Pesquisas recentes revelaram contaminação humana por agrotóxicos no Cerrado, seguindo um estudo anterior que também havia encontrado contaminação em antas da região.
O novo estudo mostra como os animais estão fornecendo informações e modelo para pesquisas com humanos, ao mesmo tempo em que enfatiza que o estresse sofrido pelo maior mamífero terrestre da América do Sul também é evidenciado nas pessoas.
Apesar de inspirarem pesquisas sobre a saúde humana, as próprias antas não estão livres dos desafios à sua sobrevivência impostos pelas ações humanas; a espécie é classificada como vulnerável pela Lista Vermelha da IUCN.
A ex-presidente do Ibama diz que a aprovação de um projeto de lei que flexibiliza o uso de agrotóxicos no Brasil pode agravar situações como as relatadas pelos pesquisadores.
Era 2015 quando pesquisadores tentavam capturar antas (Tapirus terrestris) no Cerrado para instalar coleiras de monitoramento para estudar a espécie. Enquantotentavam realizar o procedimento anestésico, eles notaram que a anestesia não estava funcionando e, por isso, tiveram que suplementar as doses para que o procedimento fizesse efeito.
Esse foi o catalisador de pesquisa que revelou, anos depois, que as antas da região estavam contaminadas com vários tipos de agrotóxicos e apresentavam alterações em órgãos importantes para o metabolismo. Na época, os pesquisadores levantaram a hipótese de que algo no corpo das antas estava interferindo na anestesia. Uma possibilidade era a exposição a pesticidas, que está ligada a alterações no processo metabólico. Agora, outra hipótese levantada pelos pesquisadores na época foi confirmada: moradores da mesma região também apresentam contaminação por agrotóxicos.
As descobertas sobre as antas levaram os pesquisadores a coletar amostras biológicas de cerca de 100 moradores das proximidades, e mais de 30 pessoas apresentaram resultados positivos para algum tipo de pesticida, com mais de um produto químico presente em alguns casos. O agrotóxico mais utilizado no Brasil, o glifosato, foi encontrado em mais de 20 pessoas.
O trabalho, divulgado em um relatório técnico em fevereiro, foi conduzido por pesquisadores da Iniciativa Nacional para a Conservação da Anta Brasileira (Incab) do Instituto de Pesquisas Ecológicas (IPÊ), que estão preparando um artigo sobre a pesquisa para publicação em uma revista científica.
Esta pesquisa mostra como os animais estão fornecendo informações e inspiração para estudos com humanos, o que é mais um exemplo da importância dos animais para o planeta e para as pessoas. As descobertas enfatizam que o estresse sofrido pelo maior mamífero terrestre da América do Sul também é evidenciado nos humanos.
Links potenciais: pesticidas e danos a órgãos
Patrícia Medici, co-fundadora do IPÊ, coordenadora da Incab e uma das maiores especialistas em antas do mundo, disse à Mongabay em uma chamada de vídeo que a dosagem necessária de anestesia para um animal depende de sua taxa de metabolismo. Ela enfatiza a importância de órgãos como o fígado e os rins nesse processo, afirmando: “Se esses órgãos estão lesionados, o metabolismo acontece de umaforma diferente, o que leva, então, esse processo de anestesia a ocorrer de uma forma diferente”.
Em relação às antas capturadas pela Incab no Cerrado, Medici observa que “foi necessário utilizar maiores quantidades dos agentes anestésicos”, levantando a hipótese de que esses animais poderiam apresentar alterações nesses órgãos, possivelmente devido à contaminação por agrotóxicos.
Em um estudo realizado entre 2015 e 2017, que envolveu a necropsia de antas mortas em acidentes de trânsito na região, os pesquisadores da Incab encontraram evidências que ajudaram a confirmar a suspeita. “O que a gente mais encontrou foram as lesões de fígado, as lesões de rins e lesões também estomacais”, diz a pesquisadora.
O trabalho, posteriormente publicado na revista Wildlife Research, documentou a contaminação dos animais testados por diversos tipos de pesticidas, como inseticidas e herbicidas, além de metais.
Medici reconhece que, embora as evidências indiquem uma conexão, ainda não é possível afirmar que as lesões encontradas resultaram da contaminação por pesticidas. Ou seja, são necessárias mais investigações, diz ela. “O contexto nos leva a crer que estão relacionadas, mas não fizemosnecropsias em outros biomas para comparar amostras”, diz ela. “Apenas comparando com uma amostra controle que poderíamos afirmar com certeza.”
Contaminação humana
A recente pesquisa da Incab em humanos foi realizada em uma área de 2.200 quilômetros quadrados, a mesma área onde foi realizado o estudo com as antas, nos municípios de Nova Alvorada do Sul e Nova Andradina, no Mato Grosso do Sul. Medici caracteriza a área como um “grande mosaico”, abrangendo vários usos da terra, desde plantações de eucalipto e rodovias até grandes fazendas do agronegócio, com a cana-de-açúcar como cultura predominante, bem como assentamentos onde é praticada a agricultura familiar em pequena escala.
Durante um período de uma semana em 2023, os pesquisadores coletaram amostras biológicas, como sangue e urina, de 94 moradores, principalmente pequenos produtores rurais envolvidos na agricultura e pecuária, com idades entre 19 e 73 anos, em áreas próximas ao local no qual antas contaminadas por agrotóxicos haviam sido encontradas anos antes. Os participantes do estudo também passaram por uma consulta e foram entrevistados para identificar possíveis contatos anteriores ou atuais com pesticidas.
A pesquisa constatou que 36 dos indivíduos amostrados estavam contaminados com resíduos de algum tipo de produto tóxico, com a detecção de cinco pesticidas diferentes, incluindo glifosato e malation, que os pesquisadores da Incab consideram ser os principais pesticidas detectados.
Especificamente, foi constatado que 25 indivíduos, ou 32%, dos 78 amostrados para glifosato em amostras de urina estavam contaminados pelo pesticida com valores “acima do esperado”, diz o relatório da Incab, ou seja, acima de 0,6 μg/l. Entre eles, alguns apresentaram contaminação cruzada, como o glifosato-malation.
A pesquisa revelou ainda a contaminação por metais pesados em 22 dos 94 indivíduos amostrados, tendo18 testadopositivo para mercúrio e quatro para cobre. O último apresentou concentrações que excederam o limite máximo esperado, conforme declarado pela Incab. “O limite de cobre no sangue humano pode variar entre 60 e 140 ug/dL”, afirma a Incab em um comunicado à imprensa, citando referências do Centro de Assistência Toxicológica. “Um dos positivos para esse metal atingiu 223 ug/dL”, acrescenta.
O relatório dos pesquisadores afirma que a literatura científica carece de informações sobre o efeito do que eles chamam de “coquetel de agrotóxicos”, ou a sinergia potencial entre pesticidas e metais, mas diz que há evidências de que, em casos de intoxicação mista, os efeitos podem ser exacerbados.
Origem da contaminação
“Tanto o animal silvestre quanto o ser humano estão expostos, estão sendo intoxicados”, diz à Mongabay o médico Maurício Antônio Pompilio, doutor em doenças infecciosas e professor da Faculdade de Medicina da Universidade Federal de Mato Grosso do Sul (UFMS), na videochamada da qual Medici também participou, confirmando a hipótese levantada durante o estudo inicial que detectou agrotóxicos nas antas do Cerrado.
Como membro da equipe multidisciplinar autora do recém-publicado relatório da Incab, ele afirma que a contaminação humana pode ter ocorrido tanto individualmente, durante o trabalho agrícola sem o uso adequado de equipamentos de proteção individual, quanto coletivamente, influenciada por culturas de grande escala, como a cana-de-açúcar e a soja. Ele nota que isso é observado principalmente através de relatos da população amostrada de que eles “de fato viram… aeronaves fazendo a pulverização em áreas próximas”.
A pesquisa indica que mais de um terço dos indivíduos amostrados relatou morar ou trabalhar em áreas próximas a áreas de aplicação de pesticidas e que, notavelmente, 30% relataram ter testemunhado a pulverização aérea de pesticidas. “Destes, 21% afirmaram estar nas proximidades da área pulverizada no momento da aplicação”, observa o relatório da Incab.
Pompilio destaca que a contaminação por agrotóxicos pode afetar o fígado, os rins e o trato gastrointestinal, causando sintomas como náuseas, vômitos e diarreia. “Sem contar, por exemplo, a própria irritação da pele, dos olhos”.
Ele diz que o sistema nervoso e a função motora muscular também sofrem significativamente, podendo levar a consequências graves, incluindo coma ou morte. O pesquisador também enfatiza que alguns pesticidas “facilitam o desenvolvimento do câncer no organismo”.
Um exemplo importante é o glifosato, que a Agência Internacional de Pesquisa sobre o Câncer da Organização Mundial da Saúde classifica como possivelmente carcinogênico para os seres humanos. O glifosato é o principal ingrediente do Roundup, um produto fabricado anteriormente pela Monsanto. A empresa, agora extinta, está envolvida em vários processos judiciais alegando que seu herbicida é responsável por causar câncer.
Uma espécie sentinela
A recente pesquisa da Incab exemplifica como os seres humanos não estão separados do meio ambiente e, consequentemente, do impacto de seu avanço sobre áreas naturais. Em uma paisagem compartilhada, investigação sobre uma espécie pode levar a descobertas sobre outra. Nesse caso, aspectos da saúde humana foram revelados a partir de aspectos da saúde da anta, um herbívoro grande, de vida longa e de grande alcance, que se alimenta de uma grande variedade de plantas, sementes e frutos.
Medici, a co-fundadora do IPÊ, diz que a espécie consome de 7 a 10 quilos de frutas por dia. Ela observa que as antas cobrem grandes distâncias, às vezes percorrendo até 10 quilômetros em uma única noite de busca de alimentos. “Enquanto que agora ela está aqui na floresta, daqui a pouco ela está cruzando um plantio de cana-de-açúcar.”
Esse comportamento torna as antas dispersoras de sementes cruciais, pois as sementes que elas ingerem são transportadas por grandes distâncias. “Com isso, ela está brincando com a diversidade, com a biodiversidade dessas áreas onde ela se encontra”, explica a pesquisadora.
Ela diz que uma floresta onde as antas estão presentes é completamente diferente de uma onde elas eventualmente venham a se extinguir. “Ela mantém a integridade da diversidade da floresta e do habitat onde ela se encontra.”
A espécie serve como um indicador do ambiente ao seu redor e atua como uma espécie sentinela, passando por várias paisagens ao longo de suas jornadas. O que a anta experimenta, outras espécies também experimentam, inclusive os seres humanos. “A anta é o próprio termômetro”, acrescenta Medici.
Inspiradoras, mas cada vez mais ameaçadas
Apesar de inspirarem estudos sobre pessoas, as antas sentinelas não estão livres dos desafios impostos à sua sobrevivência pelas ações humanas. Classificada como ameaçada tanto pela Lista Vermelha da IUCN (sigla em inglês para União Internacional para a Conservação da Natureza) quanto pela lista nacional de espécies ameaçadas de extinção, a espécie é qualificada como Vulnerável (VU) à extinção.
No Cerrado, por exemplo, onde é classificada como Em Perigo (EN), a espécie enfrenta inúmeras ameaças, incluindo a caça para carne e outros fins; perda de habitat devido à conversão de paisagens naturais para pecuária e cultivo de culturas como soja, cana-de-açúcar e milho; incêndios florestais; atropelamentos; e, conforme demonstrado pela Incab, contaminação por pesticidas.
Medici explica que, apesar do desafio de determinar com precisão o impacto da exposição a pesticidas nas antas, a realidade da espécie no Cerrado é de saúde comprometida. “Que porcentagem disso se deve aos agrotóxicos? Você precisa me dar mais alguns anos para eu te responder essa pergunta com firmeza.”
Pesquisa já sugere que a anta no Cerrado é menos saudável do que na Mata Atlântica e no Pantanal. A pesquisadora diz que esse declínio na saúde faz com que o animal morra mais cedo e se reproduza com menos frequência. “Enquanto que no Pantanal a gente detectou algumas fêmeas adultas reprodutivas com 26, 27 anos de idade, ou seja, os animais com um histórico de vida bastante longo e reproduzindo durante o decorrer dessa vida tão longeva, , no Cerrado a gente não detectou nenhuma anta com mais de 16 anos de idade.”
De acordo com o MapBiomas, até 2022, metade do Cerrado já havia sido significativamente alterada por atividades humanas, em comparação com apenas cerca de 15% no Pantanal. Todo esse cenário impõe desafios à sobrevivência da T. terrestris, sendo um deles a fragmentação de habitat.
Medici explica que, em um ambiente com populações estabelecidas, essa fragmentação resulta na sua desconexão uma das outras.
A pesquisadora enfatiza que na área de pesquisa da Incab, localizada na região do Cerrado do Mato Grosso do Sul, não há populações estabelecidas devido à insuficiência de habitat para “populações de fato”. Ela descreve a área como uma paisagem já moldada pela perda de habitat, onde apenas cerca de “20% a 25%” são de fato habitat remanescente para o animal.
Ela lembra que, durante o estudo anterior sobre a anta, a região estava passando por uma transição da pecuária para o cultivo de soja. “Muitos produtores da região estavam nesse processo de transição e continuam até os dias de hoje. Esse é um fenômeno que a gente tem visto por todo o Brasil, inclusive.”
A pesquisadora ressalta a difícil situação das antas na região, afirmando: “A gente costuma dizer que o que a gente tem ali no Cerrado são indivíduos vagandopor aquela paisagem, buscando formas de sobreviver”.
A desregulamentação do uso de pesticidas
O Brasil é líder mundial no uso de pesticidas, segundo dados de 2021 da FAO. Naquele ano, o país utilizou mais de 719 mil toneladas de pesticidas, seguido de perto pelos Estados Unidos, com mais de 457 mil toneladas.
Suely Araújo, ex-presidente do Ibama, diz à Mongabay em entrevista por telefone que o Brasil usa pesticidas em excesso e argumenta que deveria haver um controle mais rigoroso sobre seu uso, bem como sobre seus efeitos na vida selvagem. “O problemaé que a legislação se tornou mais flexível no lugar de mais rígida”, diz ela, referindo-se à aprovação, no final de 2023, do PL 1459/2022, conhecido como “PL do Veneno”, que permitiu maior flexibilidade no uso de agrotóxicos em todo o país.
O projeto, prioritário da bancada ruralista, flexibiliza as restrições à venda e ao uso de uma ampla gama de agrotóxicos, muitos dos quais podem causar doenças, mutações e alterações hormonais. Ele também relega a aprovação de novos agrotóxicos a uma análise de risco, que especialistas como Araújo dizem não ter conhecimento de como será realizada.
O PL do Veneno foi promulgado pelo presidente Lula no início deste ano, com vetos que, embora importantes, não resolvem o problema, diz Araújo, que atualmente é especialista sênior em políticas públicas no Observatório do Clima. “Essa era uma lei que não deveria ter sido aprovada”, diz ela. “A lei continua com um problema sério do ponto de vista de saúde pública e de meio ambiente.”
“O que é permitido de glifosato na nossa água de beber aqui no Brasil é 5.000 vezes maior do que o pessoal lá na Europa têm na água que eles bebem”, acrescenta Medici, argumentando que até os laboratórios que analisam alimentos e água empregam parâmetros de referência elevados e flexíveis. “Até mesmo botar número e comprovar que o que está presente não é adequado é difícil aqui no nosso país.”
No Brasil, líder mundial no uso de pesticidas, de acordo com dados da FAO de 2021, um estudo sugere que as antas no Cerrado são menos saudáveis do que na Mata Atlântica e no Pantanal. Foto: Victor Sanches/Incab/IPÊ
A pesquisadora defende que deve haver uma discussão séria sobre os níveis seguros de exposição a pesticidas no Brasil, bem como os limites de detecção dessas substâncias na água e nos alimentos consumidos no país. “Essa discussão é urgente; é para ontem, precisa acontecer.”
Araújo, que afirma que a aprovação do PL do Veneno pode piorar situações como as relatadas pelos estudos da Incab, é enfática. “Estamos falando do direito à vida dos animais, mas das pessoas também.” Foto: Victor Sanches/Incab/IPÊ
A Mongabay entrou em contato com o Ministério da Agricultura, solicitando comentários sobre o recente relatório técnico da Incab e suas recomendações para melhorar o monitoramento do uso e comércio de pesticidas, bem como medidas para mitigar a contaminação ambiental por pesticidas e metais. O ministério não forneceu comentários e, em vez disso, orientou o Mongabay a entrar em contato com o Ibama. Nem o Ibama nem o Ministério da Saúde, que também foi contatado, responderam à Mongabay.
Imagem do banner: Anta em meio a um milharal colhido no norte do Mato Grosso, em uma área de transição entre o Cerrado e a Amazônia. Foto: Victor Sanches/Incab/IPÊ