Usados em rituais pelos antepassados do povo Tupinambá, os mantos sagrados produzidos com penas de aves se perderam no tempo e hoje sobrevivem como peças de museu na Europa.
Um desses mantos, atualmente na Dinamarca, voltará ao Brasil. Enquanto isso não acontece, a artista e ativista Glicéria Tupinambá decidiu ela mesma voltar a confeccioná-los.
São chamados de Encantados as entidades ancestrais que fazem a ponte entre o mundo terreno e o mundo espiritual entre vários povos indígenas. Alguns dos contatos se dão a partir de sonhos, liturgias e danças, mas, para isso acontecer, é preciso existir uma conexão genuína, uma predestinação. Por exemplo: na mudança de estações, geralmente um pajé ou cacique entra em contato com esses seres místicos para receber provisões, informações sobre como será o ano para cada aldeia, como vão estar as estrelas.
Essa troca com o sagrado funciona para questões cotidianas de cada povo, como nortear as lideranças em decisões importantes e receber informações sobre como será o ano para cada aldeia, por exemplo. Mas não só.
Há alguns anos, a artista e ativista indígena Glicéria Tupinambá recebeu, em sonho, um chamado dos Encantados para resgatar um manto de seu povo com mais de 400 anos de idade. A peça estava na reserva técnica de um importante museu francês, portanto não seria possível trazê-la de volta ao país. Mas havia um outro caminho a ser tomado.
“Em 2018, com a visita à reserva do Museu do Quai Branly, em Paris, eu tive acesso ao manto, e o manto falou comigo”, conta Glicéria em entrevista à Mongabay, sobre o acontecimento que a guiou até a vontade dos Encantados.
“Então Ele [o manto] mostrou essa dimensão da feitura do manto por mãos de mulheres. As mulheres sendo portadoras do próprio manto. A partir daí, eu começo a confeccionar um manto em 2020, para o cacique Babau. Um manto autorizado pelos Encantados”.
Este primeiro manto, feito sob medida para Babau Tupinambá, seu irmão e cacique da aldeia Serra do Padeiro, no sul da Bahia, representa não só a renovação ancestral da cosmologia indígena e da tradição da indumentária sagrada como também um novo olhar acerca do pertencimento, da identidade e da luta do povo pela preservação de sua cultura.
Cerca de 11 mantos sagrados tupinambás, usados antigamente em rituais, sobreviveram ao longo dos séculos — todos curiosamente conservados em museus europeus. A maioria é datada do século 16, embora não haja hoje um consenso acerca de uma data cravada da fabricação destas peças.
O mais famoso deles é um exemplar vistoso, feito com penas vermelhas de guará, que mede cerca de 1,80 metro e está no Museu Nacional da Dinamarca, em Copenhague. Segundo constam os registros, desde 1689.
Em julho de 2023, em uma ação inédita protagonizada por ativistas indígenas, entre eles Glicéria Tupinambá, e intermediada pelo Consulado Brasileiro em Copenhague, a direção da instituição dinamarquesa anunciou a devolução do manto rubro para o Museu Nacional, no Rio de Janeiro – aquele que teve seu prédio histórico destruído por um incêndio em 2018.
Enquanto a peça histórica não chega, Glicéria Tupinambá recebeu um outro chamado dos Encantados. “Em 2021, a gente conseguiu confeccionar um outro manto, com uma outra roupagem, que é um manto feminino. Ele traz mais forte a presença das mulheres que foram portadoras desse manto [no passado]”, conta a ativista.
No ano seguinte, por meio de um projeto aprovado pela Funarte, a peça seguiu um caminho itinerante no país, passou por cidades como Brasília e Porto Seguro e depois retornou para a aldeia de Glicéria e Babau, na Terra Indígena Tupinambá de Olivença, município de Buerarema.
A itinerância do manto
Esse segundo manto confeccionado por Glicéria circulou por São Paulo no segundo semestre de 2023. Na cidade mais populosa do país, a indumentária passou por instituições importantes, como os museus Casa do Povo e Instituto Moreira Salles, universidades como a PUC e chegou até a permanecer por alguns dias na reserva Guarani que há na região do Jaraguá, no extremo norte da cidade.
No Museu de Arte de São Paulo Assis Chateaubriand, o Masp, o manto de Glicéria fez parte da exposição coletiva Histórias Indígenas, a maior empreitada do museu paulistano com obras de representantes de povos originários do mundo todo.
Para Edson Kayapó, curador-adjunto de arte indígena do Masp, o manto de Glicéria representa um marco por transcender a seara artística e dialogar diretamente com a ancestralidade.
“O manto tupinambá é um elemento muito importante da cultura, por se tratar de uma produção dos antepassados. No caso do manto de Glicéria, acontece um diálogo com o tempo”, diz o curador. Para ele, a artista “pressupõe que o manto renova a tradição indígena”.
“É uma obra produzida por técnicas artísticas que são do nosso tempo, mas que dialogam diretamente com a ancestralidade e com a própria produção dessa arte naquele tempo em que foi produzida, provavelmente no século 16 ou 17”, observa.
Glicéria concorda: “Para algumas pessoas, [o manto] é visto como arte, mas para a gente é um ancestral e ele tem uma questão a falar, a mostrar sua presença. O Tupinambá que fez o manto original tem mais de 400 anos, então a primeira pessoa a fazer, a conceber esse manto, ele está [se manifesta] pelas minhas mãos. O manto vem desse lugar coletivo, dessa cosmo-técnica”, completa a artista.
Feito com uma variedade de penas de aves terrestres e domésticas, como frangos, perus, galinhas, galos, patos e gansos, o novo manto de Glicéria Tupinambá também ganhou penas de araquãs, canários da mata, sabiás-bico-de-ferro, sabiás-laranjeira, gaviões preto e araras.
“Não é uma relação de uma pessoa, tem toda uma complexidade relacionada ao território”, explica Glicéria. “Está relacionado à natureza, ao espaço, à doação das penas, às crianças, às mulheres, aos jovens, ao todo da comunidade. É um pensamento para além da arte, então a gente tem uma concepção de discussão, de botar para as pessoas pensarem que lugar é esse da memória dos povos Tupinambá.”
Foram quase duas décadas de processo, entre o primeiro chamado dos Encantados, em 2006, e a concepção do manto do cacique Babau e o manto feminino. Nesse meio tempo, discussões sobre o território do povo Tupinambá avançaram e Glicéria se tornou uma das vozes mais ativas na luta pelos direitos dos povos indígenas.
O novo manto tupinambá circula até fim de janeiro e volta à aldeia para se preparar para uma nova viagem. Em abril, Glicéria conta que a peça vai à Bienal de Veneza, na Itália, maior evento de arte europeu, que homenageia o Brasil em sua 60ª edição. No vaivém entre continentes e travessias atlânticas, é firmado um diálogo com o passado e a reconstrução do presente e do futuro ancestral.
Leia também: Primeira rede audiovisual de mulheres indígenas do país quer fazer das câmeras ferramenta de luta
Imagem do banner: Cena do filme Quando o Manto fala e o que o Manto diz, de Glicéria Tupinambá e Alexandre Mortagua.