Por todo o Brasil, mulheres indígenas assumem um papel protagonista no combate aos incêndios, aliando conhecimento ancestral, ciência espacial e tecnologia de monitoramento para deter o avanço do fogo e proteger os principais biomas do país.
De olho em ampliar a autonomia das brigadistas, novas parcerias entre o Instituto de Pesquisa Ambiental da Amazônia (Ipam), o Conselho Indígena de Roraima (CIR) e entidades internacionais oferecem cursos de capacitação para estimular a troca de conhecimento entre as profissionais.
Muitas mulheres brigadistas encontram no trabalho de campo uma oportunidade de se afastar da imposição do trabalho doméstico. No entanto, elas dizem ainda sofrer com a estigmatização e com a falta de recursos para garantir um trabalho sólido e duradouro.
Em 2023, o Pantanal ardeu em chamas — no total, mais de 600 mil hectares foram queimados ao longo do ano, segundo o MapBiomas. Luciana Correia da Silva, brigadista indígena Kadiwéu, estava lá. Em meio à fuligem e ao calor, enquanto a fumaça avançava sobre as árvores e afugentava os animais, ela agia para reverter esse cenário.
“Eu nunca tinha visto um fogo daquela proporção; vinha de todos os lados, do solo e das copas dos ‘carandazeiros’ [áreas com grande concentração de carandá, palmeira da espécie Copernicia alba]. Fiquei muito apreensiva com o que poderia acontecer comigo”, disse ela à Mongabay.
Luciana havia dado à luz naquele ano, mas o fogo atrapalhou seus planos. À época do relato, seu bebê tinha apenas seis meses de vida e ficou sob os cuidados de sua cunhada na aldeia Tomázia, na Terra Indígena (TI) Kadiwéu, próxima ao município de Bonito, no Mato Grosso do Sul. Tudo isso para que ela pudesse somar forças à luta travada contra os incêndios na mata.
Hoje, dois anos depois, ela fala na posição de chefe de esquadrão da Brigada Kadiwéu 3, na qual coordena um grupo de seis indígenas que usam a experiência e o conhecimento para combater incêndios no Pantanal. Luciana é uma das poucas mulheres em atividade no campo — além dela, há apenas outra colega na ala feminina da equipe.

A atuação das duas, no entanto, faz parte de uma tendência observada em diversos pontos do território brasileiro: diante dos riscos crescentes que o fogo impõe aos biomas nacionais, mulheres indígenas têm assumido um papel de protagonismo no combate às chamas. Além de cumprirem uma função ambiental, essas novas iniciativas permitem que muitas brigadistas se desvencilhem dos cuidados domésticos — trabalho que, muitas vezes, exercem por obrigação.
Pelo caminho, além dos riscos à saúde, há outro problema: a estigmatização. Ao chegarem à linha de frente, elas realizam o que muitos consideram um “trabalho de homem”, sobretudo por exigir maior resistência física. Além de confrontar o estigma, elas dominam tarefas que também envolvem uma visão estratégica para o mapeamento territorial, a redução do desmatamento e a adoção de ações contra tudo o que possa comprometer o equilíbrio entre a vida e a natureza.
Luciana revela que “nunca duvidou” de suas capacidades. Ela ingressou na brigada atraída pela possibilidade de uma renda estável. Mas, ao longo do tempo, descobriu um sentido muito mais profundo para a atividade — agora, a exerce com segurança, reconhecendo suas próprias habilidades. “Me encontrei na brigada; quero continuar envolvida nesse espaço.”

Com o objetivo de fortalecer a autonomia de brigadistas e comunicadores indígenas que enfrentam o fogo, o Instituto de Pesquisa Ambiental da Amazônia (Ipam) e o Conselho Indígena de Roraima (CIR), em parceria com o Woodwell Climate Research Center, dos Estados Unidos, vêm oferecendo pequenos cursos de comunicação e de gestão do Sistema de Informação Geográfica (SIG) — ferramenta que combina dados e mapas para avaliar o território de forma integrada, detectar vulnerabilidades e direcionar medidas de proteção.
As oficinas, realizadas ao longo deste ano, buscaram aliar o uso da tecnologia ao conhecimento ancestral, sobretudo entre as mulheres, segundo o Ipam. Em junho, as atividades foram levadas à Terra Indígena Krikati, no estado do Maranhão, enquanto novos módulos chegaram a Roraima no mês de setembro.
As aulas mais recentes contaram com a participação de pelo menos 18 integrantes da Terra Indígena Raposa Serra do Sol, em Roraima. Eles representaram seis povos originários do estado: os Macuxi, os Wapichana, os Waiwai e os Taurepang; também participaram os Terena e os Kadiwéu, do Mato Grosso do Sul. Foi durante esse período que Luciana, com apoio financeiro e logístico do Instituto Terra Brasilis, pôde viajar até o norte do Brasil para aprofundar seus conhecimentos sobre as funcionalidades do SIG.
“Acabei me descobrindo; hoje gosto muito do que faço”, disse a indígena Kadiwéu. Ela explica que deseja ver cada vez mais mulheres indígenas aprovadas nos processos seletivos da brigada, realizados a cada seis meses.
Segundo a profissional, a jornada é desafiadora: diante da alta procura, muitas mulheres reprovam nas provas de resistência física, já que disputam as vagas em pé de igualdade com candidatos homens. Isso, porém, nunca as intimidou.

Conhecimento tradicional e tecnologia são aliados na luta contra o fogo
Com uma área de 539 mil hectares, que se estendem entre o Pantanal e o Cerrado, a Terra Indígena Kadiwéu, de Luciana, abriga seis aldeias e conta com duas brigadas mantidas pelo Centro Nacional de Prevenção e Combate aos Incêndios Florestais (Prevfogo). Desde 2011, as unidades de brigadistas Kadiwéu são compostas exclusivamente por profissionais indígenas.
Segundo seus membros, as condições observadas em 2025 têm exigido menos saídas a campo para ações de enfrentamento. O ano anterior, todavia, trouxe maiores desafios: o Monitor do Fogo, do MapBiomas, registrou 1,9 milhão de hectares afetados diretamente no Pantanal, o que representa um aumento de 64% em relação à média dos últimos seis anos. O drama ambiental só foi maior em 2020, quando 2,3 milhões de hectares foram queimados.
Nesse contexto, as secas extremas, que incidiram sobre o bioma no mesmo período, também deixaram os ecossistemas mais expostos ao surgimento e à propagação de focos de fogo, o que aumentou a necessidade de um número maior de brigadistas. Luciana espera que as barreiras sociais sejam superadas a partir da demanda crescente por novos profissionais.
“Há certa resistência cultural. Quem define quem sai [a campo] para trabalhar são os homens, mas acredito que isso vá mudar. Na medida em que mais mulheres assumirem posições de chefia, será natural vê-las nesses cargos”, disse. Por sua experiência, ela espera abrir caminho para que sua filha e as futuras gerações sigam seus passos.
Em contato com outras mulheres indígenas na TI Raposa Terra do Sol, a chefe de brigada aprendeu a fazer mapas que podem auxiliar os Kadiwéu de diversas formas. Ela destaca a criação de um calendário para o Manejo Integrado do Fogo (MIF), descrito pelo governo federal como um “modelo de planejamento e gestão que associa aspectos ecológicos, culturais, socioeconômicos e técnicos” para o combate aos incêndios.
Luciana explica que essa abordagem “preserva os ecossistemas, valoriza o conhecimento local e garante segurança a quem atua em zonas rurais e áreas protegidas”.
O curso de capacitação em SIG também pode aliar conhecimentos, somando a tecnologia geoespacial aos hábitos tradicionais das brigadistas — que registram, muitas vezes à mão, a localização de rios, igarapés, aldeias e tipos de vegetação. Dessa forma, os membros da brigada podem converter as informações em papel em mapas digitais, o que facilita o planejamento e a supervisão de ações mitigadoras, bem como o diálogo com outras instituições.

Além de reunir a memória e a ancestralidade de muitas mulheres, a criação de mapas e de outras ferramentas técnicas também confere credibilidade ao trabalho que exercem — servindo como evidência para distinguir queimas prescritas (ou controladas) de incêndios sem controle.
Esses recursos podem ser úteis diante de eventuais críticas à atividade, como no caso dos brigadistas de Alter do Chão, no Pará — em 2019, os voluntários foram presos sob a acusação de iniciar incêndios criminosos na região de forma proposital, em um processo cercado de controvérsias jurídicas e de denúncias de falta de provas.
Apesar dos avanços, Luciana diz que a base de sua brigada ainda não dispõe de uma estrutura adequada. Isso inclui a falta de um sistema de monitoramento próprio, o que leva seu time a recorrer a aparelhos pessoais de celular durante as atividades de monitoramento. O escritório que utilizam conta apenas com um computador e um serviço simples de internet custeado pela equipe.
“Precisamos de apoiadores para melhorar as condições de trabalho na aldeia; só assim poderei aplicar, na prática, o que aprendi [durante o curso] em Roraima”, disse.
Guardiãs do território: entre os desafios e a resistência
Durante os estudos em Boa Vista, capital roraimense, Luciana conheceu Ana Paula Levi, do povo Wapichana, que atua como coordenadora da brigada indígena comunitária de Roraima. Ela relata que Ana Paula vive uma “realidade diferente”, cercada por telões e computadores altamente equipados. Lá, puderam trocar experiências sobre suas diferentes perspectivas e histórias de vida.
A gestora Wapichana iniciou seus trabalhos como brigadista escondida de seu pai, que não aceitava ver a filha à frente de um “trabalho masculino”. A voluntária, que também é técnica de enfermagem, não se deu por vencida: hoje em dia, ela lidera mais de 63 brigadistas, entre homens e mulheres, divididos em seis grupos; as equipes estão em atividade no estado desde 2012.
Uma das subdivisões leva o nome de Pataxibas e atua na região do Alto Cauamé, contando com os esforços de 14 mulheres das etnias Wapichana, Macuxi e Waiwai. Quando saem para combater o fogo, as brigadistas também recorrem à comunidade para o cuidado de seus filhos pequenos.
Além do trabalho de campo, elas se dedicam a iniciativas de educação ambiental e de reflorestamento, levando o tema às escolas e promovendo ações de conscientização. O trabalho é facilitado pela temporada de chuvas, que contribui para reduzir o risco de incêndio.

De sua sala, Ana Paula monitora os territórios indígenas em tempo real, observando focos de fogo, áreas queimadas, fontes de água e zonas em processo de reflorestamento. A atuação na região amazônica é fundamental, segundo ela, devido à ampla biodiversidade vegetal do bioma. O sistema utilizado pela líder Wapichana e seus colegas reduziu o tempo de resposta às crises ambientais.
Mesmo assim, as brigadas seguem um calendário tradicional próprio, que precisa estar em constante adaptação às alterações bruscas do clima. “O inverno está chegando mais cedo. E o calor, agora, é insuportável”, disse Ana Paula. Ela explica que o impacto é visível nas áreas rurais e nos igarapés, onde as nascentes perdem força, o que causa danos ao plantio de mandioca, banana, pimenta e graviola, entre outros alimentos; já os animais sofrem mais com a seca.
Ela também cita a atenção que suas brigadistas dão ao avanço do setor da soja nas imediações dos territórios indígenas. “As mulheres são mais observadoras: estendem o olhar para o que se passa ao redor do fogo. Cuidam umas das outras, são unidas, lembram-se de levar água e comida, tudo enquanto prestam atenção aos animais que fogem das chamas.”
Segundo Sineia do Vale, coordenadora de gestão territorial do CIR, o Prevfogo oferece treinamentos para futuros brigadistas desde 2012. Já o conselho para o qual trabalha tem atuado para atrair novos recursos para a compra de Equipamentos de Proteção Individual (EPIs), além do fortalecimento de fundos destinados ao pagamento de bolsas aos brigadistas.
Para atender às necessidades físicas e psicológicas das mulheres, há diretrizes específicas para brigadistas gestantes e em período menstrual. “Ficar grávida na brigada não é um problema. Nesse período, elas participam apenas de palestras ou de atividades que não exigem o combate direto [ao fogo]”, disse Sineia. Atualmente, a brigada Pataxibas aguarda a construção da sua própria sede administrativa, que incluirá serviço de internet via satélite.
Para a coordenadora, esses avanços podem aumentar a conectividade entre as profissionais indígenas de diferentes brigadas, ampliando o alcance do monitoramento coletivo.
“É importante dizer: as mulheres são bastante ‘sensíveis’ às questões climáticas. Elas lidam diretamente com a floresta, coletando plantas medicinais e sementes para o artesanato. Sabem o nível do rio, os períodos ideais para plantar e colher — e se o tempo vai mudar ou não.”
Um futuro de luta por melhorias
Pelo alto grau de imprevisibilidade do comportamento do fogo, Sineia explica que as brigadas “precisam de apoio e treinamento constantes”. Ao mesmo tempo, argumenta, é necessário ir além e avaliar a qualidade do ar para garantir os cuidados básicos à saúde comunitária. Pensando nisso, o Ipam, em parceria com o CIR, instalou três sensores nas TI Serra da Moça, TI Raposa Serra do Sol e TI Serra da Mata, em Roraima, para monitorar o nível de poluição.
Entre julho de 2020 e maio de 2024, o Núcleo de Apoio à Pesquisa em Roraima, ligado ao Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia (Inpa), consolidou, em relatório, dados qualitativos gerais, identificando dois picos significativos de poluição relacionados às queimadas locais e em regiões vizinhas. De um total de 1.290 dias analisados, os patamares de poluição atingiram níveis prejudiciais à saúde humana em quase 20% do período.
Ao falar do futuro, Sineia adota um tom realista. Ela cita a persistência das altas temperaturas e das secas, além de possíveis novos picos de queimadas pelo Brasil. Defendendo a criação de novas políticas públicas, ela cobra recursos para manter as brigadas, além de equipamentos específicos — como veículos, mochilas com filtro de água e assopradores. “Sem isso, há risco até para os brigadistas experientes”, disse.

Consultado pela Mongabay, o Prevfogo declarou que trabalhar com brigadas indígenas traz “vantagens únicas, já que esses povos dominam profundamente seus territórios, conhecem as espécies vegetais, os padrões climáticos, os solos e as rotas naturais do fogo”.
“As brigadas indígenas podem agir rapidamente, realizando um ‘primeiro ataque’ assim que é identificado um foco de incêndio florestal, o que garante uma resposta mais ágil. Em geral, como atuam em áreas remotas, aguardar ajuda externa leva muito tempo, aumentando os riscos e os impactos”, disse a assessoria de comunicação do órgão. “Temos percebido, ao longo desses anos, que diversos indígenas, a partir do ingresso como brigadista, buscam aprimorar suas capacidades. Vão crescendo dentro dos cargos do Programa de Brigadas, se tornando lideranças, chefes de brigadas, supervisores e instrutores.”
De acordo com Ana Carolina Pessôa, pesquisadora do Ipam, porém, há “muitos outros desafios”. Ela explica, em entrevista, que a entrega de equipamentos varia conforme a verba destinada a cada projeto, ao mesmo tempo em que alerta: “os orçamentos são limitados.”
Pessôa também é uma das coordenadoras do Projeto Gestão do Fogo na Amazônia, responsável por um relatório, divulgado em 2025, que reúne mais de 120 entrevistas com profissionais que atuam na prevenção e no combate a incêndios florestais na Amazônia.
O levantamento revela um total de 382 brigadas na Amazônia Legal; destas, 51% são de responsabilidade estadual e municipal. “As brigadas federais correspondem a 26% do total. Embora as do Ibama sejam bem estruturadas, enfrentam dificuldades devido à falta de equipamentos fora do período contratual. Já as brigadas voluntárias lidam com escassez de recursos, o que pode comprometer sua capacidade de resposta”, diz a pesquisa.
A acadêmica também defende a ampliação de parcerias entre brigadas, comunidades, órgãos públicos e organizações da sociedade civil. Segundo ela, mudanças desse tipo fazem com que tudo “funcione melhor”. Olhando adiante, o Ipam busca novas alianças e editais para dar continuidade aos esforços de apoio às ações de brigadistas em todo o país.
“Um dos principais desafios para expandir o projeto é garantir recursos financeiros contínuos”, disse Pessôa à Mongabay.
Como mulheres Bakairi revolucionaram o combate aos incêndios no Cerrado
Imagem do banner: A líder indígena Wapichana Ana Paula Levi vestindo seu uniforme de brigadista. Foto: Alicce Rodrigues/Instituto Terra Brasilis.