Maior reserva indígena do Brasil passa pelo pior momento de invasões dos últimos 30 anos, segundo relatório; 56% dos 27 mil habitantes da Terra Indígena Yanomami são afetados diretamente pelo garimpo.
Em muitas comunidades, os garimpeiros estão aliciando meninas e jovens indígenas, oferecendo comida, bebida alcoólica e armas de fogo em troca de sexo e pequenos serviços.
É cada vez mais comum o casamento de garimpeiros com meninas e adolescentes indígenas, algumas com apenas 10 anos de idade.
Nos últimos três anos, o garimpo ilegal na reserva quase triplicou: a área total destruída pelo garimpo pulou de 1.200 hectares para 3.272 hectares.
“Muitos garimpeiros estão aliciando jovens e mulheres Yanomami. Tem meninas de 11, 12, 13 anos sendo aliciadas para ficar na barraca com eles. Eles oferecem [em troca de sexo] alimentação, roupa, material de trabalho.
Comunidades dentro da Terra Indígena Yanomami situadas até 10 quilômetros de áreas invadidas pelo garimpo enfrentam violência sexual, estupro de menores, crime organizado, aliciamento de jovens indígenas para o garimpo, assassinatos e graves problemas de saúde, como malária e desnutrição infantil.
O alerta está em um levantamento publicado nesta segunda-feira (11), elaborado pela Hutukara Associação Yanomami, que estima que 273 comunidades Yanomami e 56% dos 27 mil habitantes da reserva são afetados diretamente pelo garimpo.
“A Terra Indígena Yanomami vive o pior momento desde a sua demarcação, ocorrida em 1992”, diz o pesquisador responsável, que prefere não se identificar por causa de ameaças sofridas nos últimos meses.
Apesar de o garimpo nas terras Yanomami acontecer há décadas, os pesquisadores afirmam que a atividade está mais violenta desde 2018, principalmente contra meninas e jovens indígenas, que têm sido aliciados em troca de comida, bebida alcoólica e armas de fogo.
Apesar de as comunidades Yanomami mais impactadas serem, segundo os pesquisadores, Waikás, Homoxi, Kayanau e Xitei, todas situadas no lado roraimense da reserva, é nas regiões de Parima e Aracaçá que tem ocorrido os piores relatos de estupro e violência sexual.
“No Parima, tem uma menina de onze anos que está casada com um garimpeiro. O pai dela morreu e ela estava sendo criada pela avó. O casamento aconteceu quando ela tinha dez anos”, denuncia o presidente do Conselho Distrital de Saúde Indígena Yanomami e Ye’kuana (Condisi-YY), Junior Hekura Yanomami.
Não é um caso isolado. “Muitos garimpeiros estão casados com adolescentes indígenas”, diz Hekura. Segundo ele, existem de dez a doze “filhos de garimpeiros principalmente na região de Parima. E ainda tem mais meninas grávidas.”
Escravidão por dívida e trabalho por comida
Segundo os pesquisadores, pessoas da região são atraídas para trabalhar nos garimpos em diversas funções, de mergulhador, operador de máquina a cozinheira e prostituta — inclusive por meio das redes sociais e aplicativos de mensagem.
“A expectativa de ganhar cerca de 3 gramas de ouro por programa (o que equivale a mais de R$ 900) ou mesmo um salário de R$ 5 mil por mês como cozinheira atrai muitas mulheres que não sabem exatamente o que irão encontrar na floresta”, diz trecho do relatório.
Uma vez que o próprio trabalhador interessado é responsável pelo custo da viagem até as regiões do garimpo — transporte que pode custar mais de R$ 10 mil —, a situação costuma resultar, segundo o relatório, a uma situação de escravidão por dívida.
“Há relatos de cozinheiras que são obrigadas a se prostituir e garotas de programa que não conseguem sequer bancar a viagem de volta, devido aos gastos nas estruturas das corrutelas, como medicamentos para infecções, aluguel do quarto, alimentação e produtos de higiene”, diz outro trecho do documento.
Grande parte das mulheres aliciadas é venezuelana, que atravessaram a fronteira em razão da crise humanitária no país vizinho.
Aliciamento de indígenas
Por outro lado, também há casos em que os próprios Yanomami são aliciados pelo garimpo.
“Os garimpeiros dizem: ‘Essa moça aqui. Essa tua filha que está aqui, é muito bonita!’. Os Yanomami respondem: ‘É minha filha!’. Quando falam assim, os garimpeiros apalpam as moças. Somente depois de apalpar é que dão um pouco de comida”, diz outro relato de indígena presente no relatório.
“Eles falam assim para os Yanomami: “Se você tiver uma filha e a der para mim, eu vou fazer aterrizar uma grande quantidade de comida que você irá comer! Você se alimentará!”, relata outro.
Ambos os relatos foram coletados na região de Kayanau, na confluência dos rios Couto de Magalhães e Mucajaí. Outros relatos na área descrevem que é prática comum dos garimpeiros deixarem comida algumas vezes para mulheres da comunidade com o objetivo de ganhar a confiança delas. Assim que elas perdem o medo de se aproximar, os garimpeiros cometem o abuso sexual.
“Recebemos relatos no final de 2020, na comunidade Aracaçá, de que 20 a 30 garimpeiros raptaram uma adolescente e a violentaram. Ela morreu. Ainda em 2020, outra adolescente foi sequestrada por garimpeiros em Surucuru e outra em Parima”, confirma Hekura Yanomami.
“Tem meninas de 11, 12, 13 anos sendo aliciadas para ficar na barraca com eles. Eles oferecem [em troca de sexo] alimentação, roupa, material de trabalho. É questão de vulnerabilidade”, conta.
A situação é extrema em Aracaçá, localizada na calha do Rio Uraricoera, comunidade já quase totalmente destruída pelo garimpo. Lá, os indígenas dependem da alimentação oferecida pelos garimpeiros em troca de serviços, como carregar combustível e realizar pequenos fretes de canoa.
“De acordo com os Palimiu Theli, os garimpeiros introduziram bebidas e um ‘pó branco’ que deixaram os Sanöma viciados, alterados e violentos, resultando em muitos episódios de violência entre os de Aracaçá”, diz trecho do relatório em referência a dois grupos que fazem parte do povo Yanomami.
Hekura narra outro caso recente ocorrido em uma comunidade na região Surucucu, em Parima.
“Os garimpeiros chegaram lá em dezembro. Eles ofereceram 50 armas de fogo para poder trabalhar — melhor, destruir as terras da comunidade. Alguns jovens aceitaram. Outras comunidades estão revoltadas, responsabilizaram esses jovens por sujarem o rio. Tivemos que ir até lá agora em março para evitar conflitos entre os próprios Yanomami”, diz a liderança.
Hekura acredita que a situação na região do Surucucu deverá piorar. “Agora, há relatos de garimpeiros oferecendo cem espingardas para continuarem destruindo a região”, conta.
Mineração na área triplicou em três anos
O garimpo dentro da Terra Indígena Yanomami, localizada entre os estados de Roraima e Amazonas, vem ganhando força desde 2016. Nos últimos três anos, contudo, o relatório aponta que a atividade ilegal na reserva quase triplicou: em outubro de 2018, a área total destruída pelo garimpo representava pouco mais de 1.200 hectares; em dezembro de 2021 a destruição pulou para 3.272 hectares.
O relatório mostra que o garimpo identificável por satélites localiza-se na porção roraimense da TI Yanomami, sendo que quase a metade da área degradada (45%) está concentrada em Waikás, região localizada no Rio Uraricoera. Kayanau, que está na confluência dos rios Couto Magalhães e Mucajaí, é a segunda zona com a maior concentração de cicatrizes, com pouco mais de 20% do total da área degradada, seguida por Homoxi, na fronteira com a Venezuela, com 12%.
A região da comunidade Xitei, localizada nas nascentes do Rio Parima, em Alto Alegre, norte de Roraima, contudo, começa a preocupar pela explosão do garimpo no último ano, com crescimento do garimpo em 2021 de 1.000%.
Dentre as macrorregiões, a calha do Rio Uraricoera é a mais impactada pelo garimpo na TI Yanomami atualmente, concentrando 45% das minas. Apresenta os maiores acampamentos e as mais complexas estruturas de apoio ao garimpo. Os garimpeiros acessam a região por meio de portos localizados fora da reserva, na vizinhança da Estação Ecológica de Maracá. Segundo os pesquisadores, a área está sem Base de Proteção Etnoambiental, o que facilita as invasões.
“São portos localizados ou dentro de propriedades privadas, ou em áreas públicas sem destinação, que passam a ser controlados pelo garimpo”, diz o pesquisador responsável pelo relatório.
“Em janeiro de 2022, apesar de ser tipicamente um mês de poucas chuvas em Roraima, o Uraricoera ainda estava cheio, e o tráfego de embarcações era intenso. Durante o sobrevoo, foi possível registrar diversos botes repletos de recipientes de combustível, gás de cozinha, alimentação e equipamentos, percorrendo o rio em ambas direções”, relata trecho do documento.
Além do transporte fluvial, há, também, a opção do frete aéreo. A viagem em uma das “pernas” custa cerca de R$ 11 mil, com direito a 500 kg de carga.
A logística do garimpo
O relatório mapeou por meio de sensoriamento remoto a destruição causada pelo garimpo e identificou a logística utilizada pelos garimpeiros para adentrar a Terra Indígena, uma região de difícil acesso, que pode ser alcançada somente por helicópteros e barcos.
O pesquisador responsável afirma que existem, pelo menos, cinco grandes corrutelas próximas a pistas de pouso controladas pelo garimpo.
“As corrutelas dão estruturas complexas, com vários serviços, como casas de prostituição, mercearias. Já teve corrutela em que a Polícia Federal encontrou até consultório odontológico”, explica o pesquisador.
Além das corrutelas, atualmente todos os acampamentos na TI contam com antenas de internet, seja ela via rádio ou via satélite. Os indígenas, no entanto, não conseguem adquirir pacotes de internet razoáveis para serem instalados em escolas ou postos de saúde, “porque a maior parte dos pacotes de alta velocidade disponíveis nas empresas que oferecem o serviço em Boa Vista já estão vendidos para o garimpo, ainda que ele seja notoriamente ilegal!”, diz o relatório.
Outro elemento importante na logística e funcionamento dos garimpos são as pistas de pouso, que funcionam como uma espécie de hub da logística aérea do garimpo.
“Os aviões levam combustível e insumos para essas pistas. Lá, helicópteros menores fazem lançamento desses artigos nos acampamentos dos garimpeiros no meio da floresta”, descreve o pesquisador.
“Se tivesse uma fiscalização permanente ao lado dos postos que vendem combustível para aviação, certamente daria para sufocar essa logística do garimpo roraimense”, sugere o profissional.
Em 2021, começou a ser observada também a utilização de quadriciclos em trilhas abertas a partir das corrutelas até os acampamentos no leito do rio.
“O relatório enfatiza que o garimpo não é uma atividade como a que se tem no imaginário popular, de um grupo de aventureiros desorganizados, que vai buscar seu sustento e tentar a sorte. O garimpo, hoje, é uma uma atividade altamente organizada, que depende de investimentos altíssimos e que é coordenada por empresários, que controlam o maquinário e, muitas vezes, o serviço”, afirma o pesquisador.
Outra novidade nos garimpos da TI Yanomami é a aproximação entre o tráfico de drogas, o crime organizado e o garimpo. O relatório aponta que em 2021 se observou o envolvimento de agentes do Primeiro Comando da Capital (PCC) em uma série de ataques às comunidades de Palimiu, que estavam resistindo às invasões dos garimpeiros.
“Temos informações de que o PCC tem se infiltrado no garimpo de Roraima. Eles começaram fazendo a segurança dessas áreas. Agora estão expandindo e diversificando seus negócios. Já começaram a explorar também serviços de frete e de casas de prostituição”, diz o pesquisador.
Profissionais da saúde impedidos de entrar
Muitas das pistas usadas pelo garimpo em toda a terra Yanomami eram pistas comunitárias usadas pelos polos de saúde, contudo.
“A região do Homoxi, por exemplo, que concentra grande parte do garimpo, tem uma pista de pouso que era utilizada pelos profissionais da saúde para atenderem as comunidades. Agora, controlada pelos garimpeiros, os postos de saúde estão abandonados na região”, denuncia o pesquisador.
Homoxi é uma região situada na cabeceira do Rio Mucajaí. A pista de pouso em questão é a pista do Jeremias. A casa do posto de saúde próximo a pista, que chegou a atender mais de 5 mil indígenas em 2020, atualmente é utilizada pelos garimpeiros.
“Tentamos pedir autorização aos garimpeiros para usar as pistas de pouso, mas eles negam. Muitos profissionais da saúde já foram ameaçados pelos garimpeiros, mas não registram queixa por medo”, diz Hekura.
Segundo o Conselho Distrital de Saúde Indígena Yanomami e Ye’kuana, 615 indígenas estão sem atendimento médico há mais de seis meses por causa do fechamento das pistas de pouso pelo garimpo.
“Na última vez que conseguimos pousar com o helicóptero da Saúde, ficamos por 30 minutos sobrevoando a área e pedindo autorização para os garimpeiros via rádio”, conta.
Mais que impedir a chegada de atendimento médico às comunidades, as pistas de pouso também oferecem perigo aos indígenas que circulam nas proximidades.
Em julho de 2021, um jovem Yanomami foi morto em uma pista de pouso clandestina. Segundo lideranças indígenas, o jovem foi atropelado por um avião usado pelo garimpo na reserva.
O Conselho de Saúde Indígena Yanomami relatou que os garimpeiros tentaram subornar a família da vítima para que a morte não fosse denunciada. “Ofereceram muitas espingardas e armas para os Yanomami ficarem em silêncio, mas denunciamos”, conta uma fonte que não quis ser identificada.
15 dias para pegar um peixe
Outra consequência trazida pelo garimpo é a morte dos peixes nos rios e o afastamento dos animais de caça por causa do barulho dos motores do garimpo.
“Eu ando muito nas comunidades. Em quase todas, os velhos pedem socorro, me dizem: ‘anos atrás, todos os dias eu comia peixe’ ou ‘todos os dias nossas mulheres buscavam camarão’, ‘hoje, não tenho como alimentar minha comunidade, está sendo muito difícil’”, conta .
Nas áreas mais impactadas pelo garimpo, o líder indígena conta que os moradores precisam se distanciar da comunidade para conseguirem pescar. “Muitos passam 15 a 20 dias para pegar um peixe”, diz.
O relatório ainda cita a explosão dos casos de malária e a epidemia de desnutrição infantil nas comunidades invadidas pelo garimpo, com destaque para as comunidades do Arathau, na região do Rio Parima. Nessa região, a malária cresceu 1.127% de 2018 a 2020 e quase 80% das crianças de até cinco anos da região possuem baixo peso ou muito baixo peso.
https://brasil-mongabay-com.mongabay.com/2022/01/mineracao-na-amazonia-ameaca-dezenas-de-grupos-indigenas-nao-contatados/
Imagem do banner: Mulher Yanomami e seu filho. Foto: Sam Valadi, CC BY 2.0