Os incêndios estão ganhando força no Acre, estado que tem 80% de sua área coberta pela Floresta Amazônica; uma seca histórica e altos níveis de desmatamento fazem aumentar a preocupação dos especialistas.
Os incêndios geram materiais particulados que, quando inalados, podem viajar para os pulmões, corrente sanguínea e órgãos vitais, causando danos semelhantes à fumaça do cigarro.
Dados da rede de monitoramento da qualidade do ar do Acre mostram que, durante as épocas de pico de queimadas em 2019 e 2020, as taxas de material particulado suspenso na atmosfera estavam bem acima do nível considerado pela Organização Mundial da Saúde como limpo e seguro para respirar.
A fumaça dos incêndios tem sido associada a taxas de mortalidade mais elevadas da covid-19, ameaçando agravar o que já é uma das piores cargas de infecções e mortes por coronavírus no mundo. As populações indígenas, que apresentam taxas de mortalidade 150% maiores do que a média do Brasil, estão especialmente em risco.
A propagação de incêndios no Acre fez soar o alarme sobre os riscos à saúde pública, agravando ainda mais o número de infecções e mortes pela covid-19 no mundo. Com 80% de sua área coberta pela Floresta Amazônica primária, o estado é o local onde os ventos que carregam os “rios voadores” da Amazônia – as grandes massas de umidade emitidas pela vegetação – mudam de curso do leste para o sudeste.
“A população do Acre é atingida pela fumaça dos nossos próprios incêndios e originários de outras regiões da Amazônia”, diz Sonaira Souza da Silva, especialista em queimadas e professora da Universidade Federal do Acre. “Os incêndios são prejudiciais à Amazônia como um todo, mas especialmente ao estado do Acre, devido às correntes de vento que trazem a fumaça”, complementa.
De acordo com o Monitoramento do Projeto Amazônia Andina (MAAP) da Associação de Conservação da Amazônia, ocorreram 29 grandes incêndios durante a estação seca no Acre este ano, desde 15 de agosto, queimando mais de mil hectares. Na mesma data no ano passado, apenas um grande incêndio foi registrado, atingindo 20 hectares.
Esses incêndios agrícolas e florestais são uma ameaça não só para as florestas e a biodiversidade, mas também para as pessoas. A fumaça dos incêndios possui pequenas partículas de 2,5 mícrons – ou menos – de diâmetro (chamadas PM2,5) que, quando inaladas, podem viajar para os pulmões, corrente sanguínea e órgãos vitais, causando sérios danos.
“Hoje tivemos um aumento [nos níveis] de PM2,5 à tarde”, afirmou Foster Brown, cientista sênior do Woodwell Climate Research Center e professor adjunto da Universidade Federal do Acre, em uma mensagem de texto enviada da capital do Acre, Rio Branco, em 17 de agosto, para a Mongabay. “Uma das fontes que contribuiu foi o grande incêndio no sul do estado do Amazonas… Um incêndio em um lugar pode afetar a qualidade do ar a 100 ou mais quilômetros de distância.”
“É isso que estamos respirando neste momento”, acrescentou Brown.
Contando com 30 sensores distribuídos pelos 22 municípios do estado, o Acre possui a maior rede de monitoramento da qualidade do ar na Amazônia. E os dados coletados pelos sensores apontam para um cenário sombrio: durante as épocas de pico de queimadas (agosto a outubro), em 2019 e 2020, as taxas de material particulado na atmosfera estavam bem acima dos níveis reconhecidos pela Organização Mundial da Saúde como limpos e seguros para a respiração.
“Prevemos mais casos de altas concentrações de PM2,5 com fontes que vão desde queimadas de quintal a incêndios nas proximidades e até pontos mais distantes”, disse Brown. “O efeito destas misturas na saúde pública é enorme.”
Muitas instituições estão monitorando a qualidade do ar em todo o mundo e usando esses dados para conectar os pontos entre os incêndios e a saúde humana. O Índice de Qualidade de Vida do Ar, produzido pela Universidade de Chicago (EUA), analisa a poluição por fumaça para calcular quantos anos de expectativa de vida as pessoas estão perdendo por estarem expostas às PM2,5 nos níveis atuais, em comparação às diretrizes da OMS.
Durante as secas severas no Acre em 2005 e 2010, Rio Branco registrou uma qualidade do ar pior do que a cidade de São Paulo, a maior metrópole do hemisfério sul do planeta. “[Em 2010,] alguém vivendo em Rio Branco teria uma expectativa de vida de seis meses a dois anos a menos do que alguém que vive no litoral”, disse Brown em uma apresentação virtual da organização Keystone Symposia. “E eu vejo isso de uma perspectiva pessoal, porque eu moro em Rio Branco”.
“A fumaça que surge em grandes quantidades, tanto do desmatamento quanto dos incêndios de serrapilheira [camada formada pelo acúmulo de matéria orgânica sobre o solo da floresta], é extremamente tóxica, causando falta de ar, tosse e danos pulmonares”, diz uma carta publicada na revista Science em 2020. “Os incêndios na Amazônia são responsáveis por 80% do aumento da poluição por partículas finas (PM2,5) na região, afetando 24 milhões de amazonenses”.
A intersecção entre a quantidade de incêndios e picos da covid-19 pode ser uma “catástrofe” para a Amazônia brasileira, conforme alertou um relatório do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe) divulgado em maio de 2020. O informe destaca que os impacto duplicado dos incêndios florestais e de casos de covid-19 podem ser devastadores para as comunidades locais. Com mais de 21,5 milhões de casos confirmados e quase 600 mil pessoas que morreram de covid-19 no Brasil, o país está em terceiro lugar em número de infecções, atrás dos EUA e da Índia, de acordo com o painel de controle da covid-19 da OMS em setembro de 2021.
Embora o Acre não seja responsável pela maioria de casos de covid-19 e mortes no país – está na 19ª e 22ª posições, respectivamente, entre 26 estados e o Distrito Federal -, para especialistas a situação é preocupante, dada a combinação dos altos índices atuais de poluição do ar, incêndios e seca.
As populações indígenas na Amazônia estão particularmente em risco, pois sofrem taxas de mortalidade 150% superiores à média no Brasil, de acordo com um relatório de 2020 dos pesquisadores do Instituto de Pesquisa Ambiental da Amazônia (Ipam) e da Coordenação das Organizações Indígenas da Amazônia Brasileira (Coiab). Os povos indígenas também são histórica e geneticamente mais vulneráveis a doenças respiratórias.
Um estudo recente ligou os incêndios florestais nos estados da costa leste dos EUA a um aumento das mortes na covid-19, mesmo depois de contabilizar outros fatores de saúde e ambientais. “Sabemos que os materiais particulados são ruins para o nosso sistema respiratório”, disse Daniel Kiser, assistente de pesquisa no Desert Research Institute, à publicação Verywell Health. “Podem enfraquecer a nossa resposta imunológica e causar inflamações que nos tornam mais suscetíveis a infecções da covid-19.”
Os incêndios na Amazônia são usados para limpar terras para práticas agrícolas, como a pecuária e a soja, e ocorrem geralmente após o desmatamento. No entanto, nos últimos anos, os incêndios têm escapado dos campos de cultivo e gado e queimado na floresta tropical em pé, onde historicamente os incêndios não ocorrem naturalmente.
Uma seca histórica na Amazônia este ano, juntamente com altos níveis de desmatamento, preocupa os especialistas, que temem que este seja um ano com muitos incêndios, incluindo os incêndios florestais.
“A fumaça das queimadas não é muito diferente da fumaça do cigarro – ambos são produtos que queimam biomassa”, disse Michael Kleinman, professor de toxicologia ambiental e co-diretor do Laboratório de Efeitos de Saúde da Poluição Atmosférica da Universidade da Califórnia, Irvine, à Verywell Health. “E nós sabemos como a fumaça do cigarro faz mal.”
“No Acre, o potencial para ainda mais incêndios está piorando. Temos novas variantes de covid causando maiores taxas de transmissão e talvez maiores complicações”, disse Brown. “Quem sabe o que teremos no futuro?”
Imagem do banner: Bombeiros no Acre. Foto: Auricelio Dantas de Souza, Antônio Maycon Almeida dos Santos e Carlos Feijó.