Relatório da Human Rights Watch detalha 28 assassinatos e 44 tentativas ou ameaças de morte ocorridas desde 2015, em que as vítimas foram atacadas por denunciarem desmatadores ilegais.
A impunidade predomina: minoria de casos chega ao Judiciário, histórico de intimidações é desconsiderado por autoridades, polícia comete erros graves de investigação e programa federal de proteção aos defensores é ineficiente. Os criminosos “estão empoderados, sentem que podem fazer qualquer coisa”, diz o pesquisador responsável pelo estudo.
Iniciativas indígenas de monitoramento e patrulhamento de territórios compensam reduções orçamentárias e de recursos humanos em órgãos ambientais públicos, mas aumentam os riscos para as comunidades.
Violência contra defensores da floresta é crônica e antiga, porém aumentou sob o governo de Bolsonaro, que sabota esforços para combatê-la, afastando-se do compromissos de eliminar o desmatamento ilegal da Amazônia até 2030, assumido no Acordo de Paris.
Violência e impunidade são o combustível que alimenta as chamas na Amazônia. Não só as que correram o mundo em imagens no último mês de agosto, quando se revelou que os focos de incêndio em 2019 superaram em 80% a marca do ano anterior. Mas também aquelas que atingem a floresta de forma regular nos meses de verão – parte de um processo de desmatamento que favorece madeireiras ilegais e grileiros, além de roubar árvores, terras e as vidas de quem luta por manter a selva em pé.
Esta é a conclusão de um estudo realizado ao longo de três anos pela Human Rights Watch (HRW) e divulgado ao público nesta terça-feira (17). Nele, a organização internacional documenta 28 assassinatos , além de 44 ameaças de morte, ocorridos nos últimos anos na Amazônia brasileira. Em todos os casos reportados, há evidências confiáveis de que os autores ou mandantes dos ataques eram grileiros ou madeireiros ilegais – uma rede criminosa que, longe de ser combatida adequadamente pelos sucessivos governos do Brasil, se vê agora fortalecida pelo discurso e também por ações do presidente Jair Bolsonaro.
“É a primeira vez em 20 anos que realizamos um estudo sobre direitos humanos e meio ambiente no Brasil. O nível de intimidação, ameaça e violência é impressionante, mas a resposta do Estado é muito deficiente. As autoridades brasileiras sequer tinham esses registros, para nossa surpresa. Por isso precisamos partir do zero, ir a cada cidadezinha para falar com advogados, vítimas e testemunhas ”, revela César Muñoz Acebes, pesquisador da HRW no Brasil e responsável pelo relatório.
As vítimas mais recorrentes são indígenas e moradores de pequenas comunidades. Gente como Marlete da Silva Oliveira, Raimundo de Jesus Ferreira e Venilson da Silva Santos, executados no dia 21 de março de 2019, no município de Baião, no Pará. Cada um levou um tiro na cabeça e depois seus corpos foram carbonizados pelos assassinos. A polícia atribui a ordem de atirar ao fazendeiro Fernando Ferreira Rosa Filho, para quem os três trabalhavam, porque ele temia que denunciassem sua participação no desmatamento ilegal e no tráfico de drogas da região.
A matança não parou por aí: “Depois de executar os três funcionários, os assassinos viajaram 20 quilômetros até a casa de Dilma Ferreira Silva, no assentamento Salvador Allende. A casa dela ficava na estrada de terra que os caminhões usavam para transportar madeira extraída ilegalmente”, narra o relatório, que é repleto de detalhes. A assentada também pensava em avisar as autoridades sobre as atividades ilegais do fazendeiro, mas teve as mãos amarradas atrás do corpo, viu o marido ser amordaçado e, junto com um vizinho que os visitava, foram todos esfaqueados até a morte.
Nesse faroeste amazônico, o que está em jogo é o valor comercial da floresta, onde um único tronco de ipê – uma das árvores mais desejadas por sua madeira resistente – vale algo entre R$ 2 mil e R$ 6 mil. Para sublinhar isso, a versão em português do relatório da Human Rights Watch ganhou o título de “A Máfia dos Ipês”, uma referência à forma como os fiscais do Ibama se referem ao problema.
A extração de madeira ilegal é o primeiro elo da cadeia criminosa, explica a pesquisa. Uma vez que as árvores mais valiosas são levadas embora – o que tem sido feito com sofisticação cada vez maior pelas quadrilhas, para escapar do monitoramento via satélite conduzido pelos órgãos ambientais –, o que sobra é queimado, para dar lugar, em seguida, a pastagens de gado ou, mais raramente, a plantações. Tudo depois será “esquentado”, passado para o mercado legal através de subornos ou licenças frias.
Uma operação dessa envergadura e complexidade, no meio da selva, dificilmente poderia ser atribuída a amadores. “O crime organizado é responsável pelo desmatamento na Amazônia”, assegurou, em entrevista aos pesquisadores a então procuradora-geral da República, Raquel Dodge. O Ministério Público Federal já desarticulou algumas dessas quadrilhas, como a que desmatou 180 km² nos últimos anos em Boca do Acre, no Amazonas: além dos fazendeiros, atuavam no esquema cinco servidores do Ibama e quatro policiais militares do estado. O grupo, de 22 pessoas, foi denunciado em junho deste ano à Justiça.
Essa teia de ilegalidades é responsável por 90% de todo o desmatamento da Amazônia – o que leva a HRW a alertar para o risco de descumprimento dos compromissos firmados pelo Brasil no acordo de Paris, que prevê a eliminação completa do desmatamento ilegal região amazônica até 2030. “Para cumprir essa meta, será preciso desarticular quadrilhas e proteger quem as denuncia na tentativa de salvar a floresta”, indica o relatório da instituição.
Indígenas organizados
Diversos conjuntos de dados consultados pelo Human Rights Watch mostram que as maiores porções de floresta amazônica preservada no Brasil estão dentro do perímetro de reservas indígenas, o que faz desses territórios alvos preferenciais dos criminosos. “Todas a terras indígenas estão na mira dos madeireiros”, alertou aos pesquisadores o então diretor de proteção ambiental do Ibama, Luciano Evaristo.
Não é por acaso, portanto, que os indígenas desempenhem um papel central, organizando entre si iniciativas de vigilância e combate ao desmatamento dentro de suas áreas. “Essa contribuição se tornou ainda mais vital nos últimos anos, devido à menor capacidade das agências ambientais do Brasil de monitorar o que está acontecendo no terreno”, ressalta o estudo.
Foi o que aconteceu no Maranhão, onde indígenas de cinco etnias criaram a patrulha Guardiões da Floresta, uma resposta à limitação governamental, ilustrada pelos números obtidos pela HRW: em 2018, o Ibama tinha apenas nove fiscais para atuar em todo o estado, cuja área é do tamanho da Itália.
Na Funai, eram 26 empregados em uma área onde vivem 37 mil indígenas. Segundo um relato colhido pela ONG, a situação orçamentária do órgão é tão dramática que os chefes estão financiando viagens com o próprio salário, num esforço para não perder reuniões importantes fora de suas bases. “É o pior momento da Funai nos meus 30 anos de servidora”, desabafou aos pesquisadores Eliane Araújo, que era a coordenadora da Funai no estado em 2018.
Os Guardiões da Floresta fazem expedições regulares aos pontos mais remotos de suas terras e fiscalizam as bordas das reservas indígenas – tradicionalmente áreas mais vulneráveis aos ataques de invasores. Eles também usam sistema GPS para fornecer coordenadas precisas às autoridades. E um grupo de ‘mulheres guerreiras’ da TI Caru, habitada pelos povos Awá Guajá e Guajajara, está até aprendendo a controlar drones para melhorar o monitoramento.
A urgência é total porque onde os desmatadores enxergam cifras, os indígenas veem alma: “Nós, do povo Pyhcop Catiji, acreditamos que há vida após a morte, que nossos espíritos se transformam em árvores, em animais. Portanto, não é apenas uma árvore, não é apenas uma floresta. O que há lá é uma vida, é a vida dos meus antepassados”, declarou aos pesquisadores o cacique Eýy Cy, do povo Gavião.
Mas o risco dessa operação tem aumentado substancialmente. Já ocorreram situações-limite, como a descoberta de áreas utilizadas pelo tráfico internacional para o cultivo de maconha. Os indígenas também relataram que, em uma das ocasiões em que acompanharam policiais à áreas desmatadas, os criminosos não foram detidos sob o argumento de ser impossível custodiá-los dentro da selva.
Eles temem agora novas represálias. A comunidade relatou à HRW casos de ameaças, ataques e oito assassinatos provocados por madeireiros que invadiram suas terras. Mas como os crimes não foram devidamente investigados pelas autoridades, a ONG não conseguiu comprová-los.
Impunidade e medo
De forma unânime, os entrevistados da Human Rights Watch disseram que, na Amazônia, a violência é crônica e muito antiga. “Nós relatamos 28 casos, mas a Comissão Pastoral da Terra, ligada à Igreja Católica, possui o registro de mais de 300 vítimas nos últimos 10 anos”, explica César Muñoz Acebes.
Apesar disso, a maioria das mortes e ameaças acontecem à revelia da lei e das forças de segurança, que não conseguem coibir as intimidações, alimentando o medo entre essas populações. De fato, dos 28 assassinatos mencionados no relatório, apenas dois foram a julgamento. Entre as 40 ameaças documentadas, a investigação policial pôde levar o caso ao Judiciário apenas uma vez. Um cenário que fica ainda mais sombrio quando acrescido da informação de que 19 das 28 mortes reportadas pela HRW foram precedidas de ameaças contras as vítimas ou suas comunidades.
São casos como o de Gilson Temponi, executado em Rurópolis, no Pará, ao abrir a porta para os criminosos que tocaram sua campainha em 12 de dezembro de 2018. Sua morte estava encomendada desde que ele denunciara a ação de madeireiros ilegais em um assentamento rural próximo – cumprindo seu dever como líder sindical dos pequenos agricultores. A polícia chegou a abrir inquérito para apurar a acusação de desmatamento, mas não deu ouvidos aos relatos de ameaça, negligência que custou sua vida.
A extensão da Amazônia e a falta de recursos são as justificativas mais frequentes para a inoperância das autoridades. Elas argumentam a dificuldade de acesso para chegar aos locais das mortes e fazer uma investigação adequada. Submetida a uma prova de verificação pelos pesquisadores, essa hipótese não se confirmou.
Checando os métodos policiais em uma amostra de seis assassinatos no Maranhão, a HRW identificou falhas graves nas investigações. Em dois casos, os policiais não foram pessoalmente até a cena do crime, e em cinco, não houve autópsia dos corpos – itens fundamentais para a apuração dos fatos. E, ao contrário do que dizem os policiais, a maioria dessas mortes ocorreu em centros urbanos, onde há delegacias funcionando normalmente.
“Por outro lado, listamos 17 casos ocorridos em locais remotos em que houve suficiente investigação e denúncia. Mas eram situações que haviam chamado a atenção da mídia. A falta de recursos, por vezes, é um fator limitante, mas há também tolerância política com a impunidade”, critica Muñoz.
Outro apontamento do estudo é sobre a ineficiência do Programa de Proteção aos Defensores de Direitos Humanos, Jornalistas e Ambientalistas, que em julho de 2019 mantinha sob sua guarda 410 pessoas no Brasil. Atualmente, a iniciativa opera apenas por meio de ligações telefônicas aos ameaçados com fins de checagem, o que por si só representaria um problema. A condição se agrava, porém, na medida em que grande parte da Amazônia ainda carece de cobertura telefônica, o que leva os ameaçados a se exporem em viagens regulares até cidades próximas, onde possam fazer ou receber uma ligação.
Por isso, no Pará, procuradores decidiram processar o estado e a União para exigir proteção eficiente a esses defensores da floresta. Em abril de 2019, um juiz determinou que fossem incrementadas as medidas de segurança de cinco pessoas que são alvo de ameaças de quadrilhas na Amazônia.
O fator Bolsonaro
Não bastassem as deficiências, os pesquisadores alertam para o risco de encerramento do Programa de Proteção aos Defensores de Direitos Humanos. Depois de ver triplicado seu orçamento durante o governo Michel Temer, a iniciativa sofreu um corte de 20% em suas verbas para 2019. Mas o que mais preocupa é sua base legal: operando por meio de decretos presidenciais, a Human Rights Watch entende que “o presidente Bolsonaro, que menosprezou os defensores dos direitos humanos no passado, poderia facilmente abolir o programa revogando os decretos”. Um projeto de lei para torná-lo política de Estado aguarda votação no Congresso Nacional desde 2009.
Essa medida não surpreenderia se fosse considerado o histórico dos primeiros oito meses do atual governo, que a ONG resume em um dos capítulos do estudo. Estão lá medidas polêmicas como a redução do orçamento do Ministério do Meio Ambiente em 23%, e a demissão, em um único dia de fevereiro, de 21 dos 27 diretores regionais do Ibama, responsáveis por aprovar operações anti-madeireiros. A HRW constatou que, em agosto, quase todos os postos continuavam vagos.
“Há uma preocupação muito grande com a determinação de que os fiscais não destruam os equipamentos de madeireiros ou garimpeiros que sejam flagrados em atividade irregular. Não é uma norma escrita, mas os técnicos que entrevistamos confirmaram sua existência”, revela César Muñoz Acebes.
O volume de multas aplicadas por desmatamento nos primeiros oito meses da gestão Bolsonaro é o mais baixo em 20 anos: caiu o equivalente a 38% em relação ao mesmo período de 2018. O presidente também criou uma instância de conciliação que tem o poder de revisar multas aplicadas, o que, na visão dos técnicos entrevistados, terá como efeito prático a suspensão de todas as cobranças.
O estudo ainda destaca que o governo Bolsonaro tem atuado para desarticular o esforço de organizações ambientais brasileiras, abolindo e mesmo dissolvendo colegiados nos quais participam esses representantes da sociedade civil. Um deles foi o Comitê Orientador do Fundo Amazônia, que já recebeu mais de US$ 820 milhões em doações internacionais e agora tem seu futuro incerto diante do anúncio de suspensão de remessas da Noruega, que até então bancava 93% dos investimentos.
A “hostilidade aberta do presidente e de seus ministros” em relação a defensores da florestas se exprime em expressões como “indústrias de multas”, referindo-se ao Ibama, ou “ambientalistas xiitas”, como ele qualifica a atuação das ONGs, mas também acabou dirigida à comunidade internacional nas ocasiões em que governos europeus defenderam esforços preservacionistas. Bolsonaro disse que a cobrança estrangeira era uma ameaça à soberania nacional e sugeriu que a Amazônia “era como uma mulher virgem desejada por pervertidos estrangeiros”.
“Colhemos depoimentos de testemunhas que viam como os madeireiros, que antes agiam somente durante a noite, são vistos agora trabalhando à luz do dia dia. Estão empoderados, sentem que podem fazer qualquer coisa. Por isso também o desmatamento dobrou neste ano”, afirma Acebes.
Neste sentido, a Human Rights Watch sugere em seu estudo medidas que possam melhorar a segurança das comunidades locais e reduzir o desmatamento. “E muitas delas não envolvem o aumento de verbas públicas”, assinala o pesquisador. Segundo a ONG, um passo importante seria articular esforços de inteligência e atuação de órgãos públicos federais e estaduais, como as polícias, os Ministérios Públicos e os agentes ambientais.
A HRW também roga ao novo Procurador-Geral da República que realize“análises de casos documentados para identificar padrões e autores, buscando a federalização de violações graves aos direitos humanos que não sejam investigadas adequadamente pela autoridades estaduais”. Bolsonaro indicou ao cargo Augusto Brandão Aras, que será submetido a uma sabatina no Senado como condição para assumir o posto.
Do Congresso Nacional, a organização cobra a realização de uma comissão de investigação no Congresso e de audiências públicas para examinar as redes criminosas responsáveis pelo desmatamento ilegal na Amazônia. Há também recomendações sobre o Programa de Proteção aos Defensores de Direitos Humanos e sugestões sobre as bases legais que asseguram a preservação da floresta. “Outros atores também podem fazer a diferença: Ministério Público, a comunidade internacional, as empresas brasileiras. A proteção da Amazônia é fundamental para a sociedade”, conclama César Muñoz Acebes.
Legenda da foto no banner: Cláudio José da Silva, coordenador dos Guardiões da Floresta, na Terra Indígena Caru (MA), às margens do Rio Pindaré. Essa iniciativa do povo Guajajara patrulha a floresta com o intuito de detectar ações de desmatamento ilegal e denunciá-las às autoridades. Foto: Brent Stirton/Getty Images para a Human Rights Watch