O presidente Michel Temer assinou um decreto em 2017 para permitir a mineração na Reserva Nacional de Cobre e Associados (Renca), de 4,6 milhões de hectares, entre Pará e Amapá. Diante de uma enxurrada de críticas, ele abandonou a iniciativa. Fontes agora dizem que o governo Bolsonaro planeja ressuscitar o plano em 2020.
Ao mesmo tempo, com Bolsonaro no poder, mineradoras transnacionais fazem pressão por uma mudança na legislação brasileira que permita às empresas operarem dentro de áreas protegidas e terras indígenas por todo o país. A mudança pode ser introduzida em 2020: Bolsonaro já está com o projeto de lei pronto para ser enviado ao Congresso.
Caso a mineração na Renca e em outros lugares aconteça, será necessário transporte para escoar a produção. O projeto da Ferrovia Pará (Fepasa) levaria as commodities através do território paraense até a costa. Outros planos preveem 20 novos portos fluviais, duas usinas termoelétricas e uma linha de transmissão atravessando o Pará.
Todos esses grandes projetos, contudo, enfrentam um obstáculo legal. A Constituição brasileira estabelece que nenhuma medida importante que permita a mineração em terras indígenas pode ser autorizada, nem grandes projetos de infraestrutura podem ser aprovados antes do cumprimento de alguns pré-requisitos, entre eles o consentimento das comunidades indígenas e tradicionais afetadas.
Quando o presidente Michel Temer assinou um decreto em agosto de 2017 para liberar a mineração na vasta Reserva Nacional de Cobre e Associados (Renca), uma área de 47 mil km2 entre Pará e Amapá, enfrentou uma enxurrada de críticas.
A Renca foi estabelecida pelos militares em 1984. Não para proteger a Floresta Amazônica, mas para garantir que qualquer atividade de extração econômica de cobre e minerais associados fossem de exclusividade da Companhia Brasileira de Recursos Minerais ou empresas por ela autorizadas. No fim, a reserva acabou se tornando um dos trechos mais preservados da Amazônia: quase 95% de sua área – do tamanho da Suíça – está hoje protegida, com sete unidades de conservação e dois territórios indígenas dentro de seus limites. E apenas 0,3% foi desmatado.
Com base na Constituição de 1988, que não permite a extinção da reserva pelo presidente, e sim por meio de ação do Legislativo, um juiz federal anulou o decreto.
Agora, com os ruralistas mais poderosos do que nunca no Congresso e Bolsonaro no comando, observadores dizem que é apenas uma questão de tempo até que o governo se una às mineradoras para fazer nova tentativa. Há indícios, segundo fontes de Mongabay, de que estão se preparando para agir no começo de 2020.
A Renca é um prêmio tentador. A riqueza mineral que está debaixo das florestas preservadas é imensa, com reservas estimadas de ouro, ferro, fosfato, titânio, manganês, nióbio e tântalo. “Estudos feitos na década de 1970/80 dizem que teríamos mais de US$ 1 trilhão [R$ 4 trilhões] para explorar”, disse ao El País o senador Lucas Barreto, um dos principais defensores da abertura da reserva. “Imagina esse valor atualizado.”
Embora os generais que estavam no poder no início dos anos 1980 tenham adotado políticas nacionalistas, especialmente na indústria, eles também estavam ansiosos para atrair mineradoras internacionais. A criação da Renca foi de certa forma uma exceção.
De acordo com a BBC, a mineradora britânica BP queria explorar a Renca, mas o contra-almirante Roberto Gama e Silva, um ferrenho nacionalista, disse na época ao poderoso Conselho de Segurança Nacional que ceder os direitos de mineração à BP poderia servir aos interesses do norte-americano Daniel Ludwig, então um dos homens mais ricos do mundo, que na época estava inaugurando o projeto agroindustrial do Jari, ali perto. Como resultado, a entrada da mineração na Renca foi vetada.
Lobby das mineradoras
As mineradoras desde então vêm fazendo lobby para acabar com essa proibição, e as empresas canadenses, em especial, estão ansiosas para ter acesso à Renca. O senador Barreto revelou recentemente que Bolsonaro disse que o governo está preparando uma nova versão do decreto de Temer para a reserva. Outras fontes presidenciais confirmam que a medida será tomada em breve.
Certamente haverá protestos de novo. “Todos com quem converso estão escandalizados com a possibilidade de se extinguir a Renca”, diz Randolfe Rodrigues, líder da oposição no Senado, enquanto estava em Madri para a Cúpula do Clima, a COP25, em dezembro. Parece provável, também, que a legalidade do decreto seja desafiada nos tribunais mais uma vez, com resultado incerto.
Pessoas que conhecem a região estão preocupadas com o impacto, não só das minas, mas também dos danos colaterais que a abertura da Renca ocasionará às comunidades indígenas, às populações tradicionais e à floresta. “Para se explorar a maioria dos minérios tem de se planejar toda uma logística com estradas, ferrovias, tem de ter energia elétrica”, diz Décio Yokota, coordenador-executivo-adjunto do Instituto de Pesquisa e Formação Indígena (Iepé).
O governo Bolsonaro já fez esforços nos bastidores para acelerar as obras de construção da muito adiada linha de transmissão Manaus-Boa Vista, que passaria pela Terra Indígena Waimiri-Atroari. Ela forneceria energia da hidrelétrica de Tucuruí para novas minas e fábricas de processamento de minério famintas por eletricidade na Renca. Uma proposta totalmente inesperada feita no começo do governo para estender a BR-163 ao norte até a fronteira com o Suriname também pode fazer parte do plano, embora não diretamente ligada à abertura da reserva, que está localizada muito mais ao leste.
Yokota diz que grandes projetos de infraestrutura como esses que estão sendo considerados para a Renca deixam apenas desolação no caminho. “As grandes hidrelétricas, as mineradoras, fazem a destruição, exploram, extraem e quando fecham, é o fim, mesmo. Não geram riqueza local”, diz ele. Em vez disso, segundo Yokota, o governo deveria investir em projetos sustentáveis, que não destroem a floresta.
Milhares de áreas de mineração já mapeadas
Enquanto isso, com Bolsonaro no poder, as mineradoras pressionam por uma mudança na lei brasileira que as permitiria não só explorar uma reserva, por maior e mais rica que seja, mas também áreas protegidas e terras indígenas de todo o país. Tal mudança poderá ser introduzida em breve, agora que Bolsonaro já tem pronto o projeto de lei que será enviado ao Congresso a qualquer momento.
Contudo, uma série de obstáculos legais se coloca no caminho. A Constituição brasileira estabelece que nenhuma medida pode ser autorizada para permitir a mineração em áreas indígenas sem que inúmeros pré-requisitos sejam cumpridos, entre eles o consentimento das comunidades afetadas.
De acordo com o jurista e ex-presidente da Funai (Fundação Nacional do Índio), Carlos Marés, isso significa que todos os povos indígenas do Brasil deveriam ser consultados, de acordo com as normas estabelecidas na Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho, da qual o Brasil é signatário. Na prática, tal aprovação parece remota ou até mesmo impossível.
O governo ainda não indicou como planeja resolver isso. Mesmo assim, a Agência Nacional de Mineração (ANM), órgão responsável pela mineração no país, aceitou as propostas iniciais das mineradoras para operar em 48 territórios indígenas, concessões cujas divisas foram bem mapeadas.
No final de novembro, o Ministério Público Federal (MPF) pediu à ANM para descartar essas propostas até que as exigências legais da Constituição fossem cumpridas. A ANM argumentou, por sua vez, que pode autorizar estudos iniciais, desde que a mineração propriamente dita não comece até que as demandas sejam atendidas.
O MPF discorda, alegando que esses processos minerários adiantados ajudam indiretamente as mineradoras. “É certo que os processos minerários não produzem, por si sós, os danos socioambientais, mas integram um feixe de ‘documentos’ que conferem aparência de legalidade à atividade”, afirma o MPF. “Esses documentos são utilizados in loco para garantir a detenção sobre a área do garimpo, recrutar trabalhadores, contratar serviços e até mesmo ludibriar os indígenas.”
De acordo com o Instituto Socioambiental (ISA), mineradoras registraram 3.347 pedidos de direitos de mineração em sete estados da Amazônia – Acre, Maranhão, Mato Grosso, Pará, Rondônia, Roraima e Tocantins. Eles envolvem 131 reservas. A maior parte dos processos está no Pará, com 2.266 pedidos.
Infraestrutura para abrir caminho
Se essas minas avançarem, elas precisarão, como o agronegócio, de transporte, principalmente de ferrovias. Nesse sentido, em 12 de novembro, o governo do Pará assinou um protocolo de intenções para realizar um estudo de viabilidade para a Ferrovia Pará, conhecida como Fepasa.
A Fepasa seguirá praticamente por uma direção norte-sul, de Parauapebas, no sudeste do Pará, atravessando a cidade de Marabá, no Rio Tocantins, até o município de Barcarena, a oeste de Belém, próximo à costa. O objetivo do governo é usar a Fepasa para transportar minério e soja do interior do estado para ser exportados por navios transatlânticos através do estuário do Rio Amazonas. A construção deve começar em 2021, mas até agora, nenhuma das comunidades indígenas impactadas foram consultadas, como é exigido pela Convenção 169 da OIT.
A ferrovia é apenas parte de um plano ambicioso de infraestrutura para expandir a capacidade logística da região, que inclui a construção de pelo menos 20 novos portos fluviais, duas estações de energia termoelétrica e uma linha de transmissão do norte ao sul do Pará. Parece certo que a floresta no estado não sobreviverá a um ataque tão violento.
João Gomes, diretor assistente do Programa da Amazônia da Federação de Órgãos para Assistência Social e Educacional (Fase), concorda que a mineração e o agronegócio concentram a renda entre as elites, ao mesmo tempo em que representam impactos socioambientais muito sérios.
Nesse ponto, também os planos de desenvolvimento do governo enfrentam obstáculos, especialmente das regulações ambientais. Para contornar esses impedimentos, o governo pressiona pela aprovação de um novo projeto de lei (PL 3.729) no Congresso. Ele simplificaria o processo de avaliação e aprovação ambiental, reduzindo as três fases do atual processo de licenciamento para apenas uma. Esses projetos de lei apressados já foram apresentados antes, mas nunca para um Congresso ruralista tão cooperativo.
Ataques à ciência e aos indígenas
O governo está atacando a Amazônia em outras frentes também. Órgãos de pesquisa importantes, como o Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia (Inpa), e o Museu Emílio Goeldi, no Pará, cujos estudos às vezes alertam as autoridades a adotarem medidas mais duras para a proteção da floresta, tiveram seu orçamento severamente reduzido no governo Bolsonaro.
“Sem concursos públicos e abertura de vagas para repor a enorme quantidade de pessoal qualificado que se aposentou, nossas instituições perdem cérebros, capacidade de produção e comunicação do conhecimento, formação de pessoal especializado e de colaboração junto a gestores, setores produtivos e comunidades”, disse à BBC Ana Luísa Albernaz, diretora do Museu Goeldi.
Arqueólogos também estão sofrendo cortes dramáticos de financiamento que prejudicarão o trabalho de documentação da rica pré-história indígena da Amazônia e os impedirão de recuperar relíquias. Além disso, esses cortes impedem as escavações, que poderiam dar motivo para retardar projetos de infraestrutura e mineração.
O governo Bolsonaro já enfraqueceu o Ibama e o ICMBio, os dois principais órgãos de proteção ambiental do Brasil, e também deu passos para tornar a Funai praticamente inoperante. Apesar de enfraquecida nos últimos anos, a Funai continuou fornecendo um apoio inestimável às comunidades indígenas e lentamente realizou a demarcação de reservas.
Tudo isso está acabando agora. Um golpe severo para a instituição foi a decisão de Bolsonaro, em julho, de nomear Marcelo Augusto Xavier da Silva, um ex-policial com fortes conexões com o agronegócio, como presidente da Funai.
Muitos líderes indígenas ficaram horrorizados na época, temendo que a nomeação fosse um anúncio de morte da fundação. Hoje parece que seus temores eram justificados.
Em novembro, a Associação Brasileira de Antropólogos (ABA) lançou um comunicado à imprensa no qual acusava a Funai de agora selecionar pessoal “sem as mínimas qualificações e legitimidade” para identificar e demarcar terras indígenas.
Um exemplo citado pela ABA é o desmantelamento de dois grupos criados para identificar e demarcar as terras dos povos indígenas Tuxi e Pankará, ambos de Pernambuco. A Funai de Bolsonaro pediu, segundo a ABA, que o pessoal altamente qualificado já escolhido para ocupar os cargos desses grupos seja substituído por “antropólogos confiáveis”, código, ao que parece, para pessoas que farão o que o governo quer, de acordo com críticos.
Em novembro, Silva disse à equipe da Funai que ela estava proibida de visitar terras que em processo de demarcação, impedindo-os de realizar a verificação que é de sua responsabilidade, segundo a Constituição.
O jornal O Estado de S. Paulo, na ocasião, criticou duramente essa instrução, dizendo que “a decisão, além de afrontar a missão básica da Funai, que é a de atuar para defender os direitos indígenas, também colide com direitos previstos na própria na legislação federal.”
Em dezembro, a Funai começou a substituir os chefes de seus postos regionais. Oito novos coordenadores foram nomeados até agora. Um coronel aposentado do Exército foi escolhido para chefiar o escritório de Dourados, no Mato Grosso do Sul, estado onde há conflito com os índios e um alto índice de suicídio indígena há muitos anos, provavelmente devido ao fracasso do governo em reconhecer os direitos dos Guarani-Kaiowá à terra. Um ex-militar também foi nomeado como chefe da Funai em Humaitá, no Amazonas. Novos chefes da Funai devem ser nomeados para todos os 39 escritórios regionais até o fim de janeiro de 2020.
Contudo, o novo presidente da Funai não tem conseguido fazer o que quer. Organizações indígenas vêm fazendo uma campanha contínua e efetiva em Brasília contra uma proposta de emenda constitucional (PEC 215/00) que transferiria a autoridade sobre a demarcação de terras indígenas do braço Executivo – com realização de estudos pela Funai e aprovação pelo Ministério da Justiça – para o Congresso dominado pelos ruralistas.
A PEC 215/00 também inclui o chamado “marco temporal”, que estabeleceria a data de corte arbitrária de 1988 como o ano em que os grupos indígenas deveriam estar vivendo em suas terras para que elas fossem hoje reconhecidas como sua propriedade. Além disso, ele exige que brasileiros não-indígenas que vivem em terras indígenas recebam uma compensação por qualquer prejuízo, não só por propriedades mas também pela própria terra, se forem obrigados a deixá-la.
O Congresso, embora fortemente ruralista, ainda está dividido sobre a questão do marco temporal, que requer uma maioria de dois terços para ser aprovado. A votação foi postergada duas vezes este ano devido a protestos em Brasília de povos indígenas e quilombolas.
Longe da capital federal, os indígenas estão pagando um preço alto pela impunidade com a qual os grileiros e proprietários de terras têm agido no último ano. Vários líderes indígenas foram assassinados em 2019, o ano em que mais se matou líderes indígenas nas últimas duas décadas. Muitos analistas acreditam que as coisas só vão piorar nos próximos anos, e quando as mineradoras chegarem.
Read this article in English here.