Na véspera de Natal, 70 indígenas Munduruku ocuparam o Museu de História Natural de Alta Floresta, em Mato Grosso. O objetivo: resgatar 12 urnas funerárias e outros artefatos removidos de um cemitério sagrado, sem sua permissão, durante o processo de licenciamento da Usina Hidrelétrica Teles Pires, na divisa de Mato Grosso e Pará.
Em 2013, durante a construção da UHE Teles Pires, a empresa responsável já havia dinamitado a Cachoeira das Sete Quedas, local sagrado dos povos Munduruku, Apiaká e Kayabi. Outros 270 mil artefatos foram removidos durante as obras, aos quais hoje os Munduruku não têm acesso.
Os Munduruku também foram barrados de outro local sagrado de sua cultura, Dekoka’a (Colina do Macaco), este impactado pela construção da Usina Hidrelétrica São Manoel, também localizada no Rio Teles Pires.
Era véspera de Natal quando 70 indígenas Munduruku ocuparam o Museu de História Natural de Alta Floresta, em Mato Grosso. O local guardava 12 urnas funerárias (Itiğ’a, na língua Munduruku) e diversos outros artefatos escavados em um cemitério sagrado para os indígenas durante o processo de licenciamento da Usina Hidrelétrica Teles Pires.
Em um dos episódios recentes mais violentos contra a cultura indígena no Brasil, a construção da UHE Teles Pires destruiu Karobixexe, ou Cachoeira das Sete Quedas, um local sagrado para os povos Munduruku, Apiaká e Kayabi, que vivem próximos à divisa entre os estados de Mato Grosso e Pará. A corredeira dinamitada em 2013 era considerada um portal para onde os espíritos iam após a morte. Era, além disso, segundo a cosmologia desses povos, morada de entidades sobrenaturais, como a que denominam “Mãe dos Peixes”, responsável pela reprodução das espécies que habitam aquele rio.
De acordo com Kirixi Biwün, da aldeia Teles Pires, o ato decretou o fim dos Munduruku. “A gente vai morrer no espírito também”, disse a anciã. Impactados em seu modo de vida, territorialidade e práticas espirituais, os povos indígenas da região não foram consultados, conforme estipula a Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT).
O judiciário brasileiro reconheceu, em dezembro de 2016, a necessidade da consulta prévia, livre e informada, e considerou inválida a licença de instalação concedida pelo Ibama para a construção da usina. Mas era tarde demais. Teles Pires já estava em franca operação e a decisão judicial não teve qualquer efeito prático.
Para os Munduruku, no entanto, os efeitos foram devastadores. Eles relatam uma série de infortúnios decorrentes da profanação de seus locais e objetos sagrados, incluindo a morte de duas mulheres em 2019, ambas atingidas por raios. Determinados a proteger o povo da vingança dos seus ancestrais, os pajés decidiram conduzir a retirada das urnas do Museu e sua devolução ao território Munduruku, em local orientado pelos próprios espíritos.
“Não podemos mais deixar os espíritos ali. Eles reclamam do frio, da cidade e se vingam porque não os estamos protegendo”, explicou um dos pajés. “Os pariwat (não indígenas) estão pedindo respeito por causa do Natal e querem que a gente espere essa data, mas essa celebração religiosa deveria ter ensinado eles mesmos a respeitar nossos locais sagrados, que foram dinamitados para construir barragens e até hoje não recebemos o pedido de desculpas.”
O representante da Companhia Hidrelétrica Teles Pires (CHTP), Arthur Loiola, fez objeções à retirada das urnas. “Infelizmente, a CHTP não tem como autorizar a retirada dos vasilhames cerâmicos do Museu”. Ele alegou que precisava da autorização do Iphan (Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional) e da Funai (Fundação Nacional do Índio), e que ambos estavam em recesso. Tanto o Iphan como a Funai já haviam manifestado, em anos anteriores, que as urnas deveriam ter o destino definido pelos indígenas.
A indefinição sobre as urnas já se arrastava há pelo menos seis anos. Desde 2017, os indígenas esperavam o cumprimento de um acordo para transferir as Itig’a para o território Munduruku. No dia 25 de dezembro, os indígenas decidiram resgatar as urnas e levá-las de volta.
“Durante a visita, os espíritos exigiram dos pajés serem libertados e todos seguiram seu comando. Agimos por nós mesmos, ou nada iria acontecer. Vocês nunca pediram se podiam retirar nossos espíritos. Por que nós temos que continuar esperando vocês resolverem o que fazer?”, afirmaram os Munduruku em um comunicado divulgado no dia 30 de dezembro.
Após o episódio de retomada das urnas, o Iphan publicou uma nota reiterando sua posição de respeito ao grupo Munduruku. A equipe de reportagem da Mongabay entrou em contato com a CHPT inúmeras vezes e, após 10 dias, a empresa afirmou que não tinha nada a declarar sobre o caso.
Dezenas de pesquisadores e representantes de organizações da sociedade civil redigiram uma nota segundo a qual a recuperação das Itig’a pelos Munduruku deve ser entendida como a única ação que lhes restava possível. Para a professora de Arqueologia da Universidade Federal do Oeste do Pará (Ufopa), Bruna Rocha, “a ação dos Munduruku não foi apenas legítima, mas também heroica, considerando que eles não tiveram apoio financeiro ou logístico para realizar a tarefa”.
Em entrevista ao site Amazônia Real, a também arqueóloga Érika Gonzáles, proprietária da empresa Documento, que retirou as urnas a serviço do consórcio responsável pela obra da Usina Hidrelétrica Teles Pires, revelou que deve haver outros enterramentos no local, mas que houve a opção de preservar o sítio Cadeado sem escavação depois de perceber que se tratava de um cemitério indígena. A reserva arqueológica, no entanto, permanece inacessível aos indígenas, cercada pelos muros da casa de máquinas da UHE Teles Pires.
Perto dali, na Usina Hidrelétrica São Manoel, cujo reservatório impactou outro local sagrado para os Munduruku – o Morro dos Macacos (ou Dekoka’a) –, os indígenas também estão impedidos de entrar. Na última vez em que estiveram no local para protestar contra a devastação socioambiental, em outubro de 2017, os Munduruku foram recebidos com bombas de efeito moral lançadas pela Força Nacional de Segurança Pública. Em seguida, a empresa obteve na Justiça um interdito proibitório para coibir qualquer manifestação no local ou tentativa de impedir o acesso de funcionários à usina.
“É absurdo sermos considerados invasores de um território que é nosso”, afirmou uma das lideranças, que preferiu não se identificar por causa das retaliações adotadas pelas empresas. Questionada pela reportagem sobre a medida, a Empresa de Energia São Manoel (EESM) argumentou que os equipamentos elétricos de alta tensão podem oferecer risco à segurança das pessoas, e que a solicitação do interdito proibitório teve o objetivo de garantir a segurança dos colaboradores e manifestantes.
Incrédulos em relação às nobres preocupações da EESM, os indígenas contam que, ao longo do trajeto de cinco dias pelo rio Teles Pires, foram monitorados por aviões das duas hidrelétricas. Mesmo contra todo esse aparato de segurança, os Munduruku encerraram 2019 com uma lição de resistência: enquanto as famílias cristãs celebravam o Natal, os indígenas honravam o clamor de seus ancestrais pelo retorno ao território sagrado. Na falta de uma solução pelo diálogo, a ação direta parece ter encerrado esse capítulo do conflito.
Colaborou Thaís Borges