A Decisão 15/9 estabeleceu durante a COP15 da Conferência das Partes, no ano passado, “um mecanismo multilateral de repartição dos benefícios do uso da informação sequencial digital de recursos genéticos, incluindo um fundo global”.
Centenas de milhões de dólares são necessários para financiar a conservação, especialmente nos países megadiversos, e a Decisão 15/9 poderia ser uma mina de ouro, mas para quem exatamente?
“A Decisão 15/9 poderia ser uma mina de ouro para os países megadiversos da CDB ou para um grupo seletivo de partes interessadas, mas não para ambos. Equidade e eficiência exigem que as rendas econômicas sejam analisadas com urgência”, como argumentado a continuação.
Esta publicação se trata de um artigo de opinião. As opiniões expressas aqui são as do autor, e não necessariamente representam as opiniões da Mongabay.
As metáforas econômicas podem ser inesperadamente irônicas. A décima-quinta Conferência das Partes (COP15) da Convenção sobre Diversidade Biológica das Nações Unidas (CDB) de 1992, estabeleceu “um mecanismo multilateral de Repartição dos benefícios do uso da informação sequencial digital de recursos genéticos, incluindo um fundo global” (Decisão 15/9). O Secretário Executivo em função da Secretaria considera dito mecanismo um “ponto de referência”. A esperança é grande. As vendas globais de biotecnologia logo alcançarão 1 trilhão de dólares por ano e sabemos que são necessários centenas de bilhões de dólares para financiar a conservação da biodiversidade. Assim que a Decisão 15/9 pode ser uma mina de ouro. Mas para quem exatamente?
As indústrias que utilizam recursos genéticos são desdenhosas. Elas podem se dirigir ao Brasil, o país mais biodiverso do mundo, onde a legislação permite royalties tão baixos quanto 0,1%. O Projeto WiLDSI, financiado pelo governo alemão, contempla um benefício numa ordem de magnitude menor ainda do que isso. Em uma biotecnologia “blockbuster” lucrativa de bilhões de dólares, 0,01% se reduz a meros 100 mil dólares. Por que se incomodar com isso então?
Uma mina de ouro existirá somente se a indústria pagar uma ‘renda econômica’ por biotecnologias comercialmente bem-sucedidas. A renda em qualquer bem é a diferença entre o que se paga e o que se pagaria num mercado competitivo. A indústria desfruta de rendas através de direitos de propriedade intelectual (DPI), como patentes e direitos autorais. Esses monopólios temporários permitem que os detentores de DPI compensem os custos de trazer informações artificiais à existência.
Em contraste, os países megadiversos que são Partes da CDB competem por ‘informações naturais,’ que estão incorporadas nos recursos genéticos que se encontram difundidos entre espécies e jurisdições. O Brasil é novamente um bom exemplo: nove países estão nos trópicos amazônicos, cerca de 27 nos trópicos do novo mundo e 92 nos trópicos globais. Exceto por recursos genéticos exclusivos do Brasil, nove, 27 ou até mesmo 92 países competiriam entre si para celebrar acordos de acesso e repartição dos benefícios com a indústria biotecnológica.
Essa competição elimina a renda para a informação natural, desalinhando assim os incentivos entre consumidores e fornecedores. O tratamento assimétrico entre a informação artificial e natural é tão ineficiente quanto injusto.
Por sugestão da delegação equatoriana na COP9, “rendas” foram incorporadas como uma questão a ser considerada, em preparação para o que se tornaria o Protocolo de Nagoya. A caminho do Japão, a questão desapareceu, para não reapareceu nem na COP10 ou em qualquer outra COP subsequente.
De qualquer maneira, terminologias são cruciais. A COP nunca explorou informação natural como a interpretação científica de como os recursos genéticos são usados em pesquisa e desenvolvimento (P&D). Em vez disso, a Decisão 15/9 lança o termo “informação sequencial digital de recursos genéticos” (ou por sua sigla em inglês, DSI) como termo temporário ou substituto provisório. Por quê?
A resposta cínica é má-fé: a informação natural se converte em um tabu porque a economia da informação justifica altas rendas por royalties, onde a distribuição entre as Partes seria proporcional à faixa geográfica das espécies terrestres utilizadas na biotecnologia protegida pelos DPI. Ao contrário da informação natural, o termo temporário DSI não está associado à economia da informação. Nesse sentido, as COPs 13, 14 e 15 encomendaram alguns estudos sobre DSI, apesar da opinião consensual de especialistas convocados pelo Secretariado da CDB que DSI não é o termo apropriado. Sendo assim, o carro não só foi colocado na frente da junta de bois, mas muito além do alcance da vista deles.
A má-fé sugere que o termo DSI é engenhoso. Se alguém imprime ou filma uma sequência genética, a impressão ou fotogramas deixa de ser digital. A sequência estará, prima facie, fora do âmbito. Essas e outras deficiências fazem da Decisão 15/9 uma mina de ouro para partes interessadas que promovem ‘projetos emblemáticos’ ou demonstrativos para desenvolver o “mecanismo multilateral… incluindo um fundo global.” Numa reunião organizada pelo Instituto Meridian, financiada pela Fundação Rockefeller, e celebrada em Bellagio, na Itália, um grupo de especialistas deliberadamente não identificados, recomendou um caso demonstrativo para a criação de um mecanismo multilateral com um preço de 250 milhões de dólares. O público-alvo aparentemente era o Fundo Bezos para a Terra, que já doou algumas verbas iniciais.
Os royalties sob o mecanismo multilateral da Decisão 15/9 seriam negociados sob a premissa de que apenas os recursos genéticos físicos estão dentro do âmbito da CDB. Sob esta suposição, os países megadiversos não teriam alavancagem para extrair rendas de DSI. Uma vez que os royalties, digamos de 0,1% ou 0,01%, sejam negociados para DSI, a Decisão 15/9 permitirá uma extensão de seu alcance para os recursos genéticos físicos através do Mecanismo Global de Repartição de Benefícios previsto no Artigo 10 do Protocolo de Nagoya. O ‘experimento’ tem os contornos dissimulados de isca e troca. Assim que um frenesi alimentar deverá surgir uma vez que um bilionário desprevenido morder a isca.
Um grupo assessor informal sobre DSI se reúne todos os meses online. Dito grupo tem mais de 100 afiliados. A Decisão 15/9 poderia ser uma mina de ouro para os países megadiversos da CDB ou para um grupo seletivo de indivíduos, mas não para ambos. Equidade e eficiência exigem que as rendas econômicas sejam analisadas com urgência nesse grupo e na COP16.
Joseph Henry Vogel é professor de economia na Universidade de Porto Rico, campus de Rio Piedras. Publicou sobre a Convenção sobre Diversidade Biológica e serviu como conselheiro da delegação equatoriana na COP2 e na COP9. Artigo traduzido ao português por Camilo Gomides, professor de línguas estrangeiras na Universidade de Porto Rico, campus de Rio Piedras. Leia o original em inglês aqui.
Citações
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