No coração da Rocinha, na zona sul do Rio de Janeiro, uma descoberta acidental levou um morador a criar um projeto que busca dar um destino sustentável ao descarte indevido do óleo de cozinha.
Criada em 2020, a iniciativa Óleo no Ponto aproximou moradores da favela dos cuidados com o meio ambiente, gerando produtos de limpeza ecológicos — como sabão em barra, itens para lavar louça e detergentes — a partir do reúso de resíduos.
Além de evitar o despejo de compostos poluentes na água e o entupimento das tubulações de esgoto, o projeto empodera mulheres vulnerabilizadas da Rocinha, que encontraram novas fontes de renda na produção e venda do “Sabão do Morro”.
Segundo dados oficiais, dentre as mais de 12 mil favelas e comunidades do Brasil, a Rocinha, na zona sul do Rio de Janeiro, detém o posto de maior do país. Com pouco mais de 72 mil habitantes, o local também lidera em quantidade de domicílios ocupados — são mais de 30 mil residências.
A Rocinha surgiu no início do século 20, mas foi a partir da década de 1950 que sua população aumentou de forma acentuada, sobretudo pela chegada de brasileiros de outros estados, que migraram à capital carioca em busca de trabalho. Ao longo dos anos, enquanto a favela se expandia, uma estrutura econômica e social própria ganhava corpo.
Nesse contexto, a Rocinha também passou a ser um terreno fértil para projetos locais que se propõem a unir sustentabilidade, impacto social e desenvolvimento comunitário. Muitos deles, como conta Marcelo Santos, surgiram “por acaso”. Nascido e criado na favela, o empresário e líder comunitário, de 43 anos, disse que a ideia que mudou sua vida — e o entorno dela — tomou forma quando visitou o Complexo Esportivo da Rocinha, acompanhado do professor de biologia Márcio Aroeira, em 2020.
Juntos, eles notaram que havia uma massa densa em um dos reservatórios de água que desembocam no ginásio. O biólogo tocou o fluido com a ponta dos dedos, chegando a um rápido veredito: tratava-se de resíduo de óleo de cozinha, fruto do descarte incorreto do material doméstico. “Ele me explicou que aquilo era um grande contaminador do meio ambiente. Então, fui buscar entender o grau de contaminação do óleo, o nível de prejuízo à saúde e a questão ambiental [envolvida]”, disse Santos.
Meses depois, após fazer pesquisas e estabelecer contato com profissionais do setor químico, Marcelo criou o projeto Óleo no Ponto, uma ação comunitária que estimula a coleta adequada do óleo de cozinha usado nas residências. A proposta visa transformar o resíduo descartado em produtos de limpeza, criando fontes alternativas de renda, sobretudo para mulheres da região que vivem em situação de vulnerabilidade social.

A sede está localizada em um Centro Integrado de Educação Pública (Ciep), no coração da Rocinha. Ali funciona uma pequena fábrica, abastecida pela coleta do produto descartado, além de um ponto de venda dos produtos produzidos a partir do reúso e tratamento do óleo.
De acordo com o fundador, antes da criação do projeto, o descarte impróprio era “muito comum”, o que abriu margem para a criação de um trabalho de reeducação ambiental. No começo, também foi necessário atrair a atenção dos moradores e dar tração à iniciativa. Com isso em mente, Santos ofereceu cestas básicas em troca de 20 litros de óleo usado.
Seu objetivo inicial era evitar que o líquido fosse despejado em pias, vasos sanitários ou mesmo no lixo comum, um hábito que gera um enorme dano ambiental. Segundo a Companhia de Saneamento Básico do Estado de São Paulo (Sabesp), um único litro de óleo pode poluir até 25 mil litros de água; a entidade estima que 100 milhões de litros da substância sejam jogados no ralo de forma irregular todo mês no Brasil, aumentando o custo e o gasto de energia e agravando a crise climática.

Para Santos, além do impacto ambiental, o despejo incorreto costuma obstruir tubulações e passagens de águas pluviais, levando compostos poluentes ao oceano e comprometendo áreas litorâneas, como a Praia de São Conrado, que está há anos contaminada pelo esgoto da Rocinha. A partir das propostas do Óleo no Ponto, o criador também acredita que convidou muitos moradores a entender a importância dos cuidados com o meio ambiente — sendo esse um de seus principais objetivos.
Em 2021, o empreendimento passou por um “ponto de virada”. Por meio de um edital aberto pela Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado do RJ (Faperj), o projeto recebeu R$ 350 mil, como parte de um incentivo a propostas ambientais que aliam tecnologia, inovação e energia renovável dentro das favelas. A quantia permitiu que Marcelo e sua esposa Adriana, atual coordenadora, investissem em novas pesquisas, funcionários qualificados, novos maquinários, insumos e outros itens para o desenvolvimento da empresa.
Desse salto produtivo, nasceu um nome: “Sabão do Morro”, marca que se tornaria o rosto do modelo de negócio da família Santos. Com o tempo, o óleo processado entre as casas da Rocinha foi transformado em material para lavar louça e roupa, entre outras atividades domésticas, sendo vendido em barra ou em pasta — e até mesmo como detergente e desinfetante.

“Hoje, somos certificados pelo Conselho Regional de Química (CRQ). Nosso público-alvo são as mulheres: queremos ‘dar a vara para elas pescarem o seu próprio peixe’”, disse Adriana. Em entrevista à Mongabay, a coordenadora explica que as mulheres da comunidade passam por uma oficina de capacitação de três meses, por meio da qual aprendem a produzir o material de limpeza ecológico. “Muitas começam a trabalhar no projeto e, depois, vão produzi-los por conta própria, revendendo em outros locais.”
Uma rede de múltiplos benefícios
O ciclo de coleta do óleo de cozinha começa quando os moradores armazenam o excedente da fritura caseira em garrafas PET e o depositam em postos especializados. Na sede do Ciep, a máquina receptora conta com um sistema de “moeda social”, permitindo que o líquido descartado seja trocado por unidades do Sabão do Morro. “É algo excelente para toda a comunidade”, disse a atendente comercial Sueli Farias, referindo-se à geração de novos empregos e à melhora do funcionamento do sistema de saneamento local.
A máquina de coleta tem capacidade para armazenar até 220 litros de óleo e sua utilização envolve passos simples desde o primeiro uso. Em um painel digital, o morador insere o número de celular e recebe uma mensagem de texto, que traz orientações sobre o cadastro e os pontos acumulados. Na tela do equipamento também são disponibilizadas informações sobre a quantidade de resíduo coletada — determinando os “pontos” para a troca.
Em seguida, o equipamento faz a filtragem do óleo depositado, detectando possíveis elementos que não servem para a conversão em artigos ecológicos. Por mais que se tente, não há como enganar a máquina: caso alguém se arrisque a “completar” a garrafa com água, a fim de aumentar o volume, a tecnologia rapidamente identifica compostos indesejados.

Para restaurantes, bares e lanchonetes, que trabalham com grandes quantidades de fritura, o projeto disponibiliza barris de até 18 litros, que são recolhidos tão logo estão cheios. Assim que um galão carregado sai, um recipiente vazio toma seu lugar, mantendo o ciclo em funcionamento. “Temos uma gama enorme de comércios por aqui, principalmente de restaurantes e [pontos de] venda de salgados [fritos]”, disse Santos.
Atualmente, nove moradores da Rocinha se revezam no processo de produção dos itens de limpeza. Durante a etapa de criação dos sabões e derivados, utiliza-se o óleo recolhido, soda cáustica, essências aromáticas e sódio. Segundo os profissionais, cinco litros podem render até 23 barras de sabão, posteriormente vendidas a cerca de R$ 2 por unidade, tanto nas lojas do Ciep quanto em pequenos mercados da região. Os itens também são anunciados em redes sociais e podem chegar aos moradores por um sistema de entregas.
Segundo Adriana, cerca de 150 unidades de sabão em pasta são fabricadas por semana. Entre os produtos mais vendidos estão aqueles utilizados para lavar louça, fruto da alta demanda de comerciantes locais: ela estima que 1.200 unidades são comercializadas mensalmente. “Temos clientes que são donos de restaurantes na Rocinha. Às vezes, eles usam 40 [unidades de sabão lava-louças] por semana”. Há, porém, um campeão de vendas: o sabão em barra. Cliente antiga, a moradora Dora Almeida disse à reportagem que utiliza “toda a linha” à disposição.
E reforça: “É uma boa ideia porque estamos evitando que o óleo vá para o esgoto.”

A busca por ampliar soluções ambientais
De olho em expandir sua rede de sustentabilidade, os idealizadores do projeto firmaram quatro parcerias-chave nos últimos meses. Entre os parceiros estão dois grandes hotéis e dois shoppings do Rio de Janeiro. Em função da grande estrutura de ambos, cada estabelecimento conta com um recipiente capaz de armazenar até 80 litros de óleo. A participação deles na rede de reúso está alinhada aos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS) da ONU, um tema caro às redes hoteleiras que se dizem comprometidas com ações socioambientais em sua cadeia de serviços.
Na esteira dessas mudanças, o volume de material arrecadado aumenta. De acordo com o Óleo no Ponto, entre janeiro de 2024 e março de 2025, cerca de 14,4 mil litros de óleo foram recolhidos, somando todos os pontos de coleta. Desde abril, data de início da parceria com a rede hoteleira, a média mensal aumentou cerca de 50%, chegando a 1.800 litros mensais. Ato contínuo, a atividade contribui para a geração de renda de mais mulheres da comunidade: desde o ano passado, elas participaram da criação de mais de 5 mil itens.

Ao falar do futuro, Adriana diz que busca colocar o Sabão do Morro nas prateleiras de grandes supermercados da cidade. “Essa semente que a gente planta não sou eu que vou colher. Estamos tentando educar as próximas gerações”, disse. “A base são as crianças. Por isso, insistimos em dar palestras [sobre sustentabilidade] nas escolas.”
Para a engenheira ambiental Amanda Caroline Sousa, o projeto nascido na Rocinha gera benefícios ambientais significativos, baseado no que ela chama de “tripé da sustentabilidade” — cujos pilares são aspectos sociais, econômicos e ambientais. “Promover uma solução para o descarte do óleo é, também, aplicar na prática os princípios da Política Nacional de Resíduos Sólidos, que está inserida no conceito de economia circular.” Segundo a especialista, isso ocorre “quando um resíduo é reinserido como matéria-prima em outro processo produtivo — neste caso, o sabão”.
A transformação ambiental em andamento também beneficia a Praia de São Conrado, destino do lixo que, no caso de entupimento dos canos, pode descer morro abaixo durante fortes temporais, causando acidentes em ruas e estradas próximas da favela. Hoje, segundo Marcelo, busca-se mudar essa realidade de forma estrutural. “Ao retirarmos esse óleo das praias, ruas e bueiros, também levamos segurança para as pessoas.”
Com uma ideia quase acidental, Marcelo Santos empreendeu e buscou transformar um problema incômodo em solução, minimizando o despejo de resíduos nocivos ao meio ambiente e criando janelas de inclusão. Seus planos não param por aí: ele ainda sonha com mais polos de coleta, capacitações contínuas e em conquistar o apoio de entidades ambientais e de novas políticas públicas. Ao trilhar esse caminho, o impacto da pequena fábrica poderá ser amplificado, permitindo a criação de novos produtos e fazendo-os chegar a outros locais do Rio de Janeiro — onde sustentabilidade e empoderamento econômico também seriam muito bem-vindos.
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Imagem do banner:Vista aérea da favela da Rocinha. Foto: Chensiyuan, CC BY-SA 4.0, via Wikimedia Commons.