Neste antigo balneário do litoral do Rio de Janeiro, o Atlântico vem destruindo ruas, casas e comércios há mais de 50 anos. Estima-se que as águas já tenham derrubado pelo menos 500 construções.
Barragens no Rio Paraíba do Sul, bem como a devastação das matas ciliares ao longo do seu curso, estão entre as causas do fenômeno. Com o fluxo diminuído e o leito assoreado, o rio não consegue vencer o mar, que avança com cada vez mais força sobre a foz, onde fica Atafona.
Segundo pesquisadores, as mudanças climáticas aceleram o processo de erosão, uma vez que influenciam a frequência e intensidade de ressacas e tempestades mais extremas. Em Atafona, o mar avança 3 metros por ano.
De acordo com a Organização Internacional para as Migrações, 295 mil novos deslocamentos provocados por causas ambientais foram registrados no Brasil em 2019. No mundo, o número supera o de deslocamentos por conflitos internos.
Vítimas de um impacto ambiental lento e contínuo que vem destruindo a costa, os moradores do distrito de Atafona, em São João da Barra (RJ), buscam ressignificar suas relações com a cidade enquanto vivem a expectativa de um futuro incerto. Com o mar engolindo suas casas há mais de 50 anos, eles aguardam soluções para os impactos gerados na comunidade onde acontece um dos desastres ambientais de erosão costeira mais severos do Brasil.
Especialistas apontam como causas deste fenômeno uma soma de fatores, que incluem ações humanas e efeitos das mudanças climáticas numa região que, desde o início, teve uma ocupação habitacional desordenada em seu litoral.
Os primeiros registros que se têm notícia da erosão costeira em Atafona datam de 1954, na Ilha da Convivência, que hoje já foi praticamente toda engolida e seus habitantes forçados a deixar suas casas e buscar moradia em outros lugares.
Na praia de Atafona, o evento veio a ocorrer cerca de cinco anos depois, mas a destruição se intensificou na década de 1970 e não parou até os dias de hoje. A Prefeitura de São João da Barra calcula que o avanço do mar já destruiu 500 residências e comércios. Moradores locais e pesquisadores estimam que este número pode ser ainda maior e que o número de pessoas forçadas a se deslocar, inclusive migrando para outras cidades ou estados, tenha passado das 2 mil.
Sônia Ferreira, moradora de Atafona há mais duas décadas, viu o mar se aproximar aos poucos até derrubar o muro de sua casa em março de 2019, fato determinante para ela decidir tomar uma atitude após anos de espera. “No ano passado, o mar alcançou a minha rua e derrubou meu muro. Tive que colocar tapumes porque quero continuar vivendo aqui por mais um tempo. Eu já estou desmobilizando a casa e me mudei para uma casinha que construí nos fundos. Assim posso ficar aqui no meu terreno mais alguns anos até o mar ocupar tudo de vez”, diz.
No mundo, o número de deslocados por causas ambientais — tais como erosão costeira, incêndios florestais, inundações e deslizamentos — supera o número de deslocamentos por conflitos internos. Segundo a Organização Internacional para as Migrações (IOM), um total de 295 mil novos deslocamentos por desastres ambientais foram registrados em 2019 no Brasil.
Os dados, porém, contabilizam apenas desastres ocorridos em eventos pontuais, como inundações, deslizamentos de terra e tempestades. Mas não em processos mais graduais como o de Atafona. No ano passado, de acordo com dados do relatório do IDMC (Internal Displacement Monitoring Center), o país computou 240 pessoas forçadas a se deslocar no Brasil por erosão costeira, mas a OIM acredita que haja subnotificação.
Por que o mar avança
Uma das principais causas apontadas pelo impacto em Atafona é a diminuição do fluxo de água do Rio Paraíba do Sul e seu consequente assoreamento, causados pela construção de barragens a montante. Isto faz com que o Atlântico vença a queda de braço com o rio na foz, com efeitos no fluxo de correntes, no acúmulo de areia e lama no leito e no movimento das ondas na praia.
O desmatamento das matas ciliares ao longo de todo o curso fluvial também teria contribuído para o assoreamento do Paraíba do Sul, assim como o aumento populacional das cidades do entorno, que se abastecem da mesma água — como Campos dos Goytacazes, com meio milhão de habitantes, situada a apenas 40 km de Atafona
Processos geológicos naturais também são apontados como um dos fatores, em um ritmo muito lento, mas observa-se um consenso entre os pesquisadores e moradores de que a erosão costeira tem sido intensificada e acelerada em decorrência de um combinação de ações humanas e efeitos das mudanças climáticas, como a elevação do nível do mar.
De acordo com Gilberto Pessanha Ribeiro, engenheiro cartógrafo, professor do Instituto do Mar e coordenador do Observatório da Dinâmica Costeira da Unifesp, que pesquisa o caso de Atafona há 17 anos, é preciso que existam mais pessoas estudando o assunto. “Fizemos descobertas fantásticas sobre a diversidade da compreensão do fenômeno na comunidade. Surgiram inclusive questões antropológicas. É uma área do litoral que mistura ciência, afeto, misticismo e religião. As pessoas adoram aquele lugar. Existe muito afeto envolvido. Atafona se tornou um personagem”, destaca o pesquisador.
“As pessoas querem respostas categóricas, mas trata-se de um tema muito complexo para ter uma resposta simples com alternativas definitivas”, continua Pessanha Ribeiro. “A causa é uma junção de fatores. E as soluções também precisam ser múltiplas. A gente hoje vê um movimento não de solução definitiva, mas de coexistência com a questão e de aprendizado científico para educar a população e desenvolver o conhecimento na área.”
Recentemente, o canal da parte sul da foz se fechou pelo assoreamento do rio, agravando ainda mais a crise da pesca artesanal local e colocando em risco a sobrevivência da comunidade tradicional da região.
Por mais que o fenômeno já aconteça há mais de meio século, ainda se trata de um caso relativamente pouco conhecido pela opinião pública em geral, dada a sua relevância. A população local analisa que foram tímidas as ações de todas as esferas de governo ao longo da história. Atualmente, os moradores pressionam governos e instituições envolvidas na esperança de que sejam tomadas providências, ainda que não haja nenhuma solução óbvia ou rápida para solucionar o problema em curto ou médio prazos.
Mudanças climáticas aceleram a erosão
Em 2016, quando iniciei uma pesquisa para a produção do documentário O avanço, em fase de produção, passei alguns dias em Atafona com uma equipe local para registrar a situação daquele momento e voltar anos depois para concluir o filme. As imagens em foto e vídeo que ilustram esta reportagem foram produzidas naquela ocasião, revelando algumas construções, moradias e lugares que já não existem mais ou que se transformaram em relação ao que foi documentado na época. São cenas que simbolizam a força da degradação contínua gerada pelo movimento do mar que avança cerca de 3 metros ao ano.
Para o geógrafo Dieter Muehe, um dos principais especialistas do país em erosões costeiras, o avanço do mar no Brasil não é apenas uma realidade, mas sim uma tendência. “Atafona é um hotspot de tendência continuada. A praia ganha e perde sedimentos, mas o balanço em Atafona não é equilibrado. A praia perto da foz perde mais do que ganha, o que causa a erosão”, explica. “E a lama também impede a mobilização do fundo marinho. O rio não joga no mar a quantidade de areias que deveria. Com as barragens, não há mais cheias excepcionais que expulsam grandes quantidades de areias para a plataforma. As mudanças climáticas aceleram o processo erosivo, uma vez que influenciam a frequência e intensidade de ressacas e tempestades mais extremas.”
Os efeitos mais perceptíveis da erosão costeira para a população brasileira, segundo ele, são aqueles que ocorrem em áreas urbanas, devido aos prejuízos materiais que ela causa. “O avanço do mar é, sim, uma tendência. A barreira arenosa já vinha se aproximando lentamente do continente ao longo de séculos de forma imperceptível. Observamos que hoje os efeitos de ações humanas no meio ambiente estão acelerando este processo. O que se constata é que o processo está tão veloz que um ser humano consegue perceber ao longo de uma vida. Uma pessoa que vive em uma área mais vulnerável no litoral pode até conseguir passar uma vida naquela moradia, mas talvez não dure para as gerações seguintes”, afirma o geógrafo.
Este foi o caso do jornalista local João Noronha, que perdeu em 2006 para o mar a casa que herdou de sua família. Autor de dois livros sobre Atafona, ele está com o terceiro pronto para ser impresso. “Nos anos 1940, Atafona se tornou conhecida por ser uma praia medicinal. Nos anos 1970, virou moda e foi palco de bailes da aristocracia fluminense em grandes clubes”, conta ele. “Inicialmente, eu relutava em tocar no assunto da erosão nos jornais para os quais escrevia. Tinha um certo bloqueio devido a um valor sentimental de quem passou pelo trauma de perder a casa da sua família. Semanas antes de minha casa cair, doei todos os materiais que estavam nela e me mudei para uma outra, bem menor, num outro bairro a 6 km de lá. O município não deveria ter permitido as construções na área costeira.”
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Soluções possíveis
A prefeita de São João da Barra, Carla Machado, observa que dois fenômenos ocorrem simultaneamente e acredita que eles estejam interligados. Além do avanço do mar, que já destruiu muitos quarteirões, dunas estão em plena formação. Elas crescem e se movem com os ventos nordeste e já afetam casas. Hoje já se aproximam da praia de Grussaí, até então pouco atingida. “Sou apaixonada por Atafona. Fez parte da minha juventude. Quem vive lá tem um vínculo muito forte com a região. Só que as pessoas culturalmente não querem sair dali. Já construímos casas populares, mas nenhum plano habitacional vai de encontro com a expectativa delas”, afirma.
Segundo a prefeita, não existe consenso sobre a solução do problema. Recentemente, houve uma reunião da Prefeitura de São João da Barra com membros de instituições envolvidas na questão — como o Ministério Público Federal, a Universidade Federal Fluminense (UFF) e o Instituto Nacional de Pesquisas Hidroviárias (INPH) — para discutir os projetos possíveis. Mas ainda não há nenhuma definição sobre o que será implementado, quando e por quem será financiado.
Entre as ideias apresentadas, existem duas propostas de construção de barreiras e uma outra para realizar o aumento da faixa da praia. Mas não há garantias da eficiência das iniciativas. “Não existe solução simples. Como exigiria uma intervenção séria, há discordâncias no desenvolvimento destes projetos. Existem vários pré-projetos que ainda precisam estudos técnicos e grandes investimentos, além da aprovação dos órgãos competentes para a sua regulamentação. Faltam também recursos e o município não tem como arcar sozinho com estes investimentos”, explica a prefeita.
De acordo com a secretária de Meio Ambiente de São João da Barra), Marcela Toledo, hoje em dia são as comunidades mais tradicionais estão sofrendo com o maior impacto: “No início do avanço do mar, a maioria das construções afetadas era da alta sociedade de Campos dos Goytacazes, que possuía residências de veraneio, além de diversas construções de pontos comerciais, clubes, entre outros”.
Toledo explica que, hoje, as residências atingidas são de famílias tradicionais vinculadas à atividade pesqueira, incluindo marisqueiras. Em março de 2019, último grande avanço do mar sobre as casas, foram retiradas três famílias, um total de sete pessoas, as quais estão sendo assistidas pelo Programa Municipal de Benefício Eventual de Aluguel Social. No total, 35 pessoas de 14 famílias estão sendo assistidas pelo programa atualmente”, relata a secretária.
Memória e autoestima
A história recente de Atafona passou a influenciar diretamente na forma que seus habitantes enxergam a vida, o seu território e o mundo, num processo contínuo de transformação e adaptação. Uma iniciativa artística vem ajudando nos últimos três anos no desenvolvimento da autoestima e da memória da comunidade de Atafona, com um projeto que visa contribuir para estimular a criação de novos significados para a relação da população local com as ruínas. A Casa Duna — Centro de Arte, Pesquisa e Memória de Atafona, oferece residências artísticas, realiza produções culturais eventos e peças teatrais.
Quando abriu suas portas em 2017, a Casa Duna também realizou exposições com o acervo histórico adquirido pelos idealizadores do poeta local Jair Vieira, que até então mantinha uma pequena galeria de fotografias, livros, mapas e reportagens sobre Atafona em sua casa.
Segundo Julia Naidin, doutora em filosofia e cofundadora da Casa Duna, a ideia do projeto é ajudar a população usando a arte para jogar luz sobre a questão ambiental e para gerar novas narrativas regionais. “Queremos trabalhar contra o estigma de cidade-fantasma, rótulo que incomoda os moradores que vivem bem na cidade e possuem um vínculo afetivo forte com ela”, afirma ela. “A arte pauta e sensibiliza sem gerar discursos prontos. Ajuda a provocar reflexões, amplia a percepção e multiplica o debate. É preciso lembrar que existe vida, vínculo territorial e resistência.”