Patrícia Medici foi contemplada, em 2020, com o Whitley Gold Award, o “Oscar verde”, principal honraria para conservacionistas no mundo.
Com o prêmio, ela vai financiar a nova fase de seus estudos – pela primeira vez na Floresta Amazônica. Os resultados vão alimentar um valioso banco de dados sobre o maior mamífero terrestre da América do Sul.
A cientista quer compreender como a espécie reage ao desmatamento causado pela mineração, a agricultura de larga escala e a extração sustentável de madeira.
A anta tem papel central na dispersão de sementes e é indicadora da qualidade ambiental dos lugares onde vive.
As restrições sociais e de mobilidade decorrentes da pandemia de covid-19 impediram a conservacionista brasileira Patrícia Medici de receber, das mãos da princesa Anne, da Inglaterra, um dos mais prestigiosos prêmios científicos do mundo.
O Whitley Gold Award — categoria mais alta entre os troféus oferecidos todos os anos pelo Whitley Fund for Nature — é uma honraria tão grande que é chamada de “Oscar verde”, numa alusão à famosa estatueta do cinema. A cerimônia de entrega na Royal Geographical Society, que ocorreria no início de maio, foi transferida para dezembro — se até lá a situação se normalizar.
Antes de ir ao evento, porém, Patrícia espera que a crise sanitária não a impeça de retomar as expedições da Iniciativa Nacional para a Conservação da Anta Brasileira (Incab), no segundo semestre.
É nesse período que se concentra seu trabalho de campo: a partir de junho, o tempo seco prevalece no Pantanal, o santuário da anta brasileira, onde os cientistas podem documentar com eficiência o comportamento e os hábitos de reprodução do animal. No Cerrado e na Mata Atlântica, o impacto das atividades humanas alterou de tal maneira o habitat que a anta acabou incluída na lista de espécies vulneráveis da União Internacional para a Conservação da Natureza (IUCN, na sigla em inglês).
A ideia em 2020 é iniciar também a última e mais desafiadora etapa do estudo: a Amazônia, cuja janela sem chuvas se estende de maio a setembro. É na Floresta Amazônica, o único bioma brasileiro onde a anta ocorre ainda sem o acompanhamento dos cientistas, que Patrícia pretende aplicar as 60 mil libras que recebeu da fundação Whitley.
O trabalho inédito será mapear a presença da anta no Arco do Desmatamento e compreender de que maneira o animal está reagindo a alterações na floresta causadas pela mineração, a agricultura de larga escala e a extração de madeira com manejo sustentável.
“Na Amazônia, há pesquisadores trabalhando com armadilhas fotográficas voltadas ao estudo de outros bichos que acabam, involuntariamente, coletando dados sobre a anta. Mas um levantamento sistêmico, amplo e dirigido, será a primeira vez”, revela Patrícia, uma cientista incomum para os padrões brasileiros: desenvolveu sua carreira longe de universidades e aposta na comunicação direta com o público para alcançar seus objetivos de conservação.
Um exemplo foi a ideia de criar a hashtag #antaeelogio (‘anta é elogio’) e assim chamar a atenção de todos para a necessidade de proteger a espécie. A pesquisadora também já subiu ao palco do TED para uma palestra na qual conquistou o público exibindo fotos de antas bebês. “Não somos preparados para fazer comunicação para a ciência na faculdade. Mas é uma ação importante. Fazer a informação circular ajuda na conservação”, acredita Patrícia, que estimula também ações de educação ambiental e o turismo científico.
Expedição em uma floresta alterada
A anta brasileira (Tapirus terrestris) é o maior mamífero terrestre da América do Sul. A pesquisa de Patrícia Medici aponta que um indivíduo necessita de 500 hectares para extrair da natureza o que precisa para viver bem. A espécie prefere regiões de mata ao longo de cursos d’água, mas frequenta outros ambientes em busca de alimento.
Como tem grandes proporções (um adulto pode pesar de 180 a 300 quilos), a anta se desloca por vastas áreas atrás de comida, em muitos casos desenhando caminhos entre diferentes habitats que dão pistas aos cientistas sobre a relação entre os elementos de um mosaico paisagístico.
Todas essas informações prévias fazem crescer a expectativa pelo encontro com o mamífero na Amazônia, que reúne características muito favoráveis à vida das antas. Mas há também apreensão.
Em uma expedição preliminar, em junho de 2019, quando foi definido o roteiro da nova etapa, os pesquisadores buscaram regiões que combinassem presença relevante de seres humanos com atividades econômicas – um dos objetivos é mapear ameaças à espécie e sugerir caminhos para mitigá-las.
A equipe, porém, se deparou com uma situação mais grave do que o imaginado: uma Amazônia já irremediavelmente alterada pela ação humana. “Até fizemos algumas incursões na floresta, na região do Xingu, onde há áreas protegidas. Mas são apenas fragmentos”, conta Patrícia.
Rondônia, por exemplo, precisou ser retirada do planejamento da expedição. “É, de longe, o estado com o menor percentual de floresta”, diz a cientista. “Ali, a Amazônia acabou.”
Restaram no roteiro Pará e Mato Grosso. No nordeste paraense, os pesquisadores querem estudar a anta em uma ampla área de produção de óleo de palma, cuja empresa proprietária preserva bolsões de mata nativa. Em um trecho mais ao sul, eles irão visitar a Floresta Nacional de Carajás, onde fica o maior complexo de mineração do mundo, com dezenas de minas e plantas de beneficiamento em operação.
Em Mato Grosso, a expedição pretende avaliar a interação da anta com lavouras de larga escala, sobretudo de soja. Por fim, haverá o estudo em uma região madeireira, em que a extração de árvores se dá de forma seletiva, levando em conta critérios de manejo ambiental rigorosos. Se tudo correr como o previsto, o levantamento amazônico deve estar concluído em até cinco anos.
Um animal resiliente
A boa notícia é que a anta não se entrega: na expedição pioneira de 2019, os cientistas avistaram sinais da presença do animal mesmo em ambientes profundamente alterados pela ação humana.
É um quadro parecido com o que testemunharam no Cerrado, onde há esforços de pesquisa desde 2013. A anta refugia-se em minúsculos fragmentos verdes – foram detectados 13 indivíduos em uma área de 250 hectares, metade do que um deles precisaria para sobreviver. A vegetação original resiste apenas em áreas preservadas; a maior parte do território é ocupada por soja, cana, eucalipto ou criação de gado.
Como todas essas atividades econômicas são acessíveis por estradas, mais de 600 carcaças resultantes de atropelamentos de antas foram encontradas – essa já é uma das principais ameaças à espécie, junto com a contaminação por agrotóxicos.
“Não é possível afirmar que no Cerrado existem populações de antas, mas sim indivíduos com um estado de saúde muito precário. Mas ela está lá, persistindo. Por quanto tempo vai sobreviver, não se sabe”, alerta Patrícia.
A anta é considerada um “fóssil vivo”. Sua origem remonta a 50 milhões de anos, na época em que a Antártica se separou do que hoje é a Austrália e um choque entre a Índia e a Ásia fez emergir o Himalaia. Animal originário da América do Norte, seus remanescentes estão espalhados atualmente por 11 países na América do Sul, América Central e Ásia. Três das quatro espécies estão ameaçadas de extinção. O caso mais grave é o da anta-da-montanha – restam apenas 1.500 exemplares, nos Andes.
“A anta sobreviveu a muitas ondas de extinção por causas naturais. É um animal resiliente, que se adapta bem a diferentes ecorregiões e níveis de ameaça”, diz Patrícia. “Mas é a primeira vez que corre riscos em consequência da ação humana. No Brasil, embora sigam em algumas áreas, as antas não são viáveis, pois tiveram sua organização social completamente desmantelada.”
Corredores verdes e sementes
Se os estudos de Patrícia Medici apontam a degradação dos ambientes e os riscos para a anta, por outro lado indicam caminhos para a preservação da espécie. Uma das alternativas para melhorar as condições de vida e procriação no Cerrado – e talvez na Amazônia – copia uma experiência anterior e bem-sucedida da equipe na Mata Atlântica.
O Pontal do Paranapanema, em São Paulo, foi o local de trabalho pioneiro do grupo, entre 1996 e 2007. Nessa região, onde a fragmentação da floresta é a principal ameaça à sobrevivência das antas, prospera um projeto de reconexão artificial entre a Estação Ecológica Mico-Leão-Preto e o Parque Estadual Morro do Diabo. É um maciço verde de 20 quilômetros e 2,7 milhões de árvores, o maior corredor ecológico plantado em todo o mundo.
“É uma ideia factível. E, provavelmente, o caminho para conectar outras áreas. No Cerrado, estamos em contato com fazendeiros e agricultores assentados para viabilizar”, diz a pesquisadora.
Além de se beneficiar dessas iniciativas, a anta contribui para sua manutenção. A pesquisa da equipe da conservacionista conseguiu comprovar uma hipótese antiga: a de que a anta tem um importante papel na disseminação de sementes e consequente preservação ecológica – o que lhe confere o apelido de “jardineira da floresta”.
Patrícia cercou trechos de Mata Atlântica e neles simulou a extinção do animal. O resultado, que será publicado em poucos meses em uma revista científica, é que a floresta ficou muito menos diversa nessas porções. “É um bicho grande, que come de 6 a 8 quilos de frutos por dia. Tem enorme potencial de semeador”, conclui.
Imagem do banner: Patrícia Medici, premiada com o prestigioso Whitley Gold Award em 2020, observa uma anta capturada temporariamente para estudos. Foto: João Marcos Rosa.
Mais reportagens da Mongabay sobre fauna brasileira aqui.