Em entrevista exclusiva, Marcelino Guedes, pesquisador da Universidade Federal do Amapá fala sobre a importância do manejo e dos saberes tradicionais para o fortalecimento de uma economia florestal no Brasil, capaz de vencer o paradigma que coloca a floresta em pé como inimiga do desenvolvimento.
“As práticas humanas, por meio do manejo, são a base para a conservação da Amazônia”, diz Marcelino Guedes. Contrariando teses que é necessário manter a floresta intocada, ele defende que o uso racional de seus recursos é o melhor caminho para criar uma dinâmica de conservação efetiva diante das muitas pressões sofridas pelo território.
Para fortalecer seu argumento, o pesquisador evoca a Hipótese do Distúrbio Intermediário, segundo a qual pequenas alterações no ambiente são cruciais para aumentar a biodiversidade. Esses distúrbios podem ser naturais, como uma tempestade, ou por ação humana – é o caso dos indígenas amazônicos, que nos últimos 5 mil anos vêm modificando e enriquecendo a paisagem por meio da agricultura itinerante e da dispersão de espécies nativas.
Ajudar a proteger a Amazônia já estava nos planos do cientista e professor Marcelino Carneiro Guedes em sua graduação em Engenharia Florestal na Universidade Federal de Viçosa (MG). Mesmo que a UFV não tivesse muita ligação com a região amazônica, ele direcionou sua formação em direção à floresta, o que o levou a atuar como pesquisador da Embrapa (Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária) no Amapá, inicialmente na área de conservação e manejo de solos.
“Como meu trabalho está sempre voltado para as necessidades locais, eu percebi uma demanda para algo mais ligado ao manejo florestal mesmo – sem deixar de lado todo o conhecimento que tenho em solos e que me permite compreender os compartimentos ecológicos em um ecossistema, onde está tudo interligado”, explica.
Desde então, já se somam dezessete anos de trabalho e pesquisa em um contexto que, segundo enfatiza, é diferente do associado à Amazônia nos grandes noticiários. “É preciso entender que existe uma diferença entre a floresta conservada e a floresta desmatada. Aqui no Amapá temos a floresta conservada, com baixíssimo desmatamento e pouca demanda para o cuidado de áreas degradadas. Nosso desafio aqui é manter o que está conservado”, aponta.
Hoje professor e orientador nos programas de pós-graduação em Biodiversidade Tropical e Ciências Ambientais na Universidade Federal do Amapá, Guedes dá aulas sobre manejo de florestas nativas da Amazônia e ecologia de ecossistemas, participando também das disciplinas de uso sustentável dos ecossistemas amazônicos e ecologia de campo.
Nesta entrevista exclusiva para a Mongabay, o cientista explica a importância da prática do manejo para o desenvolvimento de uma economia florestal forte, capaz de vencer o paradigma que coloca a floresta em pé como inimiga do desenvolvimento. Também fala sobre as dificuldades do momento atual para fazer ciência na Amazônia e sobre a importância dos conhecimentos das populações tradicionais e indígenas para a conservação da biodiversidade.
Mongabay: De que modo a presença humana pode ser importante para a conservação da Amazônia?
Marcelino Guedes: O conceito de preservação pressupõe o homem apartado da floresta. Por isso é importante falarmos de conservação, não de preservação. As práticas humanas, por meio do manejo, são a base para a conservação da Amazônia – a chamada “conservação pelo uso”, como já pregava [o extrativista e ambientalista] Chico Mendes. Usar a floresta de maneira racional, manejando seus produtos madeireiros e não madeireiros e serviços ecossistêmicos [sequestro de carbono, conservação da biodiversidade, solo, água] para tirar dela a renda e a riqueza necessárias à promoção do bem viver e desenvolvimento, é o caminho para que possamos criar uma dinâmica de conservação efetiva em longo prazo diante das muitas pressões sofridas pelo território.
A floresta em pé pode ser financeiramente lucrativa?
Sim, com certeza. Vários trabalhos têm mostrado com clareza que os ganhos obtidos pagam os custos do manejo e que a floresta em pé pode gerar lucro. A madeira, por exemplo, é o principal ativo econômico da floresta e tem mercado garantido. Os PFNM (Produtos Florestais Não Madeireiros) estão sendo cada vez mais valorizados e ganham mercado atendendo diversas indústrias como a de alimentos, fitoterápicos e cosméticos. Além disso, ainda existe a possibilidade de compensação pelo serviço ambiental que prestam as pessoas que cuidam e ajudam a manter a floresta em pé. Quando se tem uma economia florestal forte e esses guardiões conseguem retirar da floresta a sua renda, eles passam a ser os principais interessados em mantê-la em pé, em uma prática que alia desenvolvimento econômico, social e a conservação de forma integrada.
A arqueologia brasileira, dentre outras ciências, já comprova que o manejo realizado pelas populações pré-Cabralinas influenciou a floresta de maneira profunda. Qual a importância do conhecimento sobre essa atuação humana ancestral para se pensar a conservação hoje?
As grandes populações originárias da Amazônia viviam e praticavam manejo na floresta, assim como do solo e do fogo há, pelo menos, 5 mil anos. Com isso, acabou ocorrendo um enriquecimento de espécies úteis ao ser humano como a castanheira e o açaizeiro, aumentando a densidade dessas espécies na floresta – um processo de seleção natural e também cultural.
Os distúrbios provocados pelos indígenas, principalmente por meio das práticas da agricultura itinerante, foram importantes para criar uma paisagem diversa, resultando na abundante diversidade que conhecemos hoje. O manejo indígena dos solos promoveu melhorias extraordinárias na sua qualidade, como pode-se constatar ainda hoje nos solos antropogênicos [que tiveram ação humana] da Amazônia. A chamada “terra preta de índio”, por exemplo, é de extrema fertilidade e é um legado dos antigos indígenas que utilizaram seus saberes para o enriquecimento do solo ao longo de milênios.
Como você percebe as estratégias e políticas que ignoram a importância do conhecimento das populações tradicionais como parte da conservação da biodiversidade?São derivadas de mentes que nunca viveram na Amazônia ou que desconhecem sua ecologia histórica, seu funcionamento e a essencialidade da floresta. Os caboclos atuais, que já estão na floresta há bastante tempo, têm o conhecimento dos melhores usos para cada espécie, dos frutos que são ou não comestíveis e qual a melhor época para sua coleta, das madeiras mais indicadas para cada utilização, e sabem tudo isso de maneira muito detalhada.
Esse conhecimento nasce da necessidade de sobrevivência, principalmente em relação às espécies úteis. São séculos e séculos de convivência diária dessas populações com a floresta. Esse contato com a natureza e com essas pessoas ensina muitas coisas que a gente jamais vai aprender com os livros dentro da universidade.
Outro conhecimento importante das populações tradicionais e indígenas diz respeito aos usos medicinais. Muitas dessas comunidades até hoje não têm acesso aos fármacos industrializados. Então, utilizam plantas para curar a maioria das suas enfermidades, um conhecimento muito valioso. Ignorar esses saberes é deixar de lado uma parte importante da dinâmica de funcionamento da própria floresta.
O que é a Hipótese do Distúrbio Intermediário e qual a sua relação com as práticas de manejo?
A HDI nos mostra que a diversidade é maximizada em áreas com distúrbios intermediários. E por “distúrbio” podemos entender todos os fenômenos que causam alteração no ambiente, como, por exemplo, uma forte tempestade, a queda de um raio gerando fogo ou de uma grande árvore abrindo uma clareira na mata. Se o distúrbio for muito grande, intenso e frequente, logicamente os danos à biodiversidade também ocorrerão na mesma proporção. Por outro lado, se não houver distúrbios (em uma hipótese de preservação total), a diversidade também será baixa.
Os distúrbios intermediários são fundamentais para a entrada de luz e renovação da floresta, e permitem a coexistência de espécies com diferentes exigências desse recurso, o que não acontece nos casos extremos de muito ou pouco distúrbio. Quando uma árvore cai e se abre uma clareira, por exemplo, espécies que necessitam de maior incidência de calor e luminosidade tendem a ser favorecidas, bem como a sua coexistência com outras espécies. É assumindo a existência dessas alterações e sua importância para a diversidade que o manejo se estabelece. O papel das pesquisas e do conhecimento científico está em perceber as nuances dessa dinâmica e como a intervenção humana pode obter os produtos da floresta, incluindo os madeireiros, em uma proporção de distúrbio que esteja de acordo com o que já ocorreria naturalmente e de uma maneira que favoreça os ecossistemas ao invés de danificá-los.
Qual é o papel da ciência, na sua opinião, para a conscientização da população e o desenvolvimento de políticas públicas que visem manter a floresta em pé?
Infelizmente, um papel que deveria ser central está cada vez mais subjugado. A polarização política e ideológica da população faz com que cada vez menos se acredite na ciência. Cada vez mais temos argumentos científicos para defender a floresta em pé, mas isso não chega à população e não causa impacto na sociedade. A visão social predominante sobre a Amazônia ainda é dualística, dos que imaginam a floresta um paraíso que deve ser mantido intocado ou um inferno que deve ser queimado.
É em grande medida por esse desconhecimento, também, que ainda existem vozes que se levantam contra a prática do manejo, defendendo a preservação e a ausência de atividade humana na floresta como forma de protegê-la mesmo com todas as evidências, científicas e históricas, sobre a importância dessa interação para a biodiversidade.
O papel da ciência é quebrar essa polarização e trazer base técnica para o desenvolvimento sustentável a partir do uso e conservação da floresta. Mas para isso acontecer é fundamental que as informações cheguem à população em geral – para que argumentos e tecnologias não fiquem restritos apenas aos nossos pares.
Como você avalia o atual momento para os estudos científicos na Amazônia?
Esse é o pior momento que já vivi nesses 17 anos em que, como pesquisador da Embrapa, estudo a Amazônia. Eu realmente gostaria de acreditar que estamos passando pelo fruto de um desconhecimento, de uma visão antiga de que a floresta é a grande inimiga que precisa ser derrubada para poder colonizar e integrar. Mas, com todo esse desmonte sistemático das instituições, sinto que infelizmente não é isso: existe um planejamento por trás de todas essas ações.
Apesar de o governo tentar fazer um discurso sobre manter a floresta em pé, como agora na Cúpula do Clima da ONU em Madri, você percebe que as ações não são condizentes com o discurso. É apenas uma forma de conseguir mais recurso sem fazer o dever de casa, sem cultivar ações como o manejo da floresta em pé, ou o combate ao desmatamento. A situação é realmente bastante preocupante tanto se pensamos no que se está propondo para Amazônia como um todo – nesse paradigma no qual a floresta é inimiga do desenvolvimento, de que o caminho é explorar os minério e vender matéria-prima para o exterior, uma visão totalmente superada – quanto especificamente no que se refere à pesquisa científica e educação.
A gente que está trabalhando com a formação científica na Amazônia, na pós-graduação, está sentindo a expectativa de desmonte de todo um arranjo que buscou formar massa crítica aqui na região para trabalhar com ciência e tecnologia na floresta. Um problema que estávamos conseguindo minimizar era a dificuldade de conseguir fixar quadros de doutores, já que muitas vezes estados periféricos são considerados mais como pontos de passagem na formação acadêmica, o que dificulta o trabalho na floresta com uma base técnica e científica nessas regiões.
Quando eu cheguei ao Amapá, nós tínhamos aproximadamente dez doutores atuando nessa área. Hoje já temos mais de cem, muita gente daqui mesmo, formada. Nós estávamos conseguindo dar esse salto importante e o que vivenciamos agora é tudo isso sendo ameaçado por uma política que realmente não vê a Amazônia como algo central para o Brasil. Pensando apenas em termos territoriais, a floresta amazônica ocupa 60% do país. Mas continua sendo tratada como um tema periférico.
Existem exemplos de regiões onde o manejo e a economia florestal sejam parte integrante das políticas públicas, gerando resultados positivos?
Nas áreas tropicais, apesar de toda a óbvia riqueza e diversidade, ainda há mais a avançar do que resultados de grandes proporções a comemorar. Temos alguns casos pontuais como a Malásia – onde na verdade houve um certo excesso. A Costa Rica tem já algumas políticas públicas, mas a maioria dos casos onde é possível ver essa economia florestal virar algo realmente forte é nos países de clima temperado como o Canadá, onde esse setor representa aproximadamente 20% do PIB. Outros exemplos são a Suécia e a Finlândia, onde há iniciativas que mostram o protagonismo do tema, como a criação de um Ministério da Floresta. Nesses países, mesmo com todas as dificuldades com o clima – lá o sujeito planta uma árvore para o neto dele colher o fruto –, eles conseguiram estabelecer uma economia florestal forte, baseada exatamente em ciência e tecnologia.
Quais as principais dificuldades para a implantação de um manejo efetivamente sustentável na Amazônia e qual o papel da legislação brasileira nesse processo?
Falta de liquidez financeira e elevados custos iniciais, falta de regularização fundiária, carência de crédito e assistência técnica para habilitação da floresta, além da elaboração do plano de manejo, são as maiores dificuldades. Além disso, ainda contamos com excesso de burocracia e morosidade no processo de licenciamento. A legislação precisa ser simplificada e criar incentivos para quem quer fazer manejo e ser mais exigente e ter maior controle sobre as atividades que dependem do desmatamento.
Quais você considera serem os maiores desafios futuros?
As questões organizacionais, como a falta de organização social e dificuldades de gestão das comunidades. Também a ampliação dos mercados, o fortalecimento da economia florestal e a construção de uma política de fomento para dar escala ao manejo florestal de uso múltiplo na Amazônia.
Imagem do banner: criança da comunidade de São Félix, município de Novo Aripuanã (AM). Foto: Neil Palmer/CIAT.
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