Há mais de 50 anos, os Xavante lutam para retomar a soberania da Terra Indígena Marãiwatsédé, em Mato Grosso. O mais recente obstáculo são os planos do governo federal de asfaltar a BR-158, rodovia que atravessa a reserva bem ao meio.
Marãiwatsédé é a terra indígena mais desmatada da Amazônia Legal: cerca de 75% de sua vegetação nativa já foi derrubada. Os Xavante suspeitam que, por trás do asfaltamento, esteja o desejo do governo federal de autorizar o arrendamento de parte da reserva a pecuaristas da região.
Em 2009, os Xavante começaram uma longa negociação com órgãos do governo para definir alternativas ao traçado original. Foi decidido que a BR-158 contornaria a reserva por fora, a leste de seus limites. Mas o Ministério de Infraestrutura do governo de Jair Bolsonaro não apoia a alteração. O impasse tem resultado numa escalada de tensões na região.
A sina que atormenta os Xavante no nordeste de Mato Grosso parece longe do fim. Há mais de 50 anos, os indígenas lutam para retomar a soberania da Terra Indígena (TI) Marãiwatsédé, com 1.650 km2 de área, no vale onde as bacias dos rios Araguaia e Xingu se encontram. Hoje, seu maior obstáculo é uma rodovia inacabada que corta suas terras, a BR-158. A tensão na reserva vem crescendo e o governo federal não colabora para resolver o impasse. Pelo contrário: o Ministério de Infraestrutura insiste no atual trajeto, o que já acarretou uma série de ameaças aos indígenas.Em 19 de novembro passado, o governo incluiu os 121 km de terra batida da BR-158 que cortam a TI Marãiwatsédé na lista de prioridades para futuras concessões.
“Como [o governo] vai decidir sobre a rodovia sem ouvir nós? Não pode derrubar uma árvore aqui sem perguntar para a gente. Parece que querem fazer tudo sem consultar o índio”, disse à Mongabay o cacique Damião Paridzané, liderança histórica da etnia.
À BR-158, estão associados problemas como invasões e queimadas criminosas no pouco que resta das matas nativas em Marãiwatsédé. Segundo dados do Prodes, a reserva é hoje a terra indígena mais desmatada da Amazônia Legal, com perda acumulada de 75,7% de sua vegetação. O que restam são “ilhas” com resquícios de uma vegetação ímpar, característica da transição entre os biomas da Amazônia e do Cerrado.
O cacique Damião se exalta ao falar sobre os planos do governo de pavimentar o traçado original da BR-158: “quando vão cumprir o que prometeram, levar essa rodovia para longe?” O acordo a que Paridzané se refere nada mais é que um desvio no trajeto, fazendo a rodovia contornar a reserva, e não mais atravessá-la ao meio.
Em 2009, os Xavante começaram uma longa negociação com o Departamento Nacional de Infraestrutura de Transportes (DNIT), a Fundação Nacional do Índio (Funai), o Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e Recursos Renováveis (Ibama) e o Ministério Público Federal para definir alternativas ao traçado original. Foi decidido então que a BR-158 poderia ser desviada ao leste da reserva.
Mesmo que a passos lentos, o projeto avançou com autorizações ambientais para as obras. Mas o Ministério de Infraestrutura do governo de Jair Bolsonaro não apoia a alternativa.
À Mongabay, a pasta confirma que o plano é mesmo asfaltar os 121 km que cortam a reserva. Por outro lado, o ministério garantiu que seguirá “todo o rito legal, incluindo a participação das comunidades indígenas”.
Outros envolvidos no impasse não quiseram comentar – como no caso da Secretaria de Infraestrutura de Mato Grosso e das prefeituras de Alto Boa Vista, Bom Jesus do Araguaia e São Félix do Araguaia, municípios que abrigam a terra indígena.
Acordos desfeitos e uma promessa de guerra
A luta dos Xavante pelas suas terras está intimamente ligada à BR-158. A rodovia simboliza um trauma causado durante a ditadura: em 1966, cerca de 400 membros da etnia foram colocados em aviões militares e expulsos de seu território. A área foi esvaziada justamente para a abertura da BR-158.
“A rodovia faz parte da história dos Xavante e da luta para retomarem seu território”, diz o procurador da República Wilson Rocha Assis. Ele atuou no Ministério Público Federal em Barra do Garças (MT), onde trabalhou pela reparação às violações contra a etnia.
O procurador também participou da elaboração do trajeto alternativo da BR-158. Para ele, a insistência no traçado original é um “equívoco”. “O contorno leste seria um ganho para todos, porque diminuiria as ameaças sobre Marãiwatsédé enquanto integraria municípios que estavam de fora, como Serra Nova Dourada (MT), fortalecendo a economia local”, diz Assis, que atua hoje em Goiás.
O ministro de Infraestrutura, Tarcísio Gomes, discorda. Para ele, a manutenção do traçado em plena terra indígena é, acima de tudo, uma questão econômica.
Em junho de 2019, ele discutiu o impasse com o diretor-geral do DNIT, Antônio Leite dos Santos Filho, e com políticos mato grossenses alinhados ao agronegócio – como o governador Mauro Mendes (DEM), o deputado federal Neri Gueller (PP) e o ruralista Carlos Fávaro (PSD).
Na ocasião, Gomes explicou que o plano é substituir as pontes de madeira dentro da reserva por estruturas de concreto, além de concluir a pavimentação dos 121 km que atravessam Marãiwatsédé. “Nós vamos enfrentar o que for preciso, mas a BR-158 será pelo traçado original, que tem mais racionalidade econômica… É por isso que nós vamos brigar. Enfrentar é conosco”, disse o ministro.
A briga pode acontecer de modo literal. Não faltam avisos, pois os Xavante estão dispostos às últimas consequências caso o desvio não saia do papel: “que fique claro que a nossa decisão é a de destruição das pontes que cortam o nosso território. Sabemos que essa ação irá causar conflitos, mas é a única alternativa que nos resta”, disseram os indígenas em uma carta enviada ao DNIT ainda em 2018.
Um dos filhos do cacique Damião, Cosmo, também criticou o legado da rodovia na reserva. “Eu, como indígena, que vivo no dia a dia com a minha comunidade, digo que a nossa situação é precária. Essa estrada está sendo utilizada sem dono da terra… Estão atendendo só a pessoas que têm interesse econômico”, disse ele em uma audiência pública no Congresso. À época, parlamentares insistiam na controversa pavimentação.
Em julho passado, o Ministério Público subiu o tom e cobrou agilidade na resolução do impasse. O órgão entrou com um processo para que o governo interdite de vez o trecho dentro de Marãiwatsédé. Para o MPF, o asfaltamento vai facilitar novas invasões e outras ameaças, e ainda sugere que as exigências dos Xavante não mobilizam o governo federal.
“A pavimentação terá um irremediável impacto na ordem fundiária da região e impossibilita que o Poder Público cumpra suas obrigações frente aos Xavantes”, diz na ação o procurador da República Everton Pereira Aguiar Araújo.
No processo, ele ainda defende que é “evidente a correlação entre a existência de acesso viário [a BR-158] e a ocorrência de danos à terra indígena”, e critica o governo ao dizer que a sua “maior preocupação é a manutenção da BR-158 e que outras questões são acidentais”. A ação tramita na Justiça Federal em Mato Grosso, sem qualquer decisão até agora.
Uma história de invasões, resistência e violência
A BR-158 também foi palco de um conflito que deixou profundas cicatrizes no povo Xavante. Bem na encruzilhada com a BR-242, aconteceu a maior invasão na reserva, em 1992, e ali foi fundado um vilarejo chamado de Posto da Mata.
Depois de uma epopeia de 20 anos no Judiciário, o Supremo Tribunal Federal (STF) determinou que os invasores fossem expulsos. Entre 2012 e 2014, os indígenas retomaram a área com apoio da Força Nacional, do Ministério Público e da Polícia Federal. Mas cerca de 2 mil pessoas resistiram e houve uma perigosa escalada na tensão.
“Eles [invasores] entraram em uma sede da Funai dentro de Marãiwatsédé e a incendiaram totalmente – destruindo documentos, equipamentos e tudo mais que existia”, diz o procurador Wilson Assis, que atuou no caso.
À época, figuras como o cacique Damião Paridzané, o bispo emérito de São Félix do Araguaia (MT), Dom Pedro Casaldáliga, além de servidores da Funai, foram ameaçados de morte. O vale do Araguaia-Xingu é repleto de assassinos de aluguel e pistoleiros desde os anos 1960.
Na ocasião, o Ministério Público acusou 13 pessoas de integrarem uma organização criminosa que coordenava as invasões. Na denúncia, o MPF alegou que este grupo manipulava a opinião pública nos municípios vizinhos à reserva, como Alto Boa Vista e São Félix do Araguaia, com o objetivo de favorecer grandes fazendeiros e políticos locais.
O esquema criminoso respingou até no Congresso. A investigação revelou laços entre os mentores das invasões e deputados em Brasília – o STF chegou a abrir uma investigação sobre o caso. Em 2016, o inquérito foi arquivado a pedido do ministro Dias Toffoli, sob segredo de justiça.
Não à toa, a traumática expulsão dos invasores virou bandeira política na região. A situação chegou a tal ponto que o Ministério Público teve de se pronunciar sobre o impasse no início de 2019, prometendo “resposta enérgica e eficaz” em caso de qualquer ataque ou reocupação do antigo Posto da Mata.
Para o cacique Damião, o clima de tensão de hoje serve apenas para afrouxar a soberania dos indígenas em relação às suas terras.
Em particular, os Xavante acreditam que o governo federal quer autorizar o arrendamento de parte da reserva a pecuaristas no Araguaia-Xingu. Jair Bolsonaro, vale lembrar, não esconde sua simpatia pelo arrendamento de terras indígenas.
“Eles pensam que a gente é bobo? Se arrendar para um, entra outro e mais um monte. O que a gente quer é apoio, ajuda de verdade da Funai para cuidar da nossa terra”, diz o cacique Damião.