Os Guarani da Terra Indígena Jaraguá, na zona noroeste do município de São Paulo, recuperaram nove espécies de abelhas nativas, antes extintas na região; hoje são 300 colmeias.
Diferente das abelhas africanizadas, mais conhecidas da população em geral, as abelhas nativas brasileiras não têm ferrão e não causam acidentes.
As abelhas nativas são sagradas para os Guarani, que utilizam a cera para espantar maus espíritos e o mel e o própolis para curar diversas doenças.
Essas espécies de abelhas são importantes polinizadoras: algumas flores brasileiras só conseguem ser polinizadas por abelhas nativas.
Enquanto caminha por uma trilha na mata, o cacique Márcio Werá Mirim, da aldeia Tekoá Yvy Porã, conta histórias sagradas do seu povo em uma mistura de português e língua guarani.
“Ka’agüy poru ey é como chamamos as matas sagradas e intocadas, locais que os homens nunca deveriam mexer”, diz o líder Guarani enquanto adentra a floresta, até o ponto em que já não é mais possível ouvir o barulho dos carros vindo da cidade, a menos de 2 quilômetros dali.
“Intocada”, porém, não é o caso da Terra Indígena Jaraguá, onde estamos. Localizada na zona noroeste do município de São Paulo, a 16 quilômetros do centro, o território é palco de disputas fundiárias e invasões desde o século 16: a região foi uma das primeiras áreas de mineração de ouro no Brasil, depois foi explorada pela cafeicultura e, há décadas, sofre com invasões e especulação imobiliária.
Cercados por rios poluídos, barulho, trânsito e desmatamento, e disputando cada centímetro com a maior metrópole do Brasil, as 125 famílias indígenas que vivem nas seis aldeias da TI Jaraguá se uniram em 2017 para recuperar mudas nativas da Mata Atlântica e trazer de volta ao território as abelhas indígenas, espécies nativas do Brasil e importantes polinizadoras.
Em seis anos de trabalho, os Guarani do Jaraguá ostentam um meliponário — nome dado ao conjunto de colmeias de abelhas indígenas — com 300 colmeias e nove espécies de abelhas nativas: uruçu-amarela, tubuna, mandaçaia, mandaguari-amarela, borá, mirim, jataí, arapuá e marmelada.
Insetos sagrados
Mais que fornecer alimento, a volta das abelhas nativas, consideradas sagradas por várias etnias no país, tem recuperado parte importante do modo de vida ancestral dos Guarani, como os rituais de revelação do nome dos bebês — realizado com velas feitas com a cera das abelhas indígenas — e a produção de incensos para tratar depressão e doenças mentais.
“Com as abelhas indígenas, retomamos um conhecimento ancestral com o uso do mel e da cera para remédios, benzimentos, batizado e espantar maus espíritos, que antes só ouvíamos falar, mas que nunca tínhamos praticado porque as abelhas nativas estavam extintas do Jaraguá”, diz o cacique Márcio.
Antes da criação de abelhas nativas, que haviam desaparecido do território há 43 anos, o artesanato era uma das poucas manifestações tradicionais que restavam ao povo da TI Jaraguá. Confinados em uma Terra Indígena espremida entre as rodovias dos Bandeirantes e Anhanguera e cortada pela Estrada Turística do Jaraguá, os Guarani de São Paulo estão impossibilitados de praticar atividades ancestrais como caçar e pescar.
“Angustia demais um indígena não poder se banhar em um rio, mas agora temos a criação das abelhas nativas, que nos traz paz, acalma o espírito e reforça nossas tradições. Além disso, nossas primaveras estão mais floridas e a nossa agrofloresta está mais produtiva”, diz Márcio.
Sem abelhas, não há alimento
Segundo o professor Osmar Malaspina, do Centro de Estudo de Insetos Sociais (CEIS) da Universidade Estadual Paulista (Unesp), apesar de as abelhas indígenas produzirem menos mel que as espécies exóticas, elas são grandes polinizadoras.
“Algumas flores nativas do Brasil só conseguem ser polinizadas pelas abelhas indígenas. Já em outros casos, como no da flor de maracujá, as africanizadas atrapalham o trabalho das indígenas. Elas retiram o pólen dessas flores, mas não conseguem fazer a polinização”, diz Malaspina.
Estudos mostram que a meliponicultura pode aumentar a produção agrícola no Brasil, segundo explica o professor, além de gerar frutos maiores e de melhor quantidade.
“Conseguiríamos aumentar em 18% a produção de soja no país sem desmatar um centímetro, apenas com o trabalho de polinização das abelhas nativas. Por outro lado, sem abelhas, não há alimentos. Sem as abelhas nativas, não teríamos tomate, amêndoa, maracujá, pimentão, berinjela, melão… somente para citar algumas culturas”, pontua o professor.
Colmeias livres de ferroadas
Quando se pensa em um apiário cheio de abelhas zangadas e prontas para ferroar a qualquer contato, “paz” não é bem a palavra que vem à mente.
“Mas aqui não temos apiário, temos um meliponário”, corrige o cacique Márcio enquanto abre uma caixa de cedro que abriga uma colmeia com milhares de abelhas pequenas e de um amarelo vívido.
“As abelhas indígenas não são violentas como as africanizadas. Elas não têm ferrão, então, no máximo, podem enrolar no cabelo”, tranquiliza o líder Guarani, que não usa roupa especial nem luvas para manusear o enxame.
As abelhas africanizadas, que no passado já foram chamadas de “abelhas assassinas”, são resultado do cruzamento de duas espécies exóticas, as africanas e as europeias.
“Durante o período colonial, os padres importaram abelhas europeias para o Brasil por causa da cera, para produzir velas. A apicultura se tornou popular em todo o país com o passar do tempo. Mas, como as abelhas europeias não são grandes produtoras de mel, por volta de 1950, um professor trouxe para o Brasil as abelhas africanas, grandes produtoras de mel, mas também agressivas”, conta o professor Malaspina.
Altamente produtiva, adaptável e resistente a doenças, e muito agressivas, as abelhas africanizadas se espalharam por quase todo o continente americano. Já as indígenas, mais frágeis e dependentes das matas e florestas para sobreviverem, desapareceram de áreas intensamente desmatadas, principalmente na Mata Atlântica, o bioma mais ameaçado do Brasil — de acordo com o relatório Atlas da Mata Atlântica, de 2021, restam apenas 12,4% da sua cobertura original.
Um estudo do qual Malaspina participou, publicado na revista Environmental Pollution em fevereiro, mostrou que as abelhas nativas também são mais sensíveis aos agrotóxicos do que as espécies com ferrão.
“As abelhas nativas são muito dependentes da preservação da mata em que estão para fazerem seus enxames. Se uma colônia for retirada da árvore em que está instalada, ela pode morrer. É por isso que temos uma lei que proíbe a retirada dessas colmeias da natureza. Há técnicas para coletá-las, por meio de iscas, sem interferir no meio ambiente”, explica Malaspina.
Uma dessas técnicas é dominada pelo cacique Márcio, que usa garrafas PET como iscas. O indígena coloca uma substância natural própria para atrair os insetos dentro da garrafa PET e a prende no tronco de uma árvore no meio da mata. Uma vez formado um ninho dentro da garrafa, Márcio retira o recipiente da árvore e transfere o ninho para uma caixa de madeira de cedro, apropriada para as abelhas nativas desenvolverem a colméia.
A ideia das abelhas
A ideia de se criar um meliponário na TI Jaraguá partiu do primo do cacique Márcio, o xondaro (guerreiro) Tiago Karai, um dos guardiões da Terra Indígena.
Na época, Márcio morava no Espírito Santo, na TI Tupiniquim, em Aracruz, no litoral capixaba, onde aprendeu com os tios a cultivar as abelhas nativas. É comum o intercâmbio de sementes e mudas entre os parentes Guarani de diferentes partes do Brasil para para impedir que espécies vegetais importantes na sua alimentação desapareçam dos territórios indígenas.
“Eu fui visitar a aldeia no Espírito Santo. Quando cheguei, olhei para o quintal e vi o Márcio sem camisa com um monte de abelha em volta dele. Pensei: ‘ele ficou maluco’. Foi aí que descobri que existe abelha sem ferrão”, lembra Tiago, que não conhecia a importância das abelhas nativas para o seu povo.
“Como a nossa cultura é oral, contada dos mais velhos aos mais novos, a tradição com as abelhas nativas desapareceu conforme elas foram desaparecendo da Mata Atlântica”, conta o xondaro.
Tiago se encantou com as abelhas indígenas e convenceu o primo a retornar para a TI Jaraguá e ensinar os parentes de São Paulo a criar as espécies. Além disso, na época, a Terra Indígena estava sofrendo invasões de posseiros em uma das suas bordas — essas invasões são recorrentes, fazendo com que os indígenas migrem de tempos em tempos pela fronteira do território para formar novas aldeias e garantir a proteção das terras.
“Vamos cercando fisicamente o território para impedir novas invasões de grileiros, que querem a terra para fazer loteamentos”, explica Tiago.
Foi com essa finalidade que se formou a aldeia Tekoá Yvy Porã quase dez anos atrás, a poucos metros da movimentada Estrada Turística do Jaraguá, que leva ao pico homônimo, o mais alto da cidade de São Paulo. Para se ter uma ideia, o viveiro de mudas nativas da comunidade foi erguido no acostamento da estrada.
Márcio retornou à TI Jaraguá em 2017, deu início aos meliponários, desenvolveu oficinas de manejo das abelhas nativas para as crianças do território e se tornou cacique da aldeia Tekoá Yvy Porã.
Desde a volta de Márcio e das abelhas nativas, a Casa de Reza passou a ser o local mais movimentado da aldeia.
“Usamos a abelha jataí para fazer uma tinta sagrada para a pintura corporal, usada nas nossas cerimônias. Também temos a ‘cerimônia do mel’, onde cantamos e fazemos rezas para purificação. Com outras espécies, fazemos uma defumação, usada para tratar pessoas com transtornos mentais, como a depressão”, conta o cacique.
As casas da comunidade também estão mais protegidas espiritualmente com o meliponário ao alcance das famílias. “Para quem se sente triste dentro de casa ou para crianças que choram demais dentro de casa, nós colocamos as velas feitas com a cera das nossas abelhas para espantar os maus espíritos”, diz Márcio.
Da luta pela terra ao mel orgânico
Antes de ser cacique, Márcio, natural do Jaraguá, se mudou para a TI Tupinikim-Guarani por volta de 2006, quando os parentes do Espírito Santos pediram ajuda aos guerreiros do povo guarani para resistir às invasões da empresa Aracruz Celulose, que avançava os limites do território indígena para plantar eucalipto.
“Parentes de várias partes do país se mudaram para a TI Tupinikim-Guarani para unir forças. Cortamos todos os eucaliptos plantados em área indígena e, com muita luta, retomamos nosso território”, recorda o cacique.
A autodemarcação de mais de 11 mil hectares conquistada pelos Tupinikim-Guarani foi homologada pela Funai somente em 2010. Apesar da vitória, parte da terra recuperada pelos indígenas já não era mais produtiva.
“Os eucaliptos deixaram a terra seca, sem vida e cheia de agrotóxicos. Não dava para plantar nada ali. Foi aí que começamos a criar abelhas indígenas da Mata Atlântica, que tinham desaparecido da região com o desmatamento”, conta o cacique. Ele lembra que nunca tinha visto uma abelha nativa até então e não conhecia a importância cultural dessas abelhas para os povos Guarani.
A criação de abelhas nativas pelas aldeias de Aracruz entrou para o Plano de Sustentabilidade Tupiniquim e Guarani (PSTG), apoiado pela Suzano S/A (antiga Aracruz Celulose) como forma de reparação aos danos socioambientais ocasionados aos povos Tupiniquim e Guarani. Atualmente, os meliponários da região são importantes produtores de mel orgânico, comercializado com chefs de cozinha de várias partes do Brasil.
Com a retomada do território em Aracruz, a volta das abelhas nativas e com os rios próprios para nadar e pescar no litoral capixaba, o cacique Márcio afirma que reencontrou a felicidade de viver — algo que tinha se perdido na TI Jaraguá, quando o território tinha uma área demarcada equivalente a apenas dois campos de futebol e era a menor Terra Indígena do Brasil (em 2015, foram adicionados 532 mil hectares à TI, mas que ainda aguardam homologação do governo).
“A criação de abelhas me trouxe alegria e o litoral tiraram minha angústia. Eu tinha água para me banhar e pescar, e as abelhas para ajudar meu espírito a permanecer no território, porque a gente acredita que, quando uma pessoa fica muito triste, seu espírito já não está mais lá, isso é perigoso”, diz.
A alegria na TI Tupinikim-Guarani durou pouco, contudo: em novembro de 2015, o rompimento da barragem de rejeitos da Samarco Mineração, da empresa Vale, contaminou 700 km do Rio Doce, afetando todas as aldeias de Aracruz. Já não era mais possível nadar e pescar nos rios.
“Sem a pesca, eu não via mais perspectiva de ter o bem viver lá em Aracruz. Foi aí que eu voltei para o Jaraguá. Voltei com as abelhas”, diz a liderança.
“Virou um mercado de pet”
O professor Malaspina explica que existem 300 espécies de abelhas indígenas conhecidas no Brasil, distribuídas regionalmente.
“Apesar de não ferroarem e parecer de fácil manejo, as abelhas indígenas são muito frágeis. Muitas não trabalham no frio, por exemplo, então o dono do meliponário precisa saber alimentar artificialmente essas colmeias durante o inverno. Senão, milhares de abelhas vão morrer nas mãos dessas pessoas”, alerta Malaspina.
Segundo o pesquisador, enxames de espécies nativas estão sendo comercializados pela internet a valores que podem chegar a 2 mil reais. “Colméias de jataí, espécie mais frequente das abelhas indígenas, custam de R$ 200, até R$ 400 reais, mas quanto mais rara a espécie, mais cara a colmeia é vendida”.
Além de serem comercializadas ilegalmente, o professor explica que levar espécies de abelhas nativas para regiões que não são as originárias pode disseminar doenças no meio ambiente.
“As pessoas descobriram as abelhas sem ferrão nos últimos anos e começaram a retirá-las da natureza para criar em casa, como se fosse um pet, sem saber dos riscos ambientais envolvidos. Outros vendem essas abelhas. Ou seja, o cultivo das abelhas nativas virou um mercado de pet”, diz o professor.
https://brasil-mongabay-com.mongabay.com/2021/12/poluentes-acumulados-em-abelhas-nativas-revelam-a-importancia-de-areas-verdes-nas-cidades/
Imagem do banner: Colmeia de abelhas-jataí. Foto: Luis Carlos Martinelli, CC BY-SA 4.0, via Wikimedia Commons