A prisão de quatro bombeiros voluntários da ONG Brigada de Alter, no fim de novembro, chamou a atenção nacional para uma batalha que vem acontencendo há décadas no chamado “Caribe Amazônico”: de um lado, grileiros e segmentos do setor imobiliário interessados em construir grandes empreendimentos na orla; do outro, ambientalistas e empresas de ecoturismo insistindo no crescimento sustentável.
Em setembro, a APA Alter do Chão – área de floresta primária que cerca o balneário – ardeu por quatro dias com os incêndios que devastaram diversas regiões da Amazônia. A polícia prendeu os quatro brigadistas alegando terem sido os responsáveis pelo fogo – quando justamente eles estiveram entre os que ajudaram a apagar as chamas.
A Mongabay obteve acesso ao documento de inquérito da polícia que revela o que advogados dizem ser provas fracas e “infundadas”. A polícia alega que os quatro brigadistas começaram os incêndios com a intenção de tirar fotos e vendê-las à Rede WWF (Fundo Mundial para a Natureza).
Embora a investigação ainda esteja em andamento, analistas dizem que quem teria razões reais para atear fogo na floresta seriam os grileiros. Uma delas seria a de culpabilizar e difamar ONGs locais – uma iniciativa em plena concordândia com a retórica inflamatória do presidente Bolsonaro.
“Não doem dinheiro pra ONG!”, disse o presidente Jair Bolsonaro durante uma transmissão ao vivo no dia 28 de novembro. Dois dias antes, quatro bombeiros voluntários da ONG Brigada de Alter foram haviam sido presos de forma preventiva, acusados de intencionalmente atear fogo na floresta de Alter do Chão, no Pará — prisões vistas por muitos como o mais recente ataque do governo ao meio ambiente e seus defensores.
Na ocasião, uma operação policial acusara quatro brigadistas (Daniel Gutierrez, João Victor Pereira Romano, Gustavo de Almeida Fernandes e Marcelo Cwerver) de começar os incêndios que, por quatro dias, assolaram em setembro a Área de Proteção Ambiental (APA) Alter do Chão – fogo que, por sinal, que os brigadistas voluntários ajudaram a apagar. A polícia também invadiu a sede de outra ONG ligada à brigada, o Projeto Saúde e Alegria, e apreendeu documentos como parte de sua investigação.
Alter do Chão é um destino turístico popular na Amazônia, conhecido como “Caribe Amazônico”, pela água cristalina e pelas praias fluviais de areia branca. Há décadas, porém, vem sendo um campo de batalha entre conservacionistas e dúbios interesses imobiliários. “Alter vive 100% de turismo”, diz o presidente do conselho comunitário de Alter do Chão, Junior Sousa. “As pessoas têm medo de que se torne um lugar cheio de prédios que ninguém quer visitar.”
De acordo com o Departamento de Turismo de Santarém, o balneário de apenas 6 mil habitantes atrai em torno de 190 mil turistas por ano. Diante da oportunidade que isso representa, segmentos do setor imobiliário, juntamente com grileiros, interessados em ganhar uma fatia de terra cada vez mais valiosa, querem flexibilizar as proteções ambientais. Alguns analistas apontam que é provável que os incêndios tenham sido provocados por membros desses grupos.
A cidade está dividida em duas. De acordo com fontes locais (algumas solicitaram anonimato, por razões de segurança), há, de um lado, uma oligarquia familiar que quer construir prédios altos e condomínios na orla. No lado oposto, estão empresas de ecoturismo e a sociedade civil, contrárias às edificações. Por meio de protestos realizados nos últimos anos, esse último grupo tem conseguido barrar mudanças na legislação que permitiriam grandes empreendimentos.
Uma história de ataques às ONGs
A prisão de membros da Brigada de Alter provocou surpresa e indignação na sociedade civil. Muitos afirmam que as falsas acusações visam desacreditar o trabalho de ONGs conceituadas na Amazônia. “A tentativa de criminalização e perseguição de ONGs historicamente dedicadas à proteção da floresta é inaceitável”, postou a ex-ministra do Meio Ambiente Marina Silva no seu Twitter.
Os quatro homens foram libertados logo após sua prisão, embora continuem sob investigação. Vestindo camisas amarelas com o logo da brigada, os voluntários falaram à imprensa: “A gente recebe ameaças diárias de grupos de WhatsApp de Alter do Chão”, disse Daniel Gutierrez.
A Brigada não é a única ONG sob ataque na cidade. “Estamos sendo massacrados e ameaçados”, diz Caetano Scannavino, coordenador do Projeto Saúde e Alegria. “Está acontecendo uma campanha de difamação de ONGs e qualquer pessoa ligada a movimentos ambientais e indígenas.”
Apenas dois dias antes das prisões, representantes de organizações ambientais e indígenas locais apresentaram uma queixa oficial alegando irregularidades na construção de um complexo de condomínios. Essa queixa foi um dos casos mais recentes em uma luta de décadas sobre zoneamento, desenvolvimento e conservação em Alter do Chão.
Um projeto de lei de 2017, por exemplo, procurou alterar as políticas de zoneamento na área, permitindo a construção de prédios altos e legalizando o desmatamento, mas acabou sendo barrado. “A gente conseguiu reverter a proposta de lei”, disse Scannavino à Mongabay, “e é possível que isso tenha incomodado outros setores”.
O prefeito de Santarém, Nélio Aguiar, diz que existem leis ambientais suficientemente rigorosas e acredita que esses regulamentos são vitais para a economia local. Mas ele acrescenta: “Precisamos conciliar desenvolvimento com a natureza, usando o turismo ecológico como uma ferramenta-chave”. O prefeito chamou os incêndios deste ano de criminosos, e ficou surpreso ao ver os voluntários presos como suspeitos. “Este é um grupo de voluntários treinados por bombeiros públicos e sua missão é combater os incêndios”, observou.
Provas fracas contra os brigadistas
Em um áudio obtido pela Repórter Brasil, o prefeito telefonou para o governador do estado, Helder Barbalho, durante os incêndios, pedindo ajuda para conter as chamas. Nessa ligação, Aguiar também informa que homens armados, que têm apoio da polícia, estão por trás dos incêndios, o que levanta questionamentos sobre a validade do relatório da polícia local acusando a ONG.
A imparcialidade de Alexandre Rizzi, o juiz que emitiu o mandado de busca e detenção dos quatro brigadistas, também foi questionada quando surgiu uma declaração sua de 1994 criticando ativistas do Greenpeace por protestarem contra a extração ilegal de madeira. Rizzi, antigo proprietário da Maderizzi, uma madeireira, diz que seu passado não tem nenhuma influência sobre sua capacidade de julgar o caso de maneira justa: “Nunca tive conflito com nenhuma organização. Continuarei firme e pronto para julgar quem quer que seja, independentemente de credo, ideologia ou partido político”, afirmou. A polícia civil recebeu um prazo de 30 dias para concluir sua investigação. Os críticos dizem que os mandados de prisão e busca que Rizzi assinou não contêm “nenhuma prova”.
A Mongabay obteve acesso aos arquivos da polícia. Entre as provas apresentadas, há uma citação interceptada de Gustavo de Almeida Fernandes, diretor de logística do Projeto Saúde e Alegria e um dos acusados. Ele diz a uma pessoa não identificada: “Vai ter bastante fogo, se preparem. Nas rotas [por onde vão passar] inclusive”.
A polícia interpretou isso como incriminatório: “Está claro que ele está se referindo a incêndios orquestrados, já que não é possível prever a localização de um incêndio”, disse o relatório. Mas o advogado de defesa, Michel Durans, descarta essa possibilidade, observando que a localização das florestas contestadas é de conhecimento geral dos moradores locais. Na mesma conversa, Fernandes se refere à probabilidade de chuva em dezembro – algo também impossível de prever com precisão, entretanto parte do senso comum local.
Em outra comunicação interceptada, um voluntário da brigada de incêndio é descrito como a pessoa que “mais queima” e “apaga mato” na Amazônia, uma brincadeira que aparentemente se refere ao uso de maconha deste membro da brigada. A investigação interpreta a afirmação como uma admissão de culpa.
Um dia após as prisões, o Departamento de Polícia Federal se manifestou, comunicando que uma investigação federal dos incêndios está em andamento desde setembro, mas com conclusões opostas. “Nenhum elemento apontava para a participação de brigadistas ou organizações da sociedade civil”, afirmou o comunicado. “Pelo contrário, a investigação federal aponta para grileiros, ocupação desordenada e especulação imobiliária como as causas dos danos ambientais em Alter.”
A Mongabay procurou as polícias federal e estadual, mas foi informada que nenhuma das duas estava dando entrevistas.
O papel inflamatório de Bolsonaro
Uma onda de incêndios florestais ocorrida de agosto a setembro, junto ao desmatamento de 2019, seguiram a retórica antiambiental do presidente Jair Bolsonaro, encorajando fazendeiros, agricultores e grileiros a cometerem crimes sem medo de punição. Os incêndios florestais no dia 10 de agosto, chamado de Dia do Fogo, no município de Novo Progresso, no Pará, foram em nome do presidente.
Também desde que Bolsonaro chegou ao poder, funcionários de agências ambientais enfrentaram demissões e intimidações. Seu governo anunciou planos de abrir territórios indígenas à mineração. Em agosto, o presidente demitiu o diretor do Inpe (Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais) depois de considerar uma “mentira” dados mostrando um forte aumento no desmatamento da Amazônia. Dados mais recentes de satélite mostram um crescimento de 41% no desmatamento no Pará entre 2018 e 2019.
Bolsonaro tem um histórico de culpabilizar ONGs pelos incêndios florestais na Amazônia, que seriam, em sua versão fantasiosa, um ataque pessoal: “Pode estar havendo ação criminosa desses ‘ongueiros’ para exatamente chamar a atenção contra a minha pessoa, contra o governo do Brasil”, disse ele a jornalistas em agosto.
A declaração da polícia contra os brigadistas parece estar em consonância com a narrativa de Bolsonaro. Ela alega que os voluntários começaram os incêndios a fim de vender fotos para a Rede WWF (Fundo Mundial para a Natureza) para ganho financeiro pessoal. Os acusados, que trabalham como guias turísticos na região, enfatizam que seu trabalho não é remunerado e que seu objetivo é proteger a natureza.
Seus advogados refutam as acusações da polícia, chamando as provas apresentadas até o momento de “infundadas”. Durans observa que “as transcrições de áudio e vídeos apresentados até agora são incrivelmente fracas e foram analisadas completamente fora de contexto”.
O governador do Pará, Helder Barbalho, substituiu o chefe de investigações no dia 28 de novembro para “esclarecer as coisas da maneira mais rápida e transparente”, e a Corregedoria da Polícia Civil está investigando o caso.
Imagem do banner: Os quatro brigadistas voluntárioas acusados de provocar o incêndio. Foto: Tiago Silveira.