Um surto de mineração ilegal de ouro no Pará está causando um aumento dramático na poluição da água dos rios e no desmatamento, à medida que os garimpeiros limpam faixas de floresta ao longo das margens para dar lugar aos garimpos. As lavras invadiram a Terra Indígena Kayapó, vasta região que abriga vários povos, entre eles alguns que vivem em isolamento voluntário do mundo exterior.
O desmatamento mais que dobrou na reserva indígena desde o ano 2000, e o garimpo de ouro é apontado como principal fator. A Funai já identificou quase 3 mil pessoas contaminadas por resíduos de mineração na área.
Povos indígenas que vivem no território dos Kayapó têm lutado para expulsar os invasores nos últimos anos. Outros toleram a mineração ilegal em troca de uma parte nos lucros da atividade, que, segundo eles, traz fundos necessários para suas comunidades.
A retórica de Jair Bolsonaro encoraja os garimpeiros. O presidente sempre criticou a proteção de terras na Amazônia como um “obstáculo” à mineração e ao desenvolvimento. Em fevereiro, ele assinou um controverso projeto de lei que permite a mineração em territórios indígenas. O tema será ainda debatido pelo Congresso.
Enquanto o pequeno barco de João Inácio de Assunção corta as águas cor de barro do Rio Fresco, ele se lembra de uma época diferente em que o rio era mais limpo e fértil. “Havia tantos tipos de peixes aqui”, diz Assunção, de 51 anos, pilotando o bote a motor. “As coisas mudaram muito.”
Assunção passou 30 anos trabalhando no rio que corta São Félix do Xingu, município do interior do Pará que tem um dos maiores rebanhos bovinos do Brasil. No entanto, nos últimos anos, é cada vez mais difícil para pescadores como ele sobreviverem do alimento que tiram das águas. “Os peixes estão morrendo, estão desaparecendo”, conta.
Ambientalistas apontam para a expansão da mineração ilegal de ouro nessa parte da Amazônia, que trouxe consigo um aumento dramático na poluição dos rios e no desmatamento, já que os invasores limpam faixas de floresta ao longo das margens para dar lugar aos garimpos.
A atividade já causou “danos irreversíveis” aos rios da região, afirma Gilberto Santos, que trabalha com a Comissão Pastoral da Terra (CPT) em São Félix do Xingu, braço da Igreja Católica que se esforça para promover os direitos humanos nas comunidades do interior do Brasil.
“Sempre houve especulações sobre a mineração aqui, mas nos últimos anos ela se espalhou como uma febre”, diz Santos. “E a água que os garimpos estão poluindo é a de pequenos rios e córregos que correm diretamente para o Rio Fresco.”
Fontes locais dizem que a situação mais dramática ocorreu no Rio Branco, um curso d’água estreito que atravessa o município vizinho de Ourilândia do Norte antes de desaguar no Rio Fresco.
O município de Ourilândia do Norte, coberto por uma mata exuberante, registrou recentemente um forte aumento no desmatamento: perdeu mais de 5% de sua cobertura florestal entre 2001 e 2018, de acordo com dados de satélite da Universidade de Maryland. Cerca de metade dessa perda ocorreu apenas em 2017 e 2018 – um sinal de que o desmatamento na região pode estar se acelerando.
Há sinais de que essa aceleração se manteve em 2019. Dados preliminares da Universidade de Maryland indicam que o desmatamento aumentou nos meses de setembro e outubro para mais que o dobro da taxa média para o mesmo período nos últimos quatro anos. Imagens de satélite mostram que a maior parte do problema em 2019 se deve à expansão dos garimpos, em grande parte agrupados em torno do Rio Branco.
Fontes locais dizem que garimpeiros jogam lixo tóxico diretamente no rio. Mas a maior parte da poluição ocorre porque a remoção das árvores e do solo superficial enfraqueceu gravemente as margens do Rio Branco, explica Daniel Clemente Vieira Rêgo da Silva, professor adjunto da Universidade Federal do Sul e Sudeste do Pará (Unifesspa) em São Félix do Xingu. Isso significa que o solo – cheio das toxinas usadas pelos mineradores para extrair minerais – corre diretamente para o rio quando chove.
“É o que acontece quando você remove a proteção natural”, diz Rêgo da Silva. “E temos um grave problema com o uso de mercúrio na mineração. Esse solo que está entrando na água é rico em mercúrio e outros minerais.”
Enquanto Rêgo da Silva diz que é difícil estabelecer um vínculo direto, muitos ambientalistas da região acreditam que o mercúrio é provavelmente um dos principais culpados para o número cada vez menor de peixes no Rio Fresco, uma opinião reiterada por alguns estudos globais. Em todo o Brasil, até 221 toneladas de mercúrio são liberadas no meio ambiente a cada ano devido à mineração ilegal, mostraram pesquisas preliminares em 2018.
Estudos científicos também detectaram que o mercúrio é prejudicial à saúde humana: a exposição ao elemento leva a doenças de pele, infertilidade e defeitos congênitos. Também pode impactar as comunidades que habitam os rios muito além da área em torno de um local de mineração, à medida que a contaminação se desloca rio abaixo e o impacto se amplifica na cadeia alimentar.
No Pará, a água contaminada flui de um rio para o outro, chegando a São Félix do Xingu. No ponto onde o Rio Fresco encontra o Rio Xingu, o fluxo azul de um flui ao lado das correntes lamacentas do outro. “Como é possível usar essa água?”, Assunção se pergunta. “Para quem mora aqui, é impossível.”
Um passado de danos
A degradação do Rio Fresco não começou nos últimos anos com o aumento da mineração nessa região do Pará. Em vez disso, remonta à corrida do ouro que tomou conta da Amazônia, de forma mais ampla, a partir da década de 70.
À medida que novas estradas eram construídas na região amazônica, o caminho para as terras ricas em minérios em torno de Ourilândia do Norte foi aberto por exploradores em busca de ouro, níquel e ferro. Nas décadas que se seguiram, mais e mais garimpeiros se mudaram para a área, na esperança de enriquecer com o comércio ilícito de ouro.
Atualmente existem mais de 450 garimpos ilegais na Amazônia, segundo dados da Rede Amazônica de Informação Socioambiental Georreferenciada (Raisg), um consórcio de organizações da sociedade civil. As autoridades brasileiras estimam que 30 toneladas de ouro ilegal no valor de cerca de R$ 4,5 bilhões (US$ 1,1 bilhão) sejam negociadas a cada ano apenas na bacia do Tapajós, que fica em grande parte no estado do Pará.
Embora a mineração represente uma proporção muito menor de desmatamento do que a criação de gado ou a extração de madeira, seu impacto ambiental se tornou mais claro e preocupante nos últimos anos. Um estudo de 2017 detectou que a mineração contribuiu para cerca de 10% do desmatamento na Amazônia entre 2005 e 2015. A grande maioria das clareiras relacionadas à atividade, cerca de 90%, ocorreu ilegalmente, fora dos arrendamentos concedidos pelo governo brasileiro.
Na maior parte das vezes, os garimpeiros vêm com máquinas pesadas, incluindo escavadeiras, que podem arrasar vastas extensões de floresta com facilidade. Muitas vezes, eles também abrem pistas de pouso improvisadas, permitindo que suprimentos e equipamentos de mineração sejam transportados de avião para áreas densamente florestadas. Quando a terra começa a produzir menos, eles passam para outro trecho de mata rico em minerais.
Parte da mineração na região é legal, mas mesmo essas operações entraram em controvérsia. No início de 2019, os promotores suspenderam uma mina de níquel de propriedade da mineradora Vale, após a contaminação de um rio próximo no território dos Xikrin. A Vale negou que sua mina, que abrange os municípios de Tucumã e Ourilândia do Norte, seja responsável pela contaminação.
Enquanto isso, a área em que os garimpeiros aumentaram recentemente suas atividades se sobrepõe à Terra Indígena Kayapó, uma vasta região que abrange cerca de 3,28 milhões de hectares e abriga vários grupos indígenas, incluindo alguns que vivem em isolamento voluntário do mundo exterior.
No Brasil, é ilegal minerar em terras indígenas, mas fontes locais afirmam que isso não impede os garimpeiros de invadir o território dos Kayapó. Alguns povos que vivem na reserva têm lutado para expulsar os invasores nos últimos anos. Outros toleram com relutância a mineração ilegal em troca de uma parte nos lucros – uma receita, segundo eles, necessária em suas comunidades.
O desmatamento mais que dobrou na Terra Indígena Kayapó desde o ano 2000, com ONGs apontando a mineração ilegal de ouro como principal fator. A Fundação Nacional do Índio (Funai) identificou quase 3 mil pessoas contaminadas por resíduos de mineração no território.
Ao longo do Rio Fresco, os impactos da poluição decorrente da mineração também começam a se tornar evidentes. Um estudo realizado por pesquisadores da Unifesspa, liderados por Daniel Clemente Vieira Rêgo da Silva, encontrou recentemente apenas 21 espécies de invertebrados que ainda vivem no rio. Por outro lado, identificaram aproximadamente 45 espécies no Rio Xingu. Invertebrados aquáticos – como as larvas de insetos voadores – são usados com frequência pelos cientistas como indicadores da saúde da água.
“Não se trata apenas de um problema ambiental, é também um problema social”, diz Cristian Bento da Silva, antropólogo do Instituto de Estudos do Xingu, que pesquisa o impacto da poluição da água em São Félix do Xingu. “No início dos anos 2000, ainda era possível pescar no Rio Fresco. Agora, ele é conhecido como ‘Rio Morto’ aqui.”
À medida que o Rio Fresco ficou mais poluído e o número de peixes diminuiu nas últimas duas décadas, diz João Inácio de Assunção, muitos pescadores que dependiam de suas águas se deslocaram ao longo do Rio Xingu em busca de capturas mais abundantes.
“A maioria de veteranos foi embora porque ficou impossível trabalhar com a mineração”, conta, observando que também houve casos de doenças na comunidade – segundo ele, culpa da água poluída.
Defensores e moradores locais dizem que o recente aumento da mineração ilegal e do desmatamento ao longo do Rio Branco e do Rio Fresco provocaram novas preocupações sobre o futuro dos rios nessa região. Um dos receios é que a poluição esteja começando a infiltrar-se no Rio Xingu, agravando os danos.
“Essa é a nossa grande preocupação aqui”, diz Rêgo da Silva. “Poderíamos ter um desequilíbrio considerável, pois o Xingu é um dos principais rios da região”.
Encorajados pelo novo governo
Muitos especialistas apontam a retórica do presidente Jair Bolsonaro como um fator-chave que encoraja a ação de grileiros, madeireiros e garimpeiros em toda a Amazônia. O presidente de extrema-direita, ele próprio um adepto do garimpo no passado, repetidas vezes alegou que as terras protegidas da Amazônia representam um “obstáculo” a projetos de mineração e ao desenvolvimento.
Bolsonaro assinou em fevereiro um projeto de lei controverso que legaliza, sob determinadas condições, a mineração nos territórios indígenas – o projeto ainda não foi avaliado pelo Congresso, onde precisa de aprovação. O presidente também apoia a abertura da Reserva Nacional de Cobres e Associados (Renca), de 4,6 milhões de hectares, para os mineradores. Seu antecessor, Michel Temer, já havia tentado liberar a exploração mineral na enorme região que ocupa parte do Pará e do Amapá, mas a ação foi bloqueada por um juiz federal em meio a protestos internacionais.
A fiscalização ambiental também tem sido enfraquecida sob a orientação de Bolsonaro. A multa por crimes no setor caiu desde que o presidente assumiu o cargo, chegando ao seu nível mais baixo em uma década. Tais circunstâncias têm sido bem recebidas pelos garimpeiros, muitos dos quais são pobres e com pouca educação. Defensores públicos regionais avaliam que as palavras e ações do presidente encorajam muitos a se aventurar na Amazônia sem medo das consequências.
“Essa ideia de que a Amazônia é um lugar com recursos naturais ilimitados para explorar é realmente forte aqui”, diz Bento da Silva. “E assim as pessoas vêm explorar, sem assumir nenhuma responsabilidade”.
Órgãos governamentais, incluindo o Ibama, seguem realizando operações no interior do Pará para coibir a mineração ilegal. Mas, com recursos cada vez menores e uma vasta área para monitorar, é a cada dia mais difícil conter a atividade ilícita.
Os cortes no financiamento da Funai e do Ibama levaram ao fechamento de postos permanentes em localidades mais remotas do Brasil nos últimos anos, deixando os garimpeiros livres para invadir territórios indígenas e áreas protegidas.
No final de outubro de 2019, eles bloquearam quatro rodovias no Pará em protesto contra agentes da lei que danificam equipamentos de mineração na região. Um dos bloqueios, em uma estrada importante que liga Ourilândia do Norte a São Félix do Xingu, durou dias.
“Eles querem que o governo nos impeça de destruir equipamentos porque isso é o que realmente machuca o garimpeiro”, conta uma fonte de uma agência governamental, que pede para permanecer anônima porque não está autorizada a falar sobre o assunto.
Já em 2019, no primeiro ano de seu mandato, Bolsonaro enviou um sinal encorajador para mineradores e madeireiros quando interveio pessoalmente para impedir que agentes do Ibama destruíssem equipamentos confiscados durante invasão em uma área protegida em Rondônia. “Não é a orientação deste governo queimar máquinas”, disse ele em um vídeo nas redes sociais.
As punições têm sido imediatas para agentes que descumprem essa orientação. Semanas atrás, o chefe da Diretoria de Proteção Ambiental (Dipro) do Ibama, Olivaldi Alves Borges Azevedo, foi demitido pelo ministro do Meio Ambiente por causa de uma operação contra garimpeiros no sul do Pará. Os fiscais queimaram equipamentos usados para a extração ilegal, em uma ação que visava frear o contato dos invasores com grupos indígenas no meio da pandemia do novo coronavírus.
A fonte da agência de fiscalização observa que é cada vez mais difícil reprimir a atividade ilegal na região, à medida que os garimpeiros se tornam mais ousados. “Eles começam a se sentir mais poderosos. E esperam que o governo não os penalize e que suas atividades sejam legalizadas.”
Para João Inácio de Assunção, por enquanto, ainda não está claro como sua comunidade irá lidar com o impacto da mineração ilegal ao longo dos rios, principalmente porque os garimpeiros não mostram sinais de recuar. “Meu sustento vem do peixe, minha comida é peixe”, resume ele. “Para aqueles que vivem do rio, é uma grande perda.”
Imagem do banner: Mina na Terra Indígena Kayapó. Foto: Ibama.
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