Ideal conservacionista do grande líder seringueiro dilui-se em um tempo em que o Acre se defronta com complexas pressões econômicas; jovens são atraídos a deixar o extrativismo para trabalhar em atividades mais estáveis, como a criação de gado.
Extração de castanha-do-brasil é agora a principal fonte de renda dentro da Reserva Extrativista Chico Mendes, criada há 30 anos para salvaguardar a coleta tradicional do látex. Assim como no auge dos seringais, o manejo da castanha nativa ajuda a manter a floresta em pé.
Os castanheiros, no entanto, enfrentam desafios de mercado: mesmo sendo um dos principais produtos da Amazônia, a castanha ainda tem uma cadeia marcada pela informalidade e a falta de regulação. A pecuária também está aumentando na região: no início de 2020, a reserva foi a unidade de conservação com maior índice de desmatamento no Brasil.
“Estamos enfraquecidos, mas o espírito de luta segue presente”, diz Antônio Mendes, primo de Chico Mendes. “A gente não vai desistir porque essa reserva não veio de graça”.
Sentado na varanda de sua casa na comunidade Porvir, dentro da Reserva Extrativista Chico Mendes, no Acre, Severino da Silva Brito, o seu Silva, observa com ar de desalento a chuva pesada da Amazônia. “Estou planejando ir embora”, afirma.
Liderança antiga e respeitada dentro da reserva, morador da região desde antes da sua demarcação, Brito diz não se conformar com o atual estado das coisas. Nos meses de janeiro e fevereiro de 2020, a Resex Chico Mendes foi a unidade de conservação com maior índice de desmatamento no país, seguindo a tendência dos meses anteriores. Em 12 de março, a reserva completou 30 anos de sua criação.
Nas décadas de 70 e 80, os seringueiros – trabalhadores da floresta que viviam há gerações da extração de látex das árvores-da-borracha na região do Alto Acre – uniram-se para resistir às expulsões em áreas adquiridas por fazendeiros interessados em estabelecer ali a atividade pecuária.
“Naquela época, a preocupação principal era com a nossa sobrevivência, com o nosso modo de vida. Mas, com o tempo, a gente acabou percebendo que era uma luta também pela conservação da floresta”, conta Valderi Martins da Silva, extrativista que participou do processo de implantação da reserva.
Foi uma luta banhada em sangue. Em 1980, um dos líderes do movimento, o extrativista e sindicalista Wilson Pinheiro, foi morto na cidade de Brasileia, dentro da sede do Sindicato dos Trabalhadores Rurais. A partir de então, a liderança passou a ser protagonizada por Chico Mendes, também ameaçado e, por fim, assassinado em sua casa na cidade de Xapuri, em 1988.
O crime teve repercussão mundial. O isolado Acre virou notícia como uma terra de resistência, de defesa da floresta e dos direitos da sua gente. Chico Mendes é ainda hoje um dos maiores ícones das causas ambientalistas no Brasil. “Mas, quando você conta essa história para um jovem daqui, ele reage como se a gente estivesse falando de uma lenda”, diz Valderi da Silva.
Lúcia Wadt, engenheira florestal, pesquisadora da Embrapa (Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária) e especialista em castanha-do-brasil que atua na região há aproximadamente 20 anos, concorda. “Mesmo com todo esse histórico, eu percebo que, em outras reservas extrativistas onde trabalho, há um cuidado maior com a floresta do que aqui. Sinto que essa preocupação com a conservação está presente nos moradores antigos, mas não ocorre de forma tão intensa entre os mais jovens”, aponta.
As transformações não ficam restritas à diluição da consciência ambiental – elas envolvem novos modos de vida. A geração seguinte à de seu Silva e Valderi viu se ampliarem os chamados “ramais”, estradas de terra que permitem acesso de veículos a diversas áreas da reserva e são consideradas uma conquista. A maioria das casas tem energia elétrica trazida por linhões e algumas contam com telefone fixo, essencial para emergências, embora não exista sinal de celular ou internet.
Novos protagonistas: os castanheiros
Mesmo que ainda recebam o nome de seringais, as 48 áreas delimitadas na Resex Chico Mendes não têm mais como foco a extração do látex das seringueiras. O domínio produtivo exercido pela Malásia e a queda da utilização do látex natural na indústria impuseram um novo horizonte econômico dentro da reserva. O protagonismo comercial agora é da castanha-do-brasil.
Todos os anos, entre os meses de dezembro e abril, durante o “inverno” amazônico e respeitando o ritmo natural da queda dos ouriços onde ficam depositadas as castanhas, milhares de extrativistas adentram a mata da reserva.
No chão, depois de caírem das castanheiras, os ouriços são coletados com a ajuda de cambitos (instrumentos feitos com um cabo de madeira aberto em uma das extremidades, de forma a permitir o encaixe dos ouriços) e jogados em paneiros, cestos trançados que os castanheiros levam atados às costas.
Após serem depositados e reunidos, os ouriços são apoiados em suportes de madeira confeccionados pelos trabalhadores e quebrados ali mesmo por foices especialmente adaptadas para o serviço. As castanhas são então selecionadas – as que têm fungos são descartadas – e depois ensacadas para serem transportadas em veículos pelos ramais.
O aprendizado da atividade se dá entre as gerações de castanheiros, com os filhos acompanhando os pais nos meses de coleta. A medida utilizada para a venda não é o quilo, mas a lata (em geral de 18 litros), seguindo a cultura castanheira instaurada pelos antigos trabalhadores que aprenderam a retirar da mata o seu sustento desde, pelo menos, o início do século 20.
O Ciclo da Borracha foi uma época em que a população local cresceu subitamente. Milhares de nordestinos foram colocados na floresta em condições precárias com o intuito de ocupar a área e fornecer a borracha que se transformaria em um dos principais produtos do Brasil.
A relação dos seringueiros com os patrões se estabelecia na base da troca de látex defumado por alimentos e outros produtos de consumo pessoal. Raramente eram pagos em dinheiro. Um novo ciclo nasceu com a demanda de borracha para a indústria bélica na Segunda Guerra Mundial, com numerosas levas de migrantes chegando ao Acre. Eram chamados de Soldados da Borracha.
Assim como ocorreu com o látex, a atividade castanheira ganha corpo de acordo com demandas do mercado, como a chegada de novos consumidores em outras regiões do país e no exterior. Hoje, os extrativistas vendem a castanha que coletam a atravessadores – revendedores presentes nas cidades dos arredores da Resex Chico Mendes (Brasileia, Epitaciolândia, Assis Brasil, Sena Madureira, Xapuri e até mesmo a capital Rio Branco, a apenas 2 horas de distância de carro).
Outra compradora é a Cooperacre (Cooperativa Central de Comercialização Extrativista do Acre), que oferece um valor um pouco maior do que a média aos seus associados e realiza o beneficiamento e envase para venda. Não há hoje nenhum projeto de beneficiamento ou cooperativa em funcionamento dentro da Resex Chico Mendes.
Pesquisadores ajudam na busca por soluções
As ações que buscam oferecer melhores condições de produção e alternativas de renda para os extrativistas da reserva são fruto do trabalho de cientistas, em projetos financiados por centros de pesquisa e entidades nacionais e estrangeiras.
Desde 2016, Lúcia Wadt atua com subsídio do projeto Bem Diverso, resultado de parceria entre a Embrapa e o Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD), com recursos do Fundo Global para o Meio Ambiente. Ela lidera uma equipe de pesquisadores que realiza o monitoramento de castanheiras em regiões específicas da Resex Chico Mendes, além de apresentar ações que visam valorizar a castanha ali produzida.
A equipe articulada pelo projeto Bem Diverso também possibilitou a aprovação e o avanço das ações contempladas pelo edital Ecoforte Extrativismo, que prevê a construção de 41 armazéns com recursos provenientes do Fundo Amazônia e da Fundação Banco do Brasil. Com esses espaços de armazenamento, os trabalhadores da floresta contemplados passam a ter como estocar a castanha de maneira adequada, garantindo maior qualidade e a possibilidade de negociação em momentos diferentes da safra.
Outro modelo de produção são os SAFs (Sistemas Agroflorestais), com o cultivo combinado de frutas e outros itens alimentícios com o intuito de diversificar a renda.
O principal SAF da reserva fica na “colocação” (como são chamadas as áreas delimitadas para cada família extrativista) de João Evangelista da Silva, o seu João, e foi estruturado com o auxílio do pesquisador da Embrapa Tadário Kamel de Oliveira. O sistema permitiu, de fato, a expansão dos ganhos de seu João com a diversificação de produtos, com destaque para frutas como o limão e a banana.
Todos esses esforços, porém, ainda que celebrados pelos extrativistas, não são suficientes para fortalecer a economia da Resex Chico Mendes a ponto de diminuir a atratividade da criação de gado como principal alternativa complementar de renda.
Um produto ainda subestimado
A extração de castanha é uma atividade ancestral na floresta. Há indícios arqueológicos do consumo e dispersão de sementes por povos amazônicos há, pelo menos, 5 mil anos. O problema é que, mesmo sendo um dos mais conhecidos produtos locais, a castanha-do-brasil tem uma cadeia fundamentalmente marcada pela informalidade e a falta de regulação.
“Podemos dizer que as condições melhoraram no sentido de que o valor da lata aumentou nas últimas décadas. Mas ainda não há um olhar proporcional à importância desse produto para a manutenção do modo de vida extrativista e a conservação da Amazônia”, afirma Lúcia Wadt.
O Brasil é o segundo maior produtor mundial da castanha desde 2004, quando perdeu a liderança para a Bolívia. O país vizinho, que faz divisa com o Acre, investiu no beneficiamento aprimorando, por exemplo, o armazenamento e o envase, tornando o seu produto mais confiável aos olhos do mercado internacional. Não por acaso, diversos moradores da Resex Chico Mendes já passaram algum período trabalhando em solo boliviano, em busca de novos conhecimentos.
Em 2017, uma enorme quebra de safra causada pelo fenômeno El Niño fez os ouriços diminuírem até 70% em toda a região amazônica. O problema gerou uma alta no valor do produto de quase 100% e sua procura caiu. Mesmo com a regularização da produção, porém, os compradores não retornaram.
“Em 2020, a dificuldade é por causa do coronavírus”, explica Aline Nobre do Nascimento, revendedora de castanha na cidade de Brasileia. Como a regulação e o investimento são escassos, as flutuações do mercado e do valor do produto impactam diretamente na renda dos extrativistas.
Oscilações de mercado à parte, a própria natureza da atividade extrativa não favorece a dedicação exclusiva à castanha-do-brasil. Passados os meses de coleta, muitos trabalhadores ficam praticamente ociosos – nesse período, é tentador que busquem alternativas na criação de gado.
Outra questão é que, em algumas áreas da reserva, que tem quase 1 milhão de hectares, a presença de castanheiras é mais rara.
“Proteger essa área é uma tarefa complexa que passa não só pela fiscalização mas, sobretudo, pelo desenvolvimento social e econômico das comunidades, para que sejam geradas alternativas à castanha e não desmatem”, explica Wilker Nazareno da Silva e Silva, responsável pela Resex Chico Mendes no ICMBio (Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade), órgão ligado ao Ministério do Meio Ambiente.
“Eu costumo dizer que me sinto quase um prefeito, já que tenho por responsabilidade cuidar da conservação de uma área habitada por milhares de pessoas”, completa. O censo realizado em 2009 indica a presença de 2 mil famílias e aproximadamente 10 mil pessoas dentro da reserva. Existem apenas cinco agentes do ICMBio atuando na área hoje.
Igrejas pentecostais e neopentecostais de diferentes filiações acabam sendo os principais focos de organização comunitária, reunindo os extrativistas em seus cultos e em grupos de jovens, crianças e mulheres. Não há dados oficiais sobre a quantidade de igrejas – segundo os moradores, são aproximadamente uma centena delas.
Embora seja necessária uma autorização para a moradia e uso das terras por parte do ICMBio e uma regulação das próprias comunidades em aceitar ou não novos moradores, há casos em que colocações são sublocadas, vendidas irregularmente ou têm casas construídas para receber novos membros, com a ampliação dos núcleos familiares. De acordo com o ICMBio, dados demográficos atualizados serão divulgados em julho de 2020.
O que é possível verificar com maior grau de certeza é que o desmatamento segue em ritmo acelerado. E sua principal fonte também é amplamente conhecida: a derrubada de árvores para a abertura de pastos dentro e nos arredores da reserva. A atividade é permitida no limite de 10% da área total de cada colocação, podendo chegar a 30 hectares, de acordo com o Plano de Utilização.
Momento político também prejudica
No centro da cidade de Xapuri, placas indicam como principal atração turística a casa de Chico Mendes. Só que, desde o final de 2018, não é possível entrar no local, onde o líder seringueiro morava com a família e foi assassinado. A falta de repasses por parte da Secretaria da Cultura levou ao fechamento da casa.
O governo do Acre está alinhado ao presidente Jair Bolsonaro, que recebeu 77% dos votos no estado – a maior votação percentual do país. Durante as eleições, foi em Rio Branco que o então candidato à presidência afirmou publicamente que fuzilaria seus adversários políticos e os expulsaria do Acre.
Além do apagamento simbólico, discursos governamentais que visam o enfraquecimento dos movimentos ambientalistas, sociais e sindicais tornam ainda mais difícil uma resistência estruturada por parte dos trabalhadores da floresta em defesa da Resex Chico Mendes.
“Estamos enfraquecidos, mas o espírito de luta segue presente. Pode matar um que ainda vão existir muitos outros. A gente não vai desistir porque essa reserva não veio de graça”, explica Antônio Mendes, extrativista e primo de Chico Mendes. Ele também vê na fragilidade do mercado da castanha um fator que favorece o desmatamento. “O que o extrativista sabe fazer é viver da floresta. Se não tem comprador para o produto dele, qual a alternativa?”, questiona.
Em novembro de 2019, a deputada Mara Rocha (PSDB-AC) apresentou um projeto de lei que visa diminuir os limites da reserva extrativista, retirando dela partes que, alega, sempre foram usadas para a pecuária e que hoje estariam descaracterizadas como área de conservação.
A deputada apoia-se no argumento de que é necessário permitir aos extrativistas que não conseguem o seu sustento “permanecer nas atividades em que sempre laboraram, a saber: a criação de gado e a agricultura”. O projeto é alvo de críticas por parte de extrativistas, pesquisadores e agentes ambientais.
Uma das áreas mais conservadas do estado do Acre, ao lado das terras indígenas e do Parque Nacional da Serra do Divisor, a Resex Chico Mendes é ainda fonte constante de ações de retirada ilegal de madeira. Mesmo com todo o desalento, Severino da Silva Brito, o seu Silva, ainda cultiva alguma esperança. “A Resex Chico Mendes é igual o planeta: tem jeito, mas tem que se fazer alguma coisa agora. Não adianta só vir e multar quando derrubarem a floresta para fazer pasto, tem que fazer um trabalho de conscientização. Porque se os extrativistas todos saírem, eu não dou três anos para tudo isso aqui estar no chão”, finaliza.
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Imagem do banner: Usando uma foice especial, o castanheiro quebra os ouriços para obter a castanha. Foto: Flavio Forner.
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