Investigação da Mongabay revela que prefeituras do Rio Grande do Sul, além do governo estadual, compraram 211 toneladas de peixe-anjo — nome dado a três espécies de tubarão que estão entre as mais ameaçadas do mundo.
As compras públicas, feitas através de pregões entre 2015 e 2025, se destinam a servir a carne do peixe na merenda escolar e no cardápio de hospitais, postos de saúde e abrigos gaúchos.
Apesar de ter a pesca proibida no Brasil, esses peixes podem ser legalmente importados; mas, segundo especialistas, é quase impossível separar o pescado legal do ilegal.
Após questionamentos da Mongabay, o governo do estado e duas prefeituras gaúchas prometeram retirar o peixe-anjo das suas listas de compras.
Esta investigação foi apoiada pelo Ocean Reporting Network do Pulitzer Center, do qual Philip Jacobson é bolsista.
PORTO ALEGRE, RS — Um peixe saboroso, carnudo e sem espinhas, perfeito para o consumo das crianças. Não é à toa que o peixe-anjo é a escolha número um de pescado em centenas de escolas e creches do Rio Grande do Sul, além de abrigos, penitenciárias, hospitais, postos de saúde, Centros de Referência de Assistência Social (Cras) e outros serviços públicos. Por trás do nome angelical, no entanto, estão três das espécies de tubarões mais ameaçadas do mundo e cuja pesca é proibida no Brasil: Squatina guggenheim, conhecida como cação-anjo-espinhoso, Squatina occulta, também chamada de cação-anjo-liso, e Squatina argentina, ou peixe-anjo-argentino.
“Eu fiquei chocada com isso”, disse à Mongabay a nutricionista Cristina Weissheimer Luft, responsável por montar o cardápio das escolas municipais de Alto Feliz, uma cidade de pouco mais de 3 mil habitantes localizada a menos de 100 quilômetros de Porto Alegre. Até ser informada pela reportagem, ela não fazia ideia de que o tal peixe-anjo era, na verdade, um tipo de tubarão. “Na próxima licitação, não vai ter peixe-anjo com certeza.”
Alto Feliz é um dos pelo menos dez municípios gaúchos que lançaram editais para a compra de peixe-anjo — também chamado tubarão-anjo — ao longo dos últimos doze anos, segundo levantamento exclusivo da Mongabay em dados de compras públicas. O governo do estado, que já alertou os consumidores sobre o risco de comprar espécies ameaçadas de extinção, incluindo o peixe-anjo, também solicitou o pescado em 11 licitações. Entre os locais indicados para receber o alimento estão creches, hospitais e presídios.
O tubarão-anjo comprado pelos órgãos públicos não é necessariamente ilegal, já que a mesma portaria do Ministério do Meio Ambiente que proíbe a captura de espécies ameaçadas em território nacional permite a importação destes pescados, “desde que comprovada a origem e observadas as normas existentes”. Mas especialistas afirmam que a facilidade de fraudar notas fiscais e a falta de um sistema de rastreabilidade para o pescado brasileiro tornam praticamente impossível separar o produto legal do ilegal.
“Você vai em uma peixaria e não sabe se este pescado está vindo de fora [do país] ou não”, disse Nathalie Gil, presidente e diretora executiva da Sea Shepherd Brasil, ONG que atua para proteger a vida marinha, em entrevista por videochamada. “Hoje a nossa rastreabilidade não é tão consistente a ponto que me garanta a origem legal [do produto]”, confirmou Igor de Brito Silva, coordenador de Fiscalização da Biodiversidade do Ministério do Meio Ambiente (MMA), durante conversa em Porto Alegre.
Silva ficou surpreso ao saber que gestores gaúchos estão se expondo a esse tipo de risco. Na dúvida, ele diz, ninguém deveria comprar carne de uma espécie ameaçada de extinção. “No mínimo ela [a prefeitura] deveria se resguardar, porque a probabilidade de que seja ilegal é iminente.”
Os dados são parte de um amplo levantamento da Mongabay em portais de transparência de estados e municípios brasileiros. A apuração evidenciou a participação decisiva do país para o progressivo desaparecimento dos tubarões, cuja população mundial encolheu 71% entre 1970 e 2018, segundo estudo publicado na Nature.
Em todo o Brasil, a reportagem identificou aproximadamente mil licitações para a compra de mais de 5.400 toneladas de carne de “cação”, termo genérico usado para designar diversas espécies de tubarão. No Rio Grande do Sul, no entanto, chamou a atenção a quantidade de editais solicitando o “peixe-anjo”, que segundo especialistas, agentes ambientais e a própria lista de espécies ameaçadas do estado, se refere às três espécies do gênero Squatina mencionadas acima.
Das mais de mil licitações identificadas pela reportagem, 52 faziam menção específica ao peixe-anjo; foram 50 pregões eletrônicos no Rio Grande do Sul e dois em Santa Catarina. Os órgãos públicos gaúchos orçaram pelo menos 211 toneladas de tubarão-anjo, o equivalente a dez contêineres cheios, em pregões eletrônicos realizados entre 2015 e 2025, no valor aproximado de R$ 5,7 milhões. O número real, no entanto, pode ser bem maior, já que a Mongabay não verificou os portais de transparência dos 497 municípios gaúchos.
“Eu desconhecia até então a movimentação desse tipo de pescado de forma significativa”, disse Silva. “Só a publicidade do comércio de uma espécie ameaçada já assusta. Sendo órgão público, ainda mais.”
O levantamento não exclui a possibilidade de outros municípios e estados brasileiros estarem comprando peixe-anjo rotulados como cação ao serem importados.
Assim como a nutricionista de Alto Feliz, outros gestores municipais reconheceram não saber que o peixe-anjo era uma espécie de tubarão ameaçada de extinção e com pesca proibida no Brasil. “Até o presente momento, não havia sido identificado que o termo usado nos editais poderia se referir a espécies ameaçadas de extinção”, escreveu por email a nutricionista responsável técnica pela alimentação escolar em Fazenda Vilanova, Clarice de Fátima da Rosa (leia a íntegra da resposta aqui).
O nome oficial para a comercialização da espécie no Brasil é cação-anjo, conforme estabelecido pelo Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento. Mas o catálogo de compras públicas do governo federal, o CATMAT, usado para garantir consistência na descrição dos produtos comercializados, tem um código exclusivo para uma variedade de peixe que chama de “anjo”. Na prática, os termos “anjo” e “peixe-anjo” são frequentemente usados nos restaurantes e mercados do Sul brasileiro como formas de denominar as espécies de cação-anjo, diz Patricia Charvet, bióloga, pesquisadora da Universidade Federal do Ceará e representante regional para a América do Sul do Grupo de Especialistas em Tubarões da Comissão de Sobrevivência de Espécies da União Internacional para a Conservação da Natureza (IUCN).
Segundo Silva, do MMA, “chamar de peixe-anjo é mais atrativo do que você tratar como cação, e mais ainda do que como tubarão.”
As quantidades registradas nos editais não correspondem necessariamente ao volume de peixe adquirido. As licitações foram realizadas pelo sistema de registro de preços, criado para facilitar compras recorrentes, como é o caso de alimentos, combustível ou materiais de limpeza. Os órgãos públicos divulgam uma lista com os produtos que vão precisar ao longo do ano, e as empresas que oferecerem o menor preço vencem. O edital prevê um volume máximo de fornecimento para cada produto, mas isso não significa que os pedidos tenham que alcançar este limite.
Ainda assim, os dados mostram o quanto o consumo do tubarão-anjo é naturalizado no Rio Grande do Sul. Além de concentrar a maior população destas espécies no país, o estado faz fronteira com o Uruguai e a Argentina, onde o tubarão-anjo é legalmente capturado e exportado para o Brasil.
“É um peixe sem espinha, então principalmente as crianças gostam de comer. E tem um gosto suave, então caiu no padrão cultural do consumo do gaúcho”, Luiz Eduardo Bonilha, analista ambiental e agente de fiscalização do Ibama em Porto Alegre, disse à Mongabay por telefone.
A entrada do produto de outros países cria brechas para a circulação de pescado ilegal no mercado brasileiro, já que documentos de importação são fraudados para “esquentar” a carne de tubarão nacional. Muitas vezes, a única maneira de os agentes de fiscalização saberem a origem do produto é ir atrás de todas as notas fiscais, desde o local de pesca, passando pelos atravessadores até as distribuidoras e o consumidor final — o que nem sempre é possível.
“Isso nos dificulta o trabalho, porque a gente tem que fazer todo esse check de informações para ver se tem origem lícita de importação”, explicou o Coronel Rodrigo Gonçalves dos Santos, chefe do Comando Ambiental da Brigada Militar (o equivalente à Polícia Militar) do Rio Grande do Sul.
Especialistas também afirmam que a medida é um contrassenso do ponto de vista ambiental, já que não existe barreira física entre a costa brasileira e o litoral da Argentina e do Uruguai, países de origem do peixe importado pelo Brasil. “O mesmo indivíduo que eventualmente está no nosso litoral, amanhã pode estar no litoral do Uruguai, da Argentina”, explica Silva, do MMA.
O consumo de carne de tubarão também pode trazer riscos à saúde em função da presença de substâncias tóxicas como mercúrio, arsênio e chumbo — por estarem no topo da cadeia alimentar, o corpo destes animais acumula os contaminantes de suas presas, das presas de suas presas e assim por diante.

O Food and Drug Administration (FDA), órgão equivalente à Anvisa nos Estados Unidos, orienta que adultos devem comer carne de tubarão com moderação, enquanto crianças e mulheres grávidas devem evitar totalmente o alimento. “O risco é maior para crianças, que têm menor peso corporal e estão ainda em desenvolvimento”, disse a bióloga e pesquisadora da Fiocruz Rachel Ann Hauser-Davis.
No Brasil, no entanto, o cação é recomendado pelo Ministério da Saúde como um dos peixes sem espinhas a serem ofertados a crianças de até dois anos, o que confunde ainda mais os gestores municipais. A prefeitura de Gravataí, por exemplo, informou que orçou o peixe-anjo “por ser cartilaginoso e não espinhoso”, e por isso “mais adequado à alimentação de crianças e idosos”. O Ministério da Saúde não respondeu aos pedidos de comentário da reportagem.
Enquanto vários estudos mostram que a carne de tubarão frequentemente contém altos níveis de metais pesados, não há informações específicas sobre a presença dessas substâncias no tubarão-anjo. Dados preliminares colhidos pela equipe de Hauser-Davis no litoral do Rio de Janeiro, porém, indicam que “muito provavelmente há risco para o consumo”, disse a pesquisadora. Apesar de não estarem tão no topo da cadeia alimentar quanto outros tipos de tubarões, o local em que estas espécies habitam, no fundo do oceano, aumenta as chances de contaminação. “É o que nós chamamos de ‘sumidouro de contaminantes químicos’, porque a maioria dos contaminantes alguma hora vai descer da coluna d’água para o sedimento.”
Grupos do setor de frutos do mar descartaram as preocupações em relação aos metais pesados. “O cação comercializado no Brasil não apresenta nenhum tipo de contaminação, ou seja, não representa risco à saúde do consumidor. São infundadas as alegações de “contaminação por arsênio” (e qualquer outro tipo de contaminação) para gerar dúvida sobre a segurança desse alimento tão presente na mesa dos brasileiros”, afirmou a Associação Brasileira das Indústrias Pesqueiras (Abipesca), em comunicado publicado na semana passada.
Além de Alto Feliz, a prefeitura de Palmares do Sul (leia a resposta aqui) e o governo do Rio Grande do Sul garantiram que não vão mais incluir o peixe-anjo em seus pregões a partir das informações trazidas pela Mongabay. “Alinhado às estratégias de proteção da biodiversidade, o governo gaúcho orientará todas as suas unidades para que retirem a espécie dos editais de compra, substituindo por outra espécie de peixe não ameaçada”, informou por email a gestão estadual (íntegra da resposta aqui).
A prefeitura de Porto Alegre foi a que mais solicitou o pescado, com 83,2 toneladas, seguida por Gravataí, com 59,5 toneladas. A coordenadora da Unidade de Alimentação Escolar da prefeitura de Porto Alegre disse por email que o peixe-anjo não integra as compras da prefeitura desde o final de 2021, sendo que o último edital encontrado pela Mongabay é de 2022 (íntegra da resposta aqui). Já a prefeitura de Gravataí disse que “seguirá acompanhando em caso de necessidade de adequações nos pedidos de compras” (íntegra da resposta aqui).
A íntegra das respostas de todos os órgãos públicos que publicaram editais para a compra de peixe-anjo estão no final da matéria. Em email à Mongabay, o Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação (FNDE), coordenador do Programa Nacional de Alimentação Escolar (Pnae), disse que “não é de sua competência autorizar ou proibir o uso de espécies específicas de origem animal ou vegetal” e que é responsabilidade dos estados e municípios garantir que os alimentos estejam em conformidade com as normas ambientais (leia a íntegra da resposta aqui).
Já o Conselho Regional de Nutrição da 2ª Região, que abrange o estado do Rio Grande do Sul, disse que “não há vedação legal expressa quanto à importação da espécie — o que não significa, no entanto, que seu consumo seja incentivado pelas diretrizes nutricionais” (leia a íntegra da resposta aqui).

Transporte clandestino e notas falsas
A carne que chega ao prato dos gaúchos vem de tubarões de até 1,60 metro de comprimento que habitam o leito do Oceano Atlântico, a até 350 metros de profundidade. Com o corpo achatado e mais largo na altura do peito, as espécies do gênero Squatina mais parecem raias e são mestres da tocaia: ficam escondidas debaixo da areia, só com olhos de fora, para então dar botes certeiros em peixes, crustáceos e moluscos.
Muitas vezes, no entanto, os peixes-anjo são pegos de surpresa pelas pescas de emalhe de fundo, quando as redes são fixadas no fundo do oceano, ou de arrasto, quando as embarcações arrastam a rede pelo leito do mar por horas a fio.
“Não tem nenhuma área onde o cação-anjo esteja livre de pesca”, disse Roberta Aguiar dos Santos, que coordena o Plano de Ação Nacional para a Conservação dos Elasmobrânquios Marinhos Ameaçados de Extinção (PAN Tubarões), do ICMBio.
A Squatina guggenheim vive em profundidades de até 80m e tem o corpo achatado como o de uma raia. Vídeo: Full Diving Center
O resultado é que estes tubarões estão desaparecendo. Segundo a Lista Vermelha da União Internacional para a Conservação da Natureza (IUCN), a Squatina guggenheim está “em perigo”, enquanto a Squatina occulta e a Squatina argentina estão “criticamente em perigo”, com risco extremamente elevado de extinção na natureza. Na lista de espécies ameaçadas do Ministério do Meio Ambiente, atualizada em 2022, os três peixes constam como “criticamente em perigo”, mesma classificação utilizada pelo órgão ambiental do Rio Grande do Sul.
“Os tubarões-anjo são um dos grupos de espécies de tubarões mais ameaçados”, disse à Mongabay o cientista Chris Mull, do Fundo de Conservação do Tubarão (SCF), uma rede internacional dedicada a proteger tubarões e raias. “Eles têm muito poucos redutos restantes.”

Apesar da situação alarmante, nenhuma das espécies está incluída nos anexos da Convenção sobre o Comércio Internacional de Espécies Ameaçadas de Fauna e Flora Selvagens (Cites), um acordo internacional que estabelece controles para o comércio de animais e plantas. A cada dois ou três anos, os países signatários se reúnem na COP da Cites para discutir a inclusão de novas espécies no acordo. O prazo para a submissão de propostas para o próximo encontro, que vai ocorrer no final de novembro no Uzbequistão, já encerrou. Ao lado de outros países, o Brasil propôs regras mais duras para o comércio de seis tipos de tubarões e raias, nesta que é considerada uma COP decisiva para a proteção deste grupo de animais. As espécies de tubarão-anjo, no entanto, ficaram de fora.
Por email, o MMA informou que a proposta de inclusão das espécies de tubarão foi realizada pelo ICMBio, que é a autoridade administrativa e científica no âmbito da Cites (leia a íntegra da resposta aqui).
Segundo Gil, da Sea Shepherd Brasil, espécies costeiras como as Squatinas costumam receber menos atenção por serem consideradas ameaçadas em um território mais restrito. Mas as evidências de comércio de tubarão-anjo entre Brasil, Argentina e Uruguai mostram que o problema extrapola as fronteiras nacionais. “Essa investigação [da Mongabay] pode ser um estudo de caso para justificar a entrada da Squatina pelo menos no anexo 2 da Cites”, disse, referindo-se à lista de espécies cujo comércio é permitido, mas com restrições.
As espécies de tubarão-anjo Squatina guggenheim e Squatina occulta estão entre as mais capturadas de forma incidental nas pescarias comerciais do Brasil, segundo um estudo da PAN Tubarões. Isso significa que a embarcação mirava outro tipo de pescado, mas acabou capturando também o tubarão-anjo. A lei determina que, nestes casos, as espécies ameaçadas sejam devolvidas ao mar, mas isso nem sempre acontece — ainda mais quando há um mercado consumidor cativo para aquele pescado.
“Esses indivíduos são colocados em um canto do porão [do navio], e na entrada do porto eles passam esta carga para uma embarcação menor, que fica em um local estratégico para se retirar rapidamente”, disse Bonilha, do Ibama de Porto Alegre. Segundo ele, há registros desta prática no município de Rio Grande, no extremo sul gaúcho, e em Passo de Torres, no sul do litoral catarinense. “É muito difícil a gente flagrar esse transbordo, porque são situações que ocorrem de madrugada, em áreas ermas, onde a fiscalização não está presente 24 horas por dia.”
Segundo as autoridades ambientais gaúchas, provavelmente foi assim que cerca de uma tonelada de tubarão-anjo foi parar em uma casa da cidade de Guaíba, a cerca de 30 km de Porto Alegre, onde era mantida sem nenhum cuidado sanitário. “Literalmente, estavam processando o pescado em cima de mesas dentro de uma garagem”, contou o coronel Rodrigo dos Santos, que participou da operação em parceria com o Ibama e a Secretaria Estadual do Meio Ambiente e Infraestrutura (Sema-RS).
“Não tinha nota fiscal de nada. Era um produto que chegava lá clandestinamente”, disse Bonilha. No local, os agentes também encontraram outros tipos de pescados ameaçados de extinção, como o bagre, a raia-viola e duas espécies de tubarão-martelo, em um total de três toneladas de peixe ilegal. Oito pessoas foram conduzidas à delegacia. Elas podem ser condenadas à detenção de um a três anos e ao pagamento de multa de até R$ 10 mil por tubarão capturado.

A origem dos animais ainda está sendo investigada, mas, segundo os agentes de fiscalização, casos como este se repetem pelo Rio Grande do Sul. “Essa é uma rede muito grande. Não é só um fornecedor, são vários”, disse o militar Gonçalves dos Santos.
A afirmação é reforçada pela facilidade de se comprar tubarão-anjo no estado. Em uma busca rápida no Facebook, a Mongabay encontrou carnes de pescado descritas como “peixe-anjo” ou “cação-anjo” à venda em cidades como Cidreira, Pinhal, Tramandaí e Rio Grande, no litoral gaúcho, além de São Lourenço do Sul, às margens da Lagoa dos Patos, e Alvorada, na região metropolitana de Porto Alegre.
Os estados de São Paulo e Santa Catarina também já registraram apreensões de tubarão-anjo. Em abril deste ano, onze animais do tipo foram encontrados no Mercado Público de Florianópolis. Três anos antes, em 2022, fiscais também flagraram tubarão-anjo sendo comercializado na região de Ubatuba, no litoral paulista.
Em consulta à base de dados do Ibama, a Mongabay encontrou 47 multas relacionadas à pesca, transporte ou armazenamento do tubarão-anjo, a maior parte (36) no Rio Grande do Sul. As autuações ocorreram entre 2005 e 2022 e somaram R$ 35,3 milhões. Mas o número pode ser muito maior, já que a descrição da espécie apreendida nem sempre consta nos autos de infração.
Apenas na pesca artesanal de praia (quando a rede é puxada da beira do mar), Bonilha estima que sejam capturadas anualmente no litoral gaúcho entre mil e 2 mil toneladas de raia-viola (Pseudobatos horkelii) e tubarão-anjo — que, segundo ele, são as espécies ameaçadas mais visadas pelos pescadores. “Quando [o pescado] é capturado nas modalidades arrasto ou de emalhe, estamos falando de alguns milhares de barcos, então podemos chegar a muito mais do que isso”, disse o agente do Ibama.

Parte do tubarão-anjo processado clandestinamente na garagem de Guaíba era vendida em uma banca do Mercado Público de Porto Alegre, onde o mesmo tipo de pescado já havia sido apreendido em 2022. Desta vez, os agentes identificaram a fraude graças a uma discrepância na nota fiscal. O documento apresentado pelo dono da peixaria descrevia um produto importado na forma de filés congelados. O peixe à venda no balcão, no entanto, estava fresco e cortado em pedaços.
“Era um esquentamento”, disse Bonilha, se referindo à prática de usar um documento de importação para “lavar” uma carga ilegal.
As possibilidades de fraude são inúmeras, desde a adulteração de documentos até o uso indevido de uma nota de importação verdadeira. “Como o produto é congelado, ele [o comerciante] usa aquela nota durante muito tempo para justificar o produto que está na gôndola”, disse Bonilha. “Um produto congelado tem duração de dois anos, então para qualquer fiscalização eles apresentam a mesma nota e dizem ‘isso aqui eu comprei no ano passado, estava congelado’”.
A criação de um mercado consumidor interno para espécies ameaçadas e o “esquentamento de pescado ilegal por meio de declarações de volumes falsos em notas inidôneas” foram dois dos motivos apontados pelo diretor de Proteção Ambiental do Ibama, Jair Schmitt, em um ofício assinado em abril deste ano solicitando a proibição da importação de espécies ameaçadas de extinção. O documento destaca ainda que “é provável que indivíduos protegidos nas águas jurisdicionais brasileiras sejam os mesmos capturados nos países vizinhos e posteriormente importados ao Brasil.”
O MMA informou à Mongabay que o ofício se encontra no Departamento de Conservação e Uso Sustentável da Biodiversidade (DCBio). Segundo o ministério, “o processo no qual consta o ofício encontra-se em análise e ainda não há previsão para conclusão.”
Para Silva, as informações levantadas pela Mongabay tornam ainda mais urgente uma revisão da legislação. “Considerar a possibilidade de que essas empresas venham comercializando grande quantidade de uma espécie protegida nos mobiliza ainda mais para tentar entender o processo e talvez promover a inibição desse tipo de importação.”
Origem incerta
Uma das dificuldades para saber a origem do peixe consumido pelos gaúchos é que os comerciantes não precisam identificar a espécie do animal na hora de exportar ou importar o produto. Os poucos dados disponíveis sobre a importação de Squatinas pelo Brasil vêm dos governos argentino e uruguaio, onde a captura destas espécies é permitida dentro de certas regras, que variam de acordo com o local de pesca.
Na área de pesca compartilhada entre Argentina e Uruguai, onde estudos indicam que ocorre a maior parte da captura de tubarões e raias, existe uma cota máxima para a pesca do tubarão-anjo — segundo a comissão binacional que administra a área, os desembarques comerciais de espécies de Squatina nesta região caíram 85% entre 2008 e 2016, um indicativo da diminuição destas populações.
Na Argentina, onde estes tipos de tubarão são conhecidos como pez ángel (peixe-anjo) ou pollo de mar (frango-do-mar), são capturadas em torno de 1.500 toneladas deste tipo de pescado por ano, segundo a Subsecretaria de Pesca e Aquicultura. O Brasil é praticamente o único importador do tubarão-anjo argentino, respondendo por entre 99% e 100% das compras internacionais. As remessas, no entanto, seguem tendência de queda desde 2016: o último dado, de 2024, dá conta de 100 toneladas importadas do país vizinho.
“Acho que é uma carne valorizada no Brasil, que não tem em outros países”, analisa Juan Martín Cuevas, coordenador das pesquisas sobre tubarões e raias na Wildlife Conservation Society Argentina, uma organização internacional dedicada à proteção da vida selvagem. “Acho que tem também uma questão de logística”, disse, referindo-se às fronteiras compartilhadas entre os dois vizinhos sul-americanos.
Em resposta a um pedido de acesso à informação feito pela Mongabay, a Direção de Ecossistemas Terrestres e Aquáticos da Argentina informou que o país ainda não tem uma lista oficial de peixes ameaçados de extinção. Em 2018, no entanto, um relatório técnico reconheceu que os limites de captura do peixe-anjo na área compartilhada com o Uruguai deveriam considerar “o maior grau de precaução possível” (leia a íntegra da resposta aqui).
Os dados do governo uruguaio são mais escassos e defasados. Segundo o Ministério da Pecuária, Agricultura e Pesca, em 2018 o país registrou a captura de 153,62 toneladas de angelito (anjinho), como o tubarão-anjo é conhecido naquelas bandas. No mesmo ano, o Uruguai exportou 41,2 toneladas do pescado, mas não há informações sobre o destino do produto.
Segundo Mull, do SCF, parte do tubarão argentino pode estar sendo processada no Uruguai e depois vendida ao Brasil. Ele não descarta que até mesmo o tubarão-anjo capturado ilegalmente no Brasil possa percorrer um caminho parecido. “Os pescadores podem não ter grandes fábricas de processamento capazes de lidar com espécies tão grandes ou em grandes volumes, por isso é mais fácil para eles simplesmente vender o produto a processadores no Uruguai, que fazem o processamento e o enviam de volta [ao Brasil]”, disse.
Considerando o volume de peixe-anjo previsto nos editais gaúchos, as compras públicas que possivelmente escaparam do radar da Mongabay e as compras por supermercados e restaurantes, Igor Silva diz ser improvável que toda a demanda seja suprida apenas por peixes importados. “Pela quantidade de ocorrência que você me traz, eu acho bastante provável que não venha tudo de importação. Mas realmente cabe uma investigação.”

Os pregões analisados pela Mongabay foram vencidos por um total de 30 fornecedores. Alguns deles trabalham com marcas próprias, enquanto outros se comprometeram a entregar produtos de outras marcas. Entre os fornecedores com os maiores volumes de entrega estão as empresas Maxigiro Comércio de Alimentos, Pommar Comércio De Alimentos, Distrasul Comercio e Representação e Burlani Comércio de Carnes, todas de Porto Alegre, além da Comprandomais Comércio De Pescados, com sede em Balneário de Piçarras, em Santa Catarina.
Por WhatsApp, um funcionário da área de licitações da distribuidora de alimentos Maxigiro afirmou que faz muito tempo que a empresa não trabalha com peixes (leia a íntegra da resposta aqui). A Mongabay também conversou por telefone com um dos sócios da Pommar, que disse que a empresa não trabalha com peixe-anjo há cerca de dois anos. Distrasul, Burlani e Comprandomais não responderam aos contatos da Mongabay.
Entre as marcas mais citadas nos editais estão as gaúchas Frumar Frutos do Mar, Burlani Comércio de Carnes e Costiero; as catarinenses Costa Sul Pescados e Atlântico; e a empresa Great Food (Vivenda do Camarão), de Cotia, em São Paulo.
A Frumar, que se autointitula “a maior indústria de salmão e frutos do mar no Brasil”, foi apontada pelos vencedores de quase metade dos pregões como uma das possíveis marcas a serem fornecidas. Em 2019, a empresa foi multada pelo Ibama em R$ 6 mil por ter em depósito 11,8 kg de filés de tubarão-anjo. A empresa não respondeu aos questionamentos da Mongabay.
A reportagem enviou perguntas sobre a origem do tubarão-anjo a todas as empresas, com a exceção da Atlântico, com a qual não foi possível entrar em contato. A Costa Sul e a Great Food (Vivenda do Camarão) informaram que não trabalham com peixe-anjo (leia a íntegra das respostas aqui e aqui). Burlani e Costiero não responderam aos questionamentos da reportagem.
Segundo especialistas, uma das dificuldades de rastrear a origem dos pescados no Brasil é a falta de padronização na rotulagem dos produtos. Em 2024, um estudo publicado na revista Biological Conservation identificou 237 rotulagens incorretas em produtos marinhos vendidos no país. Ainda segundo os pesquisadores, 64 das 203 espécies de raias e tubarões brasileiras estão sendo comercializadas, na maioria das vezes sob o termo genérico “cação.”
Outros dois estudos (de 2018 e 2021) baseados em análises genéticas de pescados vendidos em diferentes estados brasileiros identificaram as espécies S. occulta e S. guggenheim sendo vendidas com esta mesma identificação. “Tem tubarões de várias espécies sendo vendidos como cação”, disse Roberta Aguiar dos Santos Aguiar dos Santos, do ICMBio. “A rotulagem deveria ser uma questão prioritária para a gente resolver.”
Desde 2020, os nomes permitidos para cada espécie de pescado são definidos por uma instrução normativa do Ministério da Agricultura e Pecuária (Mapa), que determinou os termos cação-anjo, cação-anjo-espinhoso e cação-anjo-liso para as espécies do gênero Squatina. A regra, no entanto, não é seguida nem mesmo pelos órgãos públicos, como mostra o levantamento da Mongabay nos editais gaúchos — os documentos usam o termo “peixe-anjo” e não os nomes previstos na instrução normativa.
A reportagem questionou o Mapa sobre as possíveis consequências do descumprimento da instrução normativa, mas não obteve retorno.
Soma-se a isso o desafio de identificar a espécie depois que o peixe tem as nadadeiras e a cabeça cortadas e é fracionado em postas ou filés. “A descaracterização do animal é a palavra de ordem dos criminosos”, disse Bonilha, do Ibama de Porto Alegre. Muitas vezes, a única alternativa dos agentes ambientais é fazer um teste genético que demora cerca de trinta dias para ficar pronto — segundo Silva, do MMA, em breve o Ibama vai dispor de um equipamento que faz essa análise em até duas horas.
A maior demanda da equipe de fiscalização, no entanto, são ferramentas que aumentem a transparência sobre o comércio de pescados no Brasil. “A gente tem reclamado da necessidade de um sistema que forneça ao órgão de controle e ao cidadão essa rastreabilidade”, disse Silva. “Porque hoje, ninguém tem.”
Enquanto isso, segundo ele, é bem provável que consumidores e órgãos públicos continuem comprando peixe-anjo capturado ilegalmente. “Na dúvida, não adquira espécie ameaçada”, ele disse. “A probabilidade de que seja ilegal já é iminente.”
Leia também: Tubarões ameaçados viram merenda ‘contaminada’ nas escolas públicas do Brasil
As prefeituras de Camaquã, Taquari, Esteio, Santa Cruz do Sul, Salvador do Sul e Gramado não responderam aos questionamentos da Mongabay.
Alto Feliz
A Nutricionista Cristina Weissheimer Luft, responsável por montar o cardápio da merenda das escolas municipais de Alto Feliz, informou por email que, nos últimos três anos, foram consumidos 943 kg de peixe-anjo e que não tinha conhecimento de que se tratava de uma espécie ameaçada de extinção. Por telefone, a profissional informou que não serão feitas novas aquisições do pescado. Leia a íntegra da resposta aqui.
Alvorada
A Prefeitura de Alvorada informou que a aquisição de peixe-anjo ocorreu há 10 anos e não teve a participação da atual gestão. Ressalta que, desde o início da atual administração, não houve nenhuma aquisição de espécies ameaçadas de extinção. Leia a íntegra da resposta aqui.
Dois Irmãos
A prefeitura esclarece que o edital previa três tipos possíveis de peixe (anjo, panga ou polaca), e que a espécie adquirida foi a polaca. Segundo a administração municipal, os gestores não tinham conhecimento de que “a nomenclatura comercial ‘peixe-anjo’ ou ‘cação-anjo’ estava relacionada a espécies listadas como ameaçadas de extinção”. Leia a íntegra da resposta aqui.
Fazenda Vilanova
A nutricionista responsável técnica pela alimentação escolar de Fazenda Vilanova, Clarice de Fátima da Rosa, informou que peixe-anjo foi mencionado no edital “por se tratar de uma designação genérica frequentemente usada no comércio regional para identificar determinados tipos de peixe com carne branca e sem espinhas aparentes, voltados ao consumo infantil”, e que sua equipe não tinha conhecimento de que se tratava de uma espécie ameaçada de extinção. Apesar de a prefeitura ter orçado o peixe-anjo em dois pregões, Rosa afirma que até o momento nenhuma compra foi efetuada. Leia a íntegra da resposta aqui.
Governo do Rio Grande do Sul
O governo gaúcho destaca que a importação de peixe-anjo é permitida e que no momento não há edital aberto para compra do pescado. Ainda assim, o governo diz que “orientará todas as suas unidades para que retirem a espécie dos editais de compra, substituindo por outra espécie de peixe não ameaçada”. Leia a íntegra da resposta aqui.
Gravataí
A prefeitura de Gravataí explica que a escolha pelo peixe-anjo se deve ao fato de ser um peixe sem espinhos, mais adequado ao consumo por crianças e idosos. A administração municipal informa que “não há uma proibição geral da pesca do peixe-anjo, mas sim regulamentações, e seguirá acompanhando em caso de necessidade de adequações nos pedidos de compras dos setores das secretarias”. Leia a íntegra da resposta aqui.
Palmares do Sul
A prefeitura de Palmares do Sul afirma que até o momento efetuou uma compra de peixe-anjo, por ser “um tipo de peixe já aprovado pelos alunos” e com disponibilidade de fornecimento. A prefeitura destaca que o Programa Nacional de Alimentação Escolar não prevê nenhuma proibição para a compra deste alimento, mas que não vai realizar nenhuma nova compra do produto. Leia a íntegra da resposta aqui.
Porto Alegre
A coordenadora da Unidade de Alimentação Escolar da Prefeitura de Porto Alegre disse por email que o peixe-anjo não integra as compras da prefeitura desde o final de 2021. Já a assessoria de imprensa da prefeitura informou que o executivo municipal não realiza a compra de peixe-anjo, e que o item que “inclusive se encontra desativado no sistema do município”. Leia a íntegra da resposta aqui.