de monitoramento florestal do World Resources Institute, a Global Forest Watch.
Segundo uma fonte local que pediu para permanecer anônima devido a questões de segurança, a TI Ituna/Itatá foi primeiro atacada pela exploração ilegal de madeira, que chegou à região por volta de 2016. Depois, fazendeiros, mineiros e grileiros se somaram à invasão.
Recentemente, houve sinais de que alguns deles podem ter chegado para ficar. Muitos estão registrando em seus nomes as terras que foram desmatadas ilegalmente e alguns construindo assentamentos no meio da floresta. Fontes locais relatam o movimento de caminhonetes, que se acredita estarem ajudando a derrubar trechos de mata profunda para dar lugar a pastagens de gado.
“É um tipo de especulação”, afirma a fonte de defesa. “Eles estão indo para lá como se a terra fosse deixar de ser dos povos indígena no futuro. E estão correndo para pegá-la, para garantir.”
Uma retórica tóxica
Ainda que ataques a áreas indígenas no Brasil aconteçam há décadas, ativistas afirmam que o forte aumento do desmatamento e da apropriação de terras em Ituna/Itatá este ano estão intimamente ligados ao governo do presidente Jair Bolsonaro.
“Eles não falam nossa língua, mas de alguma forma conseguiram obter 14% de nosso território nacional”, disse Bolsonaro em agosto, enquanto dava a entender que a demarcação de terras indígenas seria resultado de uma conspiração internacional. Em diversas ocasiões, o presidente reiterou que a proteção a terras indígenas era um “obstáculo” à mineração e ao desenvolvimento.
Críticos dizem que isso encorajou os invasores a ocupar ilegalmente novas áreas em territórios indígenas – na TI Ituna/Itatá e em outros regiões do Brasil –, sem medo de represálias. Enquanto isso, a diminuição dos recursos fez com que muitos postos da Funai e do Ibama localizados em regiões remotas do Brasil fossem fechados nos últimos anos, deixando os grileiros livres para invadir as terras indígenas.
“Existe uma atmosfera geral de impunidade, que permitiu que essa situação ficasse fora de controle”, aponta Jonathan Mazower, porta-voz da Survival International, uma organização sem fins lucrativos que defende os direitos dos povos indígenas. “É inegável que o sistema de proteção para terras indígenas não está funcionando.”
O impacto foi especialmente forte em TIs como Ituna/Itatá, que permanece sob frágil proteção governamental. Mesmo que a região esteja sob algum tipo de salvaguarda federal, ainda não foi oficialmente demarcada como terra indígena. Em janeiro, a Funai renovou seu status de “restrição de uso” por mais três anos. Contudo, ativistas da região dizem que os grileiros estão apostando que isso não durará muito tempo.
“Os grileiros que apoiam o Bolsonaro acreditam que essas terras não serão demarcadas”, comenta Danicley Aguiar, membro da Campanha da Amazônia, do Greenpeace Brasil, que mora em Belém e trabalha na região. “Ele prometeu que não serão demarcadas. E isso cria, nesses grileiros, a expectativa de que essas terras não sejam reconhecidas. ”
Apesar do território ser de propriedade federal e reservado aos povos indígenas, cerca de 87% foram reivindicados ilegalmente por invasores através do Sistema de Cadastro Ambiental Rural (CAR), de acordo com a Rede Xingu+. Algumas parcelas foram registradas várias vezes por diferentes invasores, que se declaravam os legítimos proprietários, revelando a grande luta em torno do território.
Enquanto isso, o impacto nas pessoas que chamam essa região de lar tem sido profundo. Temendo por suas vidas, os indígenas isolados estão fugindo de Ituna/Itatá e se embrenhando cada vez mais na floresta. Com o desmatamento de extensões cada vez maiores do território, teme-se que os grupos não consigam manter seu estilo de vida nômade.
“Indígenas isolados são provavelmente as pessoas mais vulneráveis na Amazônia brasileira hoje”, aponta Christian Poirier, diretor de programa da Amazon Watch. “Há uma pressão crescente sobre a terra. Imagine como isso afeta essa comunidade em particular. É devastador para eles.”
Isso pode causar precisamente o impacto que os grileiros estão buscando: à medida que o desmatamento expulsa comunidades isoladas do território, as chances da TI Ituna/Itatá se manter em seu status protegido diminuem. Isto porque, para renovar o status de restrição de uso da área de tempos em tempos, a Funai deve encontrar sinais de povos indígenas isolados que ainda moram lá.
Segundo ativistas locais, as invasões em Ituna/Itatá também acabam exercendo pressões sobre outras terras indígenas na região. À medida que a floresta circundante diminui e a mata é dividida em porções menores, áreas como a TI Paquitamba e a TI Arara da Volta Grande do Xingu ficam cada vez mais isoladas. Isso significa que está ficando cada vez mais difícil para os povos indígenas dependentes da floresta sobreviverem das fatias restantes de terra.
Batalha constante
A cena se assemelhava a um filme de ação: agentes federais fortemente armados haviam se mudado para a Floresta Amazônica e trocavam tiros com grileiros. Em determinado momento da operação, os agentes descobriram e fecharam uma pista de pouso ilegal que provavelmente estava sendo usada para levar motosserras, combustível e trabalhadores para o meio da floresta.
Era final de agosto e a comitiva – que incluía agentes da Força Nacional de Segurança Pública e do Ibama – estava lá para reprimir o desmatamento desenfreado, que engolia grandes faixas da TI Ituna/Itatá e vinha se intensificando desde o início do mês.
A operação, que atraiu ampla atenção e cobertura da mídia, não foi a primeira tentativa do Estado brasileiro de conter o desmatamento em Ituna/Itatá. Embora o desmatamento na TI tenha atingido um nível novo e dramático este ano, foi ao longo de 2018 que os invasores se tornam cada vez mais ousados em sua ocupação de terra na região, depois de ver que as autoridades pouco podiam fazer para detê-los.
O Ibama respondeu ao ataque à TI Ituna/Itatá com pelo menos cinco operações na área em 2018 e 2019, estimam fontes de defesa. No entanto, o impacto em longo prazo parece ser limitado: poucas semanas após a última repressão, ativistas e fontes locais relataram que os grileiros haviam voltado a desmatar a floresta.
A questão agrega um coquetel tóxico de fatores, que simultaneamente permitem o desmatamento e garantem que os culpados raramente sejam punidos. A terra indígena fica no coração do chamado Arco de Desmatamento, uma área em forma de lua crescente que corre ao longo dos limites sul e leste da Amazônia, onde o desenvolvimento agrícola tem empurrado a floresta de maneira particularmente rápida. À medida que mais e mais áreas ao redor vão sendo desmatadas, a pressão sobre TIs como a Ituna/Itatá aumenta. “O desmatamento e a pressão estão vindo da fronteira do desenvolvimento”, afirmam representantes locais da defesa. “E as áreas indígenas protegidas são as únicas onde a floresta resiste.”
A localização remota de Ituna/Itatá, por outro lado, também ajudou a proteger os invasores. A TI é acessível apenas de helicóptero ou de balsa a partir da cidade de Altamira, trajeto seguido por cerca de cinco horas de carro por uma estrada de terra no meio da floresta densa. O isolamento da região faz com que seja muito mais fácil o desmatamento passar despercebido.
A aplicação da lei ambiental em Ituna/Itatá também é difícil. O Ibama, diante de uma escassez cada vez maior de recursos, não possui posto permanente na região e reage sem qualquer tipo de planejamento ao desmatamento desenfreado que ocorre na TI. Mesmo quando as autoridades responsabilizam os invasores, suas ações funcionam apenas de maneira paliativa, agindo sobre alguns fazendeiros individuais e não sobre as grandes empresas por trás do desmatamento.
Em relatório recente, a Human Rights Watch descobriu que o desmatamento ilegal na Amazônia brasileira é causado especialmente por redes criminosas que coordenam operações de extração ilegal de madeira em larga escala, enquanto mobilizam homens armados para intimidar defensores da floresta e povos indígenas.
“Você pode destruir uma pista de pouso ou fechar uma fazenda”, afirma Aguiar. “Mas quando você volta à cidade ou a Brasília, o grileiro reinicia tudo. Você precisa ir mais fundo para realmente parar com isso.”
Fonte dos dados: Hansen, M.C., A. Krylov, A. Tyukavina, P.V. Potapov, S. Turubanova, B. Zutta, S. Ifo, B. Margono, F. Stolle e R. Moore. 2016. Humid tropical forest disturbance alerts using Landsat data. Environmental Research Letters, 11 (3). Acessado por meio do Global Forest Watch, em 23 de outubro de 2019. www.globalforestwatch.org
Nota do editor: A produção deste artigo recebeu o apoio da Places to Watch, uma iniciativa da Global Forest Watch (GFW) projetada para identificar rapidamente a perda de florestas em todo o mundo e catalisar novas investigações sobre essas áreas. A Places to Watch utiliza uma combinação de dados de satélite em tempo quase real, algoritmos automatizados e inteligência no campo para identificar novas áreas mensalmente. Em parceria com a Mongabay, a GFW está apoiando o jornalismo pautado por dados, fornecendo dados e mapas gerados pelo Places to Watch. A Mongabay mantém total independência editorial em relação às matérias escritas com base nesses dados.