Até 2050, a soja deve ocupar 12 milhões de hectares a mais no Brasil. A região de maior crescimento será o Matopiba (que engloba a área de divisa entre Maranhão, Tocantins, Piauí e Bahia).
Estudos científicos, porém, apontam que nesse mesmo espaço de tempo as mudanças climáticas devem causar secas cada vez severas no Cerrado. E o Matopiba é justamente a área mais suscetível à falta de chuvas.
Especialistas sugerem o aumento da produtividade da soja como forma de resistir às alterações do clima e, sobretudo, dobrar o rendimento sem desmatar um hectare a mais.
Ao dirigir por 7 horas pela BR-020 saindo de Brasília rumo à cidade de Luís Eduardo Magalhães, no oeste da Bahia, percebe-se duas coisas.
A primeira é como a estrada segue em linha reta, com asfalto bem cuidado, assim que se cruza a divisa de Goiás e Bahia. Um sinal claro dos investimentos constantes em infraestrutura que o agronegócio mantém ali.
A segunda coisa notável — especialmente quando se viaja no auge da seca, em agosto — é como toda a vegetação desaparece assim que se entra em território baiano. No horizonte, surge um alaranjado permanente, com o sol forte castigando o solo, boa parte esperando para ser plantado novamente.
Para quem vem do sul, aqui começa o Matopiba — nome nascido do encontro das siglas de Maranhão, Tocantins, Piauí e Bahia para designar uma região antes esquecida economicamente e hoje tida como a nova fronteira agrícola no Brasil. Em outras palavras, um novo celeiro para a soja, o item de maior exportação no país.
Com a população do planeta ultrapassando 7,8 bilhões de pessoas e a demanda por proteína animal aumentando na China e na Ásia, países em desenvolvimento estão competindo para conseguir acompanhar o ritmo do mercado internacional, algo especialmente caro ao Brasil e à sua produção em larga escala tanto de carne quanto de soja — usada para alimentar os animais.
Hoje o agronegócio brasileiro coloca boa parte dos seus investimentos no Cerrado — e o Matopiba, ao longo dos últimos 20 anos, se tornou o principal centro da economia rural do país. A região, porém, tem um ponto fraco: sempre foi mais suscetível à seca. E ela tem se agravado com as mudanças climáticas.
“O aumento da temperatura média é uma realidade em todo o planeta, mas o Matopiba é particularmente sensível porque quase toda a sua agricultura depende do regime de chuvas”, explica Michael Coe, pesquisador do Woods Hole Research Center, nos Estados Unidos. Segundo ele, as lavouras já quase não conseguem suportar o clima atual e o Cerrado caminha para secas cada vez mais severas. “Será um problema para os agricultores locais manter as suas lavouras baseadas no que cai dos céus.”
De acordo com um estudo publicado em 2013 pelo Painel Brasileiro de Mudanças Climáticas, a temperatura média no Brasil deve subir de 1 a 5 graus Celsius até 2100. As chuvas no Norte e no Nordeste também devem diminuir em até 40%. Calor extremo, junto com secas cada vez mais prolongadas e a disputa por água, podem causar, segundo Coe, a ruína financeira do agronegócio no Cerrado.
Especialistas concordam que o cenário para os próximos anos é preocupante. Com os alertas ignorados e a falta de uma estrutura de irrigação, todo o desmatamento no Cerrado, além do que já causou, pode ter sido em vão.
Cerrado: berço das águas e da soja
A expansão da soja no Brasil foi rápida. O crescimento começou nos anos 1970, mas explodiu recentemente, duplicando o volume plantado na última década, de olho na demanda interna e sobretudo o mercado internacional. Hoje, a soja brasileira é usada como ração para milhões de porcos na China e por frangos na União Europeia.
Em 2020, o Brasil deve finalmente superar os Estados Unidos como o maior produtor de soja do mundo, com um recorde de 125 milhões de toneladas colhidas em lavouras que ocupam 36,9 milhões de hectares. Isso se deve em parte a um aumento da produtividade de lavouras já existentes, a maioria no Cerrado.
E essa tendência deve continuar. De acordo com outro estudo publicado na Science Advances, as plantações de soja no Brasil devem ocupar mais 12 milhões de hectares entre 2021 e 2050. Desses, 11 milhões de hectares serão plantados no Cerrado. Desse total, 86% está projetado para acontecer no Matopiba. Esse aumento exponencial requer um desmatamento na mesma medida, piorando – e muito – o quadro de crise climática que já alterou o estoque de água e intensificou as secas na região.
O Cerrado possui aquíferos importantes e é considerado o “berço das águas” do Brasil. Mas mesmo esses aquíferos profundos não devem ser capazes de sustentar o agronegócio em um mundo com secas severas, alertam os especialistas.
“Temos ótimas evidências de que o desmatamento diminui drasticamente o período de chuvas”, afirma Coe, pesquisador do Woods Hole. “Esse é o principal motivo pelo qual sempre dizemos que a primeira coisa a se fazer é acabar com o desmatamento, que está agravando o problema”. Mas a destruição do Cerrado não dá indícios de que irá parar.
Oeste da Bahia expressa o impacto do agronegócio
A cidade de Luís Eduardo Magalhães é um exemplo perfeito do impacto que a soja teve no Cerrado, na economia e nas pessoas. Desde 2000, sua população quadruplicou, chegando a 83 mil habitantes e tornando-se a de crescimento mais rápido do Brasil. Hoje, Luís Eduardo Magalhães tem o quarto PIB mais alto da Bahia, e está na vigésima posição entre as cidades do país com o PIB mais elevado em função do agronegócio.
Mas o crescimento tem as suas consequências: serviços públicos, como saneamento básico e segurança, não conseguiram acompanhar a velocidade da demanda. Muitos trabalhadores que vieram de outras cidades, sem formação adequada, não conseguiram bons empregos em um meio rural altamente mecanizado. O resultado foi a criação de periferias violentas tomadas pelo tráfico de drogas.
Apesar disso, a cidade permanece como um dos principais centros de produção de soja do oeste da Bahia, uma região que registrou um crescimento maior que todos os outros três estados do Matopiba juntos — 352% desde 1985.
“A Bahia representa para o agronegócio o mesmo que as regiões fronteiriças do Maranhão, Piauí e Tocantins tanto em área plantada quanto em produção. Nós estamos pelo menos 15 anos na frente”, afirma Luiz Stahlke, assessor de agronegócio da Associação de Agricultores e Irrigantes da Bahia (Aiba).
A Bahia começou cedo, ele explica. “Os primeiros fazendeiros começaram a chegar aqui nos anos 80. Nos outros estados a ocupação é mais recente, de meados dos anos 90 e sobretudo a partir dos anos 2000”. A associação representa mais de 1.300 produtores baianos, distribuídos em nove cidades na parte oeste do estado, de acordo com Stahlke. “99,9% dos produtores de soja estão aqui”, disse. Não por acaso estas cidades registram alguns dos mais altos índices de desmatamento do Brasil.
O uso de irrigação no oeste da Bahia passou de apenas nove pivôs em 1985 para 1.550 pivôs centrais em 2016. No entanto, a maior parte da produção de soja depende do regime de chuvas. O que é alarmante para cientistas como Coe, mas não para a Aiba.
O que dizem os estudos científicos
Stahlke e outros fazendeiros entrevistados pela Mongabay não concordam que a mudança climática já esteja impactando ou que irá impactar o futuro da produção, exceto talvez pela quantidade de água disponível para irrigação. “Baseado nos nossos levantamentos, tivemos períodos bons e ruins de chuvas no passado. O clima aqui tem sido muito cíclico nos últimos 80 anos”, diz Stahlke. “As mudanças climáticas não afetaram a nossa produção. Os problemas que temos com secas acontecem porque não nos preparamos devidamente para enfrentar o que já é esperado. A média de produção, no entanto, segue muito boa”.
Essa declaração não encontra eco em muitos estudos científicos recentes, especialmente no Matopiba. “O clima está mudando rapidamente. E, nas próximas décadas, as mudanças na região serão ainda mais drásticas”, afirma Coe. “Todas as evidências mostram que isso será bem rápido, com mais períodos de seca. E não estou falando em 2100, mas sim de um cenário para 2030.”
Modelos científicos mostram que o desmatamento no Cerrado aumenta a vulnerabilidade climática em parte por diminuir a quantidade de água disponível na atmosfera. Estudos descobriram que para cada milhão de hectares de Cerrado transformados em lavouras, a evapotranspiração durante a seca diminui 1,7 km3. Em 2013, por exemplo, as lavouras reciclaram 3% menos água do que a vegetação nativa seria capaz de oferecer.
Outro estudo, da Universidade de Brasília, mostrou que o desmatamento é responsável por uma queda de 8,4% na chuva média anual no Cerrado nas últimas três décadas. Considerando que o Cerrado é responsável por abastecer 8 das 12 bacias hidrográficas do Brasil, esse dado deveria ligar um grande alerta.
Outros padrões começam a emergir e preocupar os cientistas. “O que estamos vendo no Matopiba é que o clima está caminhando para uma seca mais prolongada e frequente”, conta Coe. “É isso que esperamos para as próximas décadas. A condição extrema do clima será a regra.”
Um estudo recente da Embrapa, utilizando os modelos de aquecimento global do Painel do Clima da ONU (IPCC), mostrou que a quantidade de terra viável para a plantação de soja será reduzida em até 39% no Brasil até 2040. Outra pesquisa, do Instituto de Pesquisa Ambiental da Amazônia (Ipam), revelou que mais de um quarto das terras no Matopiba estão em zonas de alto risco produtivo em função do clima e do solo.
Embora associações como a Aiba não demonstrem uma grande preocupação com as mudanças climáticas, eles têm buscado entender melhor a disponibilidade de água na região, especialmente com a expansão da irrigação. “A falta de água, sim, é um problema”, afirma Stahlke. “Todo mundo diz que há muita água no aquífero Urucuia, mas ninguém parou para analisar. Por isso nós precisamos entender a realidade para saber o que fazer no futuro.”
Em associação com universidades brasileiras, o governo da Bahia e a universidade de Nebraska, a Aiba está estudando o potencial da água no oeste baiano para verificar se o que eles julgam ter disponível será suficiente para a irrigação no futuro. De acordo com os produtores, há muito espaço para o avanço do uso de pivôs centrais, embora o custo da infraestrutura seja considerável.
Um caminho possível: aumento da produtividade
Enquanto os cientistas se preocupam com o impacto que mais desmatamento trará para o clima do Cerrado, especialistas dizem que a aumento da produtividade da soja pode ser um caminho para evitar que mais vegetação nativa venha abaixo.
De acordo com um estudo publicado em 2019 por pesquisadores americanos e brasileiros, em 2015 havia 23 milhões de hectares já desmatados no Cerrado altamente propícios para o plantio de soja, e outros 15 milhões de hectares com bom potencial. Com isso, a produção de soja poderia dobrar ou mesmo triplicar sem desmatar mais um hectare que seja de Cerrado.
Donald Sawyer, pesquisador sênior do Instituto Sociedade, População e Natureza (ISPN), ONG que trabalha com o Cerrado desde os anos 1990, diz que a solução para o bioma está justamente na produção em áreas já degradadas em conjunto com a busca de alternativas para diversificar o que é plantado. A agricultura familiar, por exemplo, recebe muito menos recursos e apoio do que o modelo altamente industrializado para a produção de commodities.
“Estou realmente preocupado com a possibilidade de extinção da agricultura familiar”, diz ele à Mongabay. “Pequenos produtores podem manter sistemas realmente complexos”. Mesmo não sendo perfeitas, acrescenta Sawyer, “lavouras menores e com diversidade de culturas guardam carbono de modo muito mais eficiente que plantações de soja ou pasto, além de aumentar a absorção de água pelo solo”.
Enquanto a maioria das pessoas entende a importância da Amazônia, talvez devido à grandeza da floresta tropical, Sawyer ressalta que a diversidade encontrada no Cerrado, com suas florestas secas, pastagens e vegetação em diferentes estágios de crescimento, é muitas vezes subestimada. Afinal, trata-se da savana mais biodiversa do mundo, com 5% de todas as espécies do planeta — incluindo mais de 11,6 mil espécies de plantas, 1200 de peixes, 900 de pássaros e 200 de mamíferos.
Mas toda essa riqueza precisa ser considerada para além de sua existência intrínseca, explica Sawyer. “O Cerrado pode ter muito a nos ensinar. A biodiversidade pode ter importância estratégica para o mundo devido às suas características naturais de resiliência ao calor e à seca.” De acordo com o Ministério do Meio Ambiente, mais de 220 espécies de plantas do Cerrado têm uso medicinal e mais 416 podem ser usadas na recuperação de solos degradados.
Imagem do banner: Grãos de soja. Foto: Flávia Milhorance / Mongabay.
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