O grupo de pesquisa Reprocon, especializado em reprodução assistida de animais silvestres, investe em métodos e protocolos de clonagem para onça-pintada no Brasil desde 2023.
A fragmentação de habitat tem levado populações de onças a ficarem isoladas e, consequentemente, acasalar entre parentes. Para evitar que a consanguinidade eventualmente leve a espécie à extinção, técnicas de inseminação artificial, fertilização in vitro e clonagem vêm buscando melhorar a genética de populações.
A clonagem se soma a outras estratégias para conservação de espécies silvestres ameaçadas de extinção, como criar, ampliar e conectar áreas preservadas. A expectativa do Reprocon é ter as primeiras transferências de embriões clonados para fêmeas em 2026.
MIRANDA, Mato Grosso do Sul — Foram três as tentativas de captura de uma onça-pintada. Chegamos à Fazenda Bodoquena, em Miranda, Mato Grosso do Sul, ao entardecer de uma quinta-feira. Parte da equipe foi instalar uma armadilha de laço perto de uma carcaça de vaca que havia sido encontrada mais cedo naquele dia. Como as onças costumam voltar por alguns dias para comer a presa, a captura era quase certa. Com mais de 70 mil hectares divididos entre Pantanal e Cerrado, a Fazenda Bodoquena concilia criação de gado e conservação de biodiversidade. Uma vez por mês, recebe pesquisadores do Reprocon, grupo especializado na reprodução assistida de animais silvestres.
Naquela noite, voltamos ao alojamento para jantar e monitorar a movimentação à distância — acompanhando, via satélite, as imagens de uma câmera instalada no local da captura que chegavam através de um aplicativo de celular. Durante o monitoramento, a câmera mostrou uma fêmea, e não o macho que se acreditava ser o dono da carcaça. Ela estava desconfiada. Se aproximou e se afastou algumas vezes, e quando finalmente chegou perto o suficiente do laço, conseguiu desarmar o dispositivo, saindo em disparada. Os pesquisadores foram armar o laço novamente, mas naquela noite nenhuma outra onça apareceu.
Na sexta-feira, uma nova carcaça foi encontrada, e a equipe montou a armadilha (o laço só é ativado no fim da tarde, para que nenhuma onça fique presa sob o calor do dia). Agora, com dois laços a postos, as chances eram dobradas. Não demorou muito; uma onça apareceu no segundo local, interessada na carcaça — mas também conseguiu desarmar o dispositivo. Surpreendente, segundo os pesquisadores; algo difícil de acontecer. Restava uma última tentativa, no dia seguinte.
Depois de encontrar uma terceira carcaça no sábado, onde mais um laço foi armado, estávamos à espera, olhos atentos no aplicativo enquanto participávamos de um jantar festivo para os trabalhadores da fazenda. Mal deu tempo de ver a captura: às 21h10, um indivíduo apareceu na câmara e foi direto para a presa, sem titubear, ficando preso no laço.
Da captura à soltura, foram três horas de atividade. Ao chegar ao local, Gediendson Ribeiro de Araujo, membro fundador e diretor científico do grupo de pesquisa Reprocon, se aproximou do animal para estimar seu peso para a anestesia. A equipe de cinco pesquisadores e alguns voluntários começaram a separar os materiais e montar a mesa de operações em um local próximo. Gediendson voltou para perto da onça para disparar o dardo anestésico, e, depois de alguns minutos até surtir efeito, a onça foi pesada: 113 kg.


Durante as horas seguintes, os pesquisadores fizeram diversas medições físicas e coletas: de pelo, carrapatos, sêmen, sangue e também um pedacinho da orelha. Ao fim do procedimento, aplicou-se um reversor da anestesia e a onça — batizada de Leonço — foi colocada mais afastada, na relva, do outro lado de uma cerca que havia no local. Depois de alguns minutos, começou a se mexer e saiu cambaleando para a mata escura. Leonço tem oito anos, aparentemente. Os machos vivem cerca de 13 anos na natureza, menos do que as fêmeas, resultado das brigas entre si — e Leonço tinha algumas marcas no focinho como prova disso.
No dia seguinte, a equipe organizou os equipamentos e voltamos para Campo Grande, onde está o laboratório do Reprocon, junto ao Biotério Central da Universidade Federal de Mato Grosso do Sul (UFMS). Segunda-feira seria o dia de processar o material biológico e genético coletado do animal, identificando e separando as amostras e colocando as células da orelha para cultivo.
Gediendson e sua esposa, Thyara de Deco-Souza Araujo, também médica veterinária e cofundadora do Reprocon junto com outros pesquisadores, trabalham desde a graduação com reprodução assistida de animais silvestres. Até recentemente, o foco era a coleta de sêmen para conservação da variedade genética das espécies, visando à reprodução para conservação (daí o nome do grupo). Acontece que nem todo sêmen coletado está em boa qualidade — ou mesmo vivo — para ser congelado e posteriormente utilizado. Foi exatamente o caso com Leonço: seu sêmen estava morto, talvez decorrente do frio que fazia naquela noite. A captura teria sido em vão não fosse pela estratégia adotada pelo grupo há dois anos, dormente naquele pedacinho de orelha: a clonagem.

Vida e morte de onças-pintadas no Brasil
A onça-pintada é o maior felino das Américas. Existem onças-pintadas em quase todos os biomas brasileiros, com exceção dos Pampas. Não chegam a ser subespécies, mas sim subpopulações, ou ecotipos. Uma pesquisa recente indica que pode haver entre 6 e 7 mil indivíduos somente em áreas protegidas na Amazônia. Segundo dados conservadores do Plano de Ação Nacional para Conservação da Onça-pintada, pode haver entre 10 e 21 mil indivíduos na Amazônia, até 5 mil no Pantanal e mil no Cerrado. Na Mata Atlântica e na Caatinga, onde a espécie está criticamente ameaçada de extinção, há menos de 250 indivíduos adultos em cada bioma.
A disponibilidade de alimento influencia no tamanho do território que a onça precisa, segundo Thyara, e que pode variar de 5 a 400 km²: quanto mais presas, menos o felino precisa andar para se alimentar. As características do bioma e suas presas — que incluem porco-do-mato, cateto, queixada, capivara, anta, cervo e jacaré, entre outros — também influenciam no tamanho da onça. No Pantanal, onde estão os maiores indivíduos, eles podem passar de 130 kg, mas na Caatinga beiram os 50 kg. Os machos ocupam um território maior do que as fêmeas, e ambos se encontram mais na época do acasalamento. Depois que nasce a ninhada, de normalmente um par de filhotes, a mãe cuida da sua cria pelos dois anos seguintes. Na juventude, os machos se dispersam para mais longe do que as fêmeas.
Essa dispersão, porém, tem sido prejudicada pela alteração da paisagem. A redução de habitat, e sua consequente fragmentação, são a principal ameaça às onças-pintadas no país, o que também leva à redução de espécies que servem de presa para os felinos e dá espaço para conflitos com seres humanos e morte por retaliação, pois as onças acabam se alimentando de animais domésticos e de criação. Os atropelamentos nas rodovias também figuram na lista de ameaças — entre 2016 e 2023, 19 onças-pintadas foram mortas na BR-262, entre Miranda e Corumbá (MS), segundo o Instituto Homem Pantaneiro (IHP).
Além dos perigos, outro problema apontado por Gediendson é a falta de um programa forte de conservação de onças em cativeiro, ou sob cuidados humanos, termo mais comumente usado. “As onças-pintadas da Caatinga e da Mata Atlântica estão muito ameaçadas, e a gente não tem indivíduos em cativeiro que forneçam uma poupança genética para reprodução e posterior reintrodução dos filhotes nas populações livres”, avalia o veterinário.
É então que entra a importância das tecnologias reprodutivas para conservação de espécies ameaçadas. Em biomas onde os ambientes naturais estão mais fragmentados, como a Mata Atlântica, a população de onças vive em pequenos grupos isolados. Isso faz com que os indivíduos reproduzam entre si, o que leva ao aumento da consanguinidade e, consequentemente, a problemas reprodutivos, malformações e abortamentos, eventualmente culminando na extinção daquela população. Nesses casos, é preciso oxigenar aquela população, ou seja, levar uma genética nova. Ter animais em cativeiro nesses biomas críticos, segundo Gediendson, possibilitaria a reprodução e posterior reintrodução na natureza.
Implantar corredores ecológicos entre os fragmentos também cumpriria o papel de conectar populações isoladas, mas muitas vezes há cidades entre os remanescentes vegetais. Nesse cenário, a reprodução assistida se torna uma ferramenta de conservação, seja pela inseminação artificial, pela fertilização in vitro ou, mais recentemente, pelas pesquisas para clonagem. “Nós conseguimos pegar material genético de uma área e passar para outra, dentro do mesmo bioma, por meio da produção de embriões em laboratório, transferindo depois para as fêmeas”, explica o veterinário.

Tecnologias de reprodução para conservação
A reprodução assistida para animais silvestres é relatada desde a década de 1970, adaptada de técnicas que foram desenvolvidas para produção de animais para abate. Com o objetivo de pesquisar e aprimorar essas técnicas para algumas espécies silvestres brasileiras, visando à reprodução e conservação genética, pesquisadores de diferentes instituições com experiência na área se uniram em 2017 para criar o grupo de pesquisa Reprocon. Além da onça-pintada, hoje a protagonista, a equipe trabalha ou já trabalhou com reprodução de canídeos silvestres, como lobo-guará e cachorro-do-mato, além de tamanduá-bandeira, puma, jaguatirica, gato-palheiro, anta, arraia, tubarão e serpentes.
O grupo é reconhecido mundialmente por ter padronizado a técnica de coleta farmacológica de sêmen de onças-pintadas, que reduz o estresse do animal em comparação a outros métodos. “O nosso trabalho é desenvolver biotecnologias para coletar material e oxigenar populações, tanto em vida livre quanto em cativeiro, e ao mesmo tempo armazenar esse material para uso futuro”, diz Gediendson.
No seu biobanco, um repositório de material biológico e genético, estão armazenadas amostras congeladas de sangue de cerca de 160 onças, de tecido de 60 indivíduos e de sêmen de 30 machos. É o maior banco de tecido de onças-pintadas do mundo — aquele pedacinho da orelha. Quando cultivada em laboratório, essa amostra de tecido libera fibroblastos, que são células somáticas, da família das células-tronco, que podem ser usadas para a clonagem. Todas as amostras são armazenadas em botijões de nitrogênio.
Gediendson e Thyara trabalham com coleta de sêmen de onças-pintadas desde 2010, mas a pesquisa visando à formação de embriões começou em 2023. “No início, focamos muito no macho, só que o sêmen dá possibilidades mais restritas. Era uma grande frustração nossa quando íamos para o campo capturar onça para coletar sêmen, mas capturávamos fêmea, filhote, animal idoso ou mesmo macho, mas que naquele momento não tinha sêmen ou não era de qualidade”, relata Gediendson.


O esforço era grande, mas não se conseguia conservar o material genético para gerar descendentes. Foi então que eles viram que a melhor opção para conservação seria a partir das células somáticas. Além de poder coletar amostras de qualquer indivíduo capturado, também funciona com felinos encontrados mortos — uma das amostras é de uma fêmea filhote atropelada, que deixou de gerar pelo menos uma dúzia de descendentes.
O processo da clonagem começa com o cultivo do pedaço de pele em placas de vidro, em meio a uma solução com vários nutrientes. As células de fibroblastos contidas naquele tecido começam, então, a se proliferar. Cada fibroblasto (de 20 a 30 milhões se desprendem de dois centímetros de orelha, em até um mês) pode gerar um embrião clone.
Para o processo da clonagem, é preciso retirar o material genético de um óvulo — que, no caso do animal, é chamado de oócito — e inserir o fibroblasto. Em seguida, é feita uma eletrofusão, como se fosse um choque, para que a célula seja ativada e comece a se desenvolver em um embrião, que terá o material genético do doador. Por fim, esse embrião deve ser inserido numa fêmea para que a gestação se complete e nasça um filhote clonado.
No ano passado, em parceria com pesquisadores da Argentina, o Reprocon conseguiu chegar até o estágio de mórula, que é uma das fases do desenvolvimento inicial de um embrião, até três dias após a fecundação. “Foi uma primeira tentativa e agora estamos trabalhando para poder avançar e conseguir um embrião-clone ainda neste ano. Para o ano que vem, esperamos fazer as primeiras tentativas de transferência do embrião para a fêmea”, revela o veterinário.

Parcerias e inovações
Além do país vizinho, o grupo também tem firmado parcerias internacionais com pesquisadores da Colômbia, Canadá e Estados Unidos, devido ao caráter multidisciplinar do trabalho. Depois do primeiro nascimento, será necessário acompanhar o filhote para analisar seu comportamento e identificar potenciais efeitos da clonagem durante seu desenvolvimento, como impacto na saúde do animal.
“É só desenvolvendo e aplicando as técnicas que vamos conseguir melhorá-las para que elas sejam efetivamente usadas para o propósito da conservação”, avalia Thyara. “Ainda não sabemos se o animal viverá menos, se terá capacidade de se reproduzir ou mesmo se ele poderá ser solto. Mas a grande finalidade é ter o animal na natureza, então estamos sempre pensando em ir atrás das técnicas, aprimorá-las e conseguir resultados melhores.”
Maitê Cardoso Coelho da Silva, umas das médicas veterinárias pesquisadoras do grupo, desenvolveu um dispositivo microfluídico para lavagem e outro para seleção espermática de onças-pintadas. Os dispositivos são substitutos móveis para grandes equipamentos de laboratório, como incubadoras de bancada e centrífugas, que não podem ser levados para o campo. Os dispositivos são feitos a partir de silicone, moldado em formas criadas em uma impressora 3D, e custam 15 dólares. Cada unidade pode ser reutilizada até nove vezes.
A tecnologia microfluídica está presente no nosso dia a dia, por exemplo, nos testes rápidos de gravidez e de covid. No trabalho aplicado às onças, um dos dispositivos utiliza a técnica para selecionar os espermatozoides de maior qualidade e maior potencial fértil, aumentando a chance da inseminação artificial funcionar. O outro dispositivo age como uma centrífuga. “Para que eu tenha uma qualidade boa de células e possa congelar e mantê-las no nosso biobanco, eu preciso retirar o líquido seminal. O dispositivo já faz isso no campo”, explica Maitê.
Com a reprodução assistida, especialmente a clonagem, o Reprocon quer contribuir para as estratégias de conservação da onça-pintada no Brasil. “Conservação não se faz com uma estratégia única. Precisamos preservar áreas naturais, estudar populações livres e sob cuidados humanos, aumentar e conectar as áreas preservadas, e também inserir as pessoas nas ações”, analisa Thyara. Para ela, a clonagem nunca vai salvar a onça-pintada, mas é uma estratégia para armazenar material e preservar a genética de populações. É mais uma ferramenta importante na luta pela proteção da biodiversidade e garantia do seu direito à vida.
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Imagem do banner: Onça-pintada avistada na Fazenda Bodoquena (MS). Foto: Gustavo Fonseca.