Acordo judicial inédito assegura reparação ao povo Ashaninka, do Acre, cujas terras foram desmatadas nos anos 1980 para abastecer a indústria moveleira na Europa. A madeireira penalizada era da família do atual governador do Acre, Gladson Cameli (PP).
O conflito foi resolvido através da mediação do Procurador-Geral da República, Augusto Aras, depois que um processo tramitou por 20 anos na justiça, sem solução.
Os indígenas só concordaram com negociação porque ela incluiu um pedido de desculpas e reconhecimento de sua “enorme importância como guardiões” da Amazônia.
Francisco Piyãko, liderança Ashaninka, desabafa: “Muitas comunidades (indígenas) têm que se ver dentro desse reconhecimento. E que sirva de referência para outras empresas, porque existe uma legislação e direitos que precisam ser respeitados”.
A vitória mais importante para o povo Ashaninka desde o reconhecimento de seu território pelo governo federal, em 1992, aconteceu há mais de 3 mil quilômetros de distância de suas comunidades, em 1º de abril de 2020.
Neste dia, longe das castanheiras e cerejeiras que marcam a paisagem da Terra Indígena Kampa do Rio Amônia, no ambiente acarpetado de um gabinete em Brasília, o Procurador-Geral da República, Augusto Aras, assinou um acordo inédito que garantiu aos indígenas a reparação por crimes sofridos há 40 anos.
O documento dá a essa comunidade indígena do oeste do Acre, na fronteira do Brasil com o Peru, o direito a uma indenização de 14 milhões de reais e um pedido de desculpas.
O crime: a derrubada de milhares de exemplares de mogno, cedro e outras espécies para abastecer a indústria moveleira da Europa, ocorrida entre 1981 e 1987. A devastação atingiu um quarto da área que hoje é a terra indígena e provocou miséria entre seus habitantes.
Quarenta anos depois, Francisco Piyãko, liderança Ashaninka que na época da invasão era adolescente, comemora a conquista: “Para nós, o que vale é o que esse acordo representa para a causa Ashaninka, e como isso pode repercutir para afirmar os direitos e valores dos povos indígenas em uma visão mais ampla”.
O acordo põe fim a um imbróglio judicial que durava duas décadas: desde 1996, quando o Ministério Público Federal (MPF) propôs uma Ação Civil Pública contra as madeireiras da poderosa família Cameli. A mesma do atual governador do Acre, Gladson Cameli (PP), e de seu tio, Orleir Cameli, que também foi chefe do Executivo do Estado entre 1994 e 1998.
Os indígenas venceram na primeira e segunda instâncias, e também ganharam quando o processo chegou ao Superior Tribunal de Justiça. Mas quando a causa foi levada ao STF, em 2011, estagnou.
Diante do impasse, o entendimento extrajudicial se impôs, mas foi preciso um ano de negociações regulares até que os termos do acordo fossem acatados pelos dois lados. “Foi um desafio muito grande para todos, porque a negociação envolveu grandes valores e questões constitucionais. Exigiu muito estudo, pareceres e diversas autoridades públicas envolvidas analisando cada detalhe”, observa Antônio Rodrigo, advogado dos indígenas.
“Foi a primeira vez no Direito brasileiro que algo assim foi feito. Estou muito orgulhoso, foi difícil, mas muito bonito”, completa.
Segundo a notícia veiculada no site do MPF, que qualificou o resultado da negociação como “histórico”, o procurador-geral da República, Augusto Aras, celebrou o cumprimento da Constituição, “compreendendo que o indígena tem direito garantido a ter uma vida decente, escolher seu próprio destino e tomar parte das decisões políticas”.
“Este registro é um sentimento profundo de que estamos construindo um novo momento de paz, harmonia, e, acima de tudo, de saber que as feridas existem para serem curadas, não eternizadas”, concluiu Aras.
Um dos réus do processo, Abrahão Cândido da Silva, não compôs o acordo e seguirá respondendo na Justiça pelo desmatamento e invasão da terra indígena. O processo está na pauta de sessões de abril do STF e também merece atenção. Nele, os ministros do Supremo decidirão não apenas se condenam ou não o réu remanescente, mas se existe um prazo máximo para cobrar ressarcimento por um crime ambiental.
O MPF sustenta que esse tipo de dano é imprescritível, porque é parte do “direito à vida”, e entende que determinar um tempo de validade é tirar de gerações futuras o direito a lutar por um ambiente saudável. Foi a tese vencedora do STJ, que agora será revista e ganhará status de repercussão geral – ou seja, vai valer para aplicação em todos os casos daqui em diante.
“Essa definição vai interferir em centenas de milhares de processos. Só para dar três exemplos de grandes crimes ambientais recentes que aconteceram no Brasil, tivemos Mariana, Brumadinho e, no ano passado, o vazamento de petróleo no mar brasileiro”, afirma o advogado Rodrigo.
Reconhecimento da culpa foi decisivo
Os R$ 14 milhões serão pagos aos indígenas em parcelas ao longo de cinco anos. Seu destino será decidido anualmente em assembleia pelos Ashaninka, mas há obrigatoriedade de aplicação em projetos “de defesa da própria comunidade, da Amazônia, dos povos indígenas e dos povos da floresta”.
“Nossos recursos vão ser direcionados a manter e trazer de volta os nossos valores. Vamos articular para que essa região seja cada vez mais respeitada e valorizada, colocando seus produtos no mercado com valor agregado, que vão servir também para garantir a sustentabilidade. Isso é o que vamos fazer: não vamos parar”, promete Francisco Piyãko, cujo pai, Antônio Piyãko, foi o porta-voz da denúncia da invasão feita ao mundo, através de uma carta aberta, publicada em 1991.
Além da indenização aos Ashaninka, os madeireiros deverão ainda pagar R$ 6 milhões ao Fundo de Defesa dos Direitos Difusos, como ressarcimento aos danos causados à sociedade em geral.
Para os Ashaninka, porém, o ponto alto do acordo com os madeireiros foi o pedido de desculpas explícito, que consta no termo assinado por todas as partes.
“Diante de todos os fatos narrados e longamente discutidos por anos a Justiça, (os madeireiros) vêm formalmente registrar um pedido de desculpas à Comunidade Ashaninka do Rio Amônia por todos os males causados, reconhecendo respeitosamente a enorme importância do povo Ashaninka como guardiões da floresta, zelosos na preservação do meio ambiente e na conservação e disseminação de seus costumes e cultura”, diz o acordo.
“Se não houvesse reconhecimento da culpa, os indígenas não teriam feito o acordo”, assegura Rodrigo, advogado dos Ashaninka.
Para Piyãko, essa reparação moral confere transcendência à negociação, simbolizando uma vitória para todos os povos tradicionais do Brasil e do mundo pela usurpação de suas terras e modos de vida tradicionais.
“Muitas comunidades indígenas têm que se ver dentro desse reconhecimento, porque tem coisas que não é o dinheiro que paga”, comenta o líder Ashaninka. “A nossa intenção é que esse pedido de desculpas seja o reconhecimento de um erro cometido e (uma promessa de) que, a partir daí, isso não vai se repetir mais. E que isso sirva de referência para outras empresas, porque existe uma legislação, existem direitos que precisam ser conhecidos e respeitados.”
Leia aqui a entrevista com Francisco Piyãko.
Imagem do banner: Arison Jardim/Associação Ashaninka do Rio Amônia.
Mais reportagens da Mongabay sobre povos indígenas aqui.