As gigantes do comércio de commodities Cargill e Bunge compram parte da soja usada em ração para frangos e animais de estimação de terras onde comunidades indígenas sofreram violência e das quais foram expulsas, de acordo com uma nova reportagem da Earthsight, organização que investiga injustiças ambientais e sociais.
As duas empresas têm ligações com uma fazenda de soja de 9.700 hectares em Mato Grosso do Sul que opera nas terras ancestrais dos Guarani-Kaiowá, grupo indígena que passou as últimas décadas lutando contra a expulsão forçada.
A Earthsight documentou ligações entre as redes de fornecimento de soja da fazenda Brasília do Sul e varejistas de produtos de frango como KFC e redes de supermercados europeias, entre elas, Sainsbury’s, Asda, Aldi e Rewe Markt.
A Earthsight afirma que a Cargill e a Bunge precisam assumir uma postura mais firme quanto aos direitos indígenas, em vez de transferir a responsabilidade a intermediários ou consentir com o uso de brechas legais.
Duas das maiores produtoras agrícolas do mundo foram flagradas em mais um escândalo envolvendo o plantio de soja em terras ilegalmente tomadas de indígenas no Brasil.
Tanto a Cargill quanto a Bunge compram parte de seus produtos de soja, usados em mercadorias como ração para frango e animais de estimação, de terras onde comunidades indígenas sofreram violência ou das quais foram expulsas, de acordo com uma nova reportagem da Earthsight, organização que investiga injustiças ambientais e sociais.
“Falhas na posição da Cargill quanto aos direitos indígenas e na rastreabilidade dos fornecedores indiretos da Bunge expõem as redes de fornecimento das duas empresas norte-americanas bilionárias a ilegalidades e conflitos violentos, apesar dos compromissos que assumiram com os direitos humanos”, diz a reportagem da Earthsight.
A Cargill e a Bunge têm ligações com uma fazenda de soja de 9.700 hectares no Mato Grosso do Sul, que opera nas terras ancestrais dos Guarani-Kaiowá, grupo indígena que passou as últimas décadas lutando contra a expulsão forçada de seu território, diz o relatório.
A fazenda, chamada Brasília do Sul, envia soja diretamente para a instalação da Cargill em Caarapó, a cerca de 30 quilômetros dali, de acordo com o relatório. A soja também chega à unidade de processamento da Bunge no município vizinho de Dourados por meio de fornecedores indiretos.
A Earthsight analisou a rede de fornecimento e documentou as ligações entre a soja da Brasília do Sul e vendedores de produtos de frango, como KFC e redes de supermercados na Europa, entre elas Sainsbury’s, Asda, Aldi e Iceland. A reportagem também conectou a fazenda à ração para animais de estimação vendida por grandes supermercados alemães como o Rewe Markt, Netto Marken-Discount, Lidl, Aldi e Edeka.
Em 2003, o líder Kaiowá Marcos Veron foi morto por funcionários e atiradores contratados da Brasília do Sul depois de tentar reivindicar as terras de seu povo, diz a reportagem. A Brasília do Sul foi aos tribuinais para impedir que os Kaiowá retomem a terra pelos caminhos legais.
“Infelizmente essas empresas continuam fazendo isso”, diz Adriana Ramos, conselheira de políticas e legislação do Instituto Socioambiental, organização sem fins lucrativos que defende os direitos dos povos indígenas e tradicionais. “Elas ficam nessa posição como se não tivessem nenhuma responsabilidade.”
A reportagem da Earthsight dá sequência a uma investigação de maio que documentou a violência ocorrida na fazenda Brasília do Sul. Visitas recentes à área ajudaram a identificar quais vendedores de commodities – Bunge e Cargill – estavam comprando a soja.
As duas companhias, junto com a Archer Daniels Midland e a Louis Dreyfus, são as quatro maiores negociadoras de commodities agrícolas do mundo, respondendo por mais da metade de todo o comércio estimado do setor. De acordo com os registros de carregamentos obtidos pela investigação da Earthsight, só a Bunge exportou 17 milhões de toneladas de produtos de soja do Brasil para 16 países europeus entre 2014 e maio de 2022. A Cargill exportou mais de 13,7 milhões de toneladas, informou a reportagem.
Ambas as companhias passaram décadas se defendendo de acusações de negligência ambiental e violações aos direitos humanos, e não só no Brasil. Em 2019, a soja da Cargill foi identificada como um dos motores do desmatamento na região do Chaco, situada na Argentina, Bolívia e Paraguai.
Um porta-voz da Bunge disse à Earthsight que a fazenda Brasília do Sul não consta de sua base de dados. Um porta-voz da Cargill afirmou que a empresa estava ciente de que a soja vinha da área, mas também afirmou que a atividade da fazenda não violava as diretrizes da companhia. O governo brasileiro não concluiu a demarcação da Terra Indígena, disse a empresa, e, portanto, os produtos cultivados lá não estão sujeitos a restrições de compra.
“A área mencionada da fazenda Brasília do Sul ainda não foi regularizada, então não existe ilegalidade na produção local”, diz a declaração. “Se encontrarmos qualquer violação a nossas diretrizes e compromissos, o fazendeiro será imediatamente vetado de nossa rede de fornecimento.”
A violência e o desmatamento em Terras Indígenas aumentaram desde que o presidente Jair Bolsonaro assumiu o governo no início de 2019. Seu governo priorizou o agronegócio e os setores extrativistas em detrimento dos povos indígenas e tradicionais.
O governo Bolsonaro até agora não demarcou nenhuma Terra Indígena, apesar de a Constituição brasileira garantir os direitos dos povos originários à terra, diz Ramos. O longo processo de demarcação deu aos operadores do agronegócio uma brecha para continuar com práticas irresponsáveis enquanto criam mais barreiras para as comunidades que tentam obter proteções.
“Sob Bolsonaro, tudo relacionado aos direitos dos povos indígenas se tornou muito difícil”, diz Mauricio Santoro, professor de Ciência Política na Universidade Estadual do Rio de Janeiro. “O presidente disse que não demarcaria mais nem um centímetro de terra para eles. Ele colocou militares encarregados de muitos dos escritórios locais [da Funai] e deixou a instituição com poucos recursos para cumprir sua missão.”
Na reportagem, a Earthsight diz que a Cargill e a Bunge precisam assumir uma defesa firme dos direitos indígenas em vez de transferir a responsabilidade a intermediários ou infringir a lei brasileira. Ela também afirma que as companhias precisam melhorar o rastreamento de seus produtos, e averiguar se eles contribuem com a violência contra comunidades vulneráveis.
“A posição pouco incisiva da Cargill e da Bunge quanto aos direitos dos povos indígenas ou à rastreabilidade significa que os consumidores na Europa e em outros lugares que compram frango, carne de porco, laticínios e outros produtos ligados às cadeias de fornecimento de soja muitas vezes contribuem involuntariamente com a violência e a marginalização experimentadas pelas comunidades indígenas”, diz a reportagem.
Imagem do banner: Colheita de soja no Centro-Oeste. Foto: Wenderson Araujo/Trilux