Queda no consumo de açaí e castanha-do-brasil é um indício de que a desaceleração econômica provocada pela pandemia de covid-19 já chegou à floresta.
Medo dos especialistas é de que as comunidades extrativistas busquem fontes alternativas de renda na criação de gado e na extração, o que pode favorecer a derrubada de árvores.
Embora gere R$ 1,5 bilhão anualmente para o país, o extrativismo sofre com a falta de investimento, o que pode dificultar a recuperação do setor após o fim da pandemia.
Para a economia da floresta, o colapso econômico provocado pela pandemia de coronavírus já chegou.
No Pará, o maior produtor de açaí do Brasil, as 80 fábricas de processamento de polpa da fruta ligadas ao sindicato local encontram-se paradas ou com funcionamento drasticamente reduzido – realidade que pode ser verificada também em outros estados como o Amazonas e o Amapá.
“Milhares de famílias que já adquiriram o costume de viver da coleta da fruta estão desassistidas em plena safra. Está tudo parado”, diz Reinaldo Mesquita, presidente do Sindifrutas (Sindicato das Indústrias de Frutas e Derivados) do Pará. “Os valores para a refrigeração do produto em uma fábrica de pequeno porte chegam facilmente a R$ 100 mil por mês e não temos qualquer subsídio ou auxílio governamental para continuarmos operando.”
No Brasil, o principal mercado consumidor de açaí na forma de polpa é o estado de São Paulo – hoje o epicentro da covid-19 no país, onde as medidas de isolamento social levaram ao fechamento de bares e restaurantes. Do volume que é exportado, 70% vão para os Estados Unidos, maior foco da crise no mundo atualmente.
Com a castanha-do-brasil, que tem sua safra ocorrendo entre dezembro e abril, a realidade não é diferente. Segundo Fabiano Silva, coordenador executivo da Fundação Vitória Amazônica (FVA), o ano de 2020 já era temerário para o produto por conta de grandes estoques remanescentes do ano anterior nas usinas de beneficiamento.
“As pequenas fábricas reúnem dezenas de pessoas trabalhando lado a lado, o que agora é inviável. Também não sabemos como está sendo a extração nas diferentes regiões amazônicas, se os castanheiros estão optando por adentrar ou não à mata. O que já é certo é que o valor de venda estará muito abaixo do normal. É um momento de completa incerteza”, afirma.
A FVA atua há 30 anos com ações de desenvolvimento socioambiental na bacia do Rio Negro, no estado do Amazonas, realizando projetos no Parque Nacional do Jaú, na Reserva de Desenvolvimento Sustentável Amanã e na Reserva Extrativista do Rio Unini. Nesta última, funciona a única cooperativa de beneficiamento de castanha-do-brasil dentro de uma unidade de conservação no país, sem previsão de iniciar suas atividades de produção para essa safra.
Quem paga o preço é a floresta
Com a crise econômica deflagrada pela pandemia, porém, quem pode acabar pagando um preço alto é a própria floresta. Diante da queda no consumo de produtos da biodiversidade amazônica, é possível que os coletores busquem fontes de renda alternativas em atividades que vão na contramão da conservação, como a pecuária e a extração de madeira.
É fato que, em um momento de escassez, a segurança alimentar das populações tradicionais pode ser garantida de maneira distinta da que ocorre em uma grande cidade, por meio da caça, da pesca ou da colheita em pequenos roçados. Essas alternativas, porém, não são as mesmas para todas as regiões e culturas.
“O que não podemos esquecer é que, na imensa maioria dos casos, quem está lá na ponta cortando a árvore ou fazendo queimada para abrir pasto ilegalmente não fez simplesmente a escolha por destruir a floresta. Trata-se de uma realidade na qual as opções de trabalho e renda estão longe de serem abundantes, diz Maria Madalena Cavalcante, líder do Grupo de Pesquisa em Geografia e Ordenamento do Território (GOT-Amazônia) na Universidade Federal de Roraima (UNIR).
“E, se com a pandemia, outros recursos se tornam mais escassos, mesmo que a cultura dos habitantes da Amazônia não seja alinhada com a ideia de acúmulo de capital, essas pessoas farão o necessário para alimentar os filhos e adquirirem bens que tornem suas vidas mais confortáveis e dignas”, ela completa.
Reinaldo Mesquita, do Sindifrutas do Pará, conta que isso já está acontecendo com as comunidades coletoras de açaí.
“A alternativa mais rápida e direta para as milhares de famílias que vivem da extração da fruta nas ilhas paraenses é voltar a derrubar as árvores de açaí para produzir palmito em conserva, que pode ser consumido e vendido localmente, estocado com muito mais facilidade e por muito mais tempo. É algo que já está acontecendo.” Segundo Mesquita, esse é um retrocesso de mais de dez anos, quando o corte de açaizeiros era a principal atividade na região.
“É muito difícil prever como será a recuperação depois disso – até porque uma árvore plantada leva no mínimo quatro anos para dar frutos”, ele complementa. “E não é possível julgar esses ribeirinhos, que têm urgência de buscar formas de alimentar os seus filhos.”
Falta de investimento dificulta recuperação
Enquanto isso, mesmo com uma inevitável queda no consumo, commodities como madeira, carne e minérios devem continuar impactando na degradação da Amazônia, já que são tidos como produtos essenciais para a manutenção de outras cadeias.
Os minérios e a madeira, que geram lucros principalmente a agentes externos à floresta seja nas atividades legais ou ilegais, podem ser facilmente estocados para aguardar o reaquecimento econômico. E o gado, ainda que solicite investimentos, também pode ser mantido nos pastos, com a pecuária ainda recebendo subsídios para avançar na região amazônica.
“Analisar a economia amazônica é complexo por causa da diversidade de realidades e fluxos. O certo, porém, é que os mecanismos de acesso aos recursos sempre favoreceram os grandes empresários e o capital internacional”, afirma Maria Madalena Cavalcante. “O desenvolvimento econômico local, voltado para o fortalecimento da autonomia dos povos que habitam a floresta nunca foi prioridade das políticas públicas no Brasil.”
De modo geral, ainda é incipiente o investimento no extrativismo e no manejo efetivo, ações que fortaleceriam uma economia florestal baseada no equilíbrio entre ganho financeiro, manutenção dos modos de vida tradicionais e conservação, mesmo com projetos e pesquisas sendo realizados há décadas em prol dessas atividades.
Segundo Roberto Palmieri, secretário-executivo do Imaflora (Instituto de Manejo e Certificação Florestal e Agrícola), o extrativismo gera aproximadamente R$ 1,5 bilhão anualmente para o país. “Há uma diversidade considerável, com produtos como o guaraná, a pimenta, óleos de andiroba e copaíba e uma série de outros que hoje são utilizados por indústrias de alimentos e de cosméticos. Mas a verdade é que os produtos extrativistas ainda são enxergados como sendo ‘de butique’.”
“Um dos esforços dos nossos projetos, além de consolidar mercados e valorizar esses produtos, é conseguir criar redes de consumo locais já que, desta maneira, a margem de ganho para o produtor é maior. Nas chamadas cadeias longas existem muitas intermediações até o consumidor final, o que diminui consideravelmente o ganho dos trabalhadores da floresta”, explica Palmieri.
Essas cadeias focadas em mercados mais distantes trazem maior vulnerabilidade exatamente em momentos como o atual, em que o consumo nos grandes centros urbanos apresenta quedas acentuadas. Os dois principais produtos extrativistas não-madeireiros amazônicos – o açaí e a castanha-do-brasil – estão inseridos em cadeias longas.
Incerteza diante das queimadas
Fabiano Silva, da FVA, aponta ainda outra preocupação: como os técnicos que prestam suporte aos extrativistas não estão autorizados a entrar nas unidades de conservação para evitar possíveis contágios, os esforços na construção de iniciativas em prol dos coletores estão comprometidos. “A gente não sabe quando vai ser possível voltar e o medo é que ações que estão sendo construídas há anos simplesmente se desintegrem”, diz.
A presença de técnicos tem sido uma das chaves para que os trabalhadores da floresta tenham acesso a informações sobre como realizar as melhores escolhas diante das alternativas para a sua sobrevivência e sustento. Em locais como a Reserva Extrativista Chico Mendes, no Acre – a unidade de conservação mais ameaçada por desmatamento no Brasil -, a alternativa à queda no mercado da castanha tem sido justamente a abertura irregular de pastos para a criação de gado.
“O que percebemos é que ainda não foi estabelecida uma cultura que salvaguarde as atividades econômicas que mantêm a floresta em pé”, sentencia João Tezza, economista e doutor pelo Centro de Ciências do Ambiente e Sustentabilidade na Amazônia da Ufam/UNB e diretor da Trade consultoria, empresa incubada no Inpa (Instituto Nacional de Pesquisas na Amazônia). “Em um momento difícil como o atual, a floresta e seus habitantes pagam caro por essa histórica falta de seriedade e investimento.”
Maria Madalena Cavalcante, por sua vez, está pessimista: “O pior ainda está por vir, já que o auge das queimadas, sobretudo nos estados de Roraima, Mato Grosso e Acre, ocorre nos meses de julho e agosto, quando a seca se acentua. As dificuldades financeiras dos extrativistas e os discursos governamentais que incentivam as práticas econômicas ilegais terão consequências especialmente trágicas este ano”.
Imagem do banner: Criação de gado na Resex Chico Mendes, no Acre. Foto: Pedro Saldanha Werneck / Mídia NINJA [CC-BY-NC].
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