O Vale do Catimbau, no sertão de Pernambuco, é uma das áreas de maior biodiversidade da Caatinga e também um tesouro arqueológico, com o segundo maior conjunto de inscrições rupestres do Brasil.
É também território sagrado e ancestral dos Kapinawá, povo que se descobriu indígena em meados dos anos 1970 em meio a uma guerra contra grileiros.
Parte do território Kapinawá se tornou Terra Indígena, mas uma área foi sobreposta ao Parque Nacional do Catimbau, criado em 2002; os que ali vivem reclamam das inúmeras restrições a que são submetidos.
Enquanto lutam para recuperar suas terras, os Kapinawá fazem da Caatinga um laboratório para experimentos em agroecologia, que combinam preservação da biodiversidade e produção alimentar.
BUÍQUE, Pernambuco – Jurema no sertão é árvore tenaz: quando se acha que morreu, rebrota. Pode-se cortar, derrubar, queimar, roçar; na primeira trovoada, as folhas rasgam de novo o solo em busca da luz.
Mesma coisa os Kapinawá, povo que tem na jurema o mais sagrado dos vegetais, ponte cósmica entre os de cá e os encantados. Também eles, quando se acreditava extintos, ressurgiram.
“E quando ela [a jurema] nasce, os galhos dela são muito mais fortes”, sublinha Mocinha Kapinawá.
Aconteceu no tempo do Corte dos Arames. Quando Maria Bezerra da Silva, hoje liderança na aldeia Mina Grande, era de fato moça. Adolescente ainda, mas já na linha de frente na luta contra o coronel Romero Maranhão e seus grileiros.
Conta Mocinha que, desde meados dos anos 1970, os moradores da Mina Grande, hoje a maior aldeia do território Kapinawá, vinham sendo pressionados pela ofensiva de fazendeiros interessados em tomar as terras da região. “Por causa da riqueza que nós temos aqui, que é a água.”
De fato: o território Kapinawá coincide, em termos geográficos, com o do Vale do Catimbau, ponto privilegiado no interior de Pernambuco, onde o agreste vira sertão, cujo emaranhado de serras armazena abundância de mananciais – água de excelente qualidade, que brota nos sopés, irriga a vegetação e dá de beber a quem dela precisar.
Pois foi nos arredores da Mina Grande – cujo nome não é à toa – que as famílias começaram a assistir ao avanço de cercas de arame sobre suas roças, pastos e matas, sob alegação de que aquelas eram terras “devolutas”. Zuza Tavares, líder dos grileiros e também sogro do prefeito de Buíque, encarregava-se de forjar as escrituras na prefeitura. “Aí começou o sofrimento”, diz Mocinha.
E começou porque os Kapinawá não aceitaram aquelas cercas: de modo sistemático, puseram-se a cortar e queimar todo arame que se levantasse em suas terras. Em represália, os fazendeiros respondiam com ameaças de morte, casas derrubadas e roças queimadas. Em 1981, na vila do Catimbau, próxima à Mina Grande, chegou a haver uma troca de tiros com os jagunços a serviço dos grileiros, resultando na morte de dois deles.
Isso aconteceu na mesma época em que os Kapinawá estavam se descobrindo indígenas. Antes disso, haviam se acostumado a ser chamados de “caboclos” – que no sertão é a designação genérica e depreciativa para a população autóctone cuja ascendência se ignora –, e assim acreditaram ser até que um documento assinado pela princesa Isabel provou o contrário.
Na mesma década de 1970, um grupo de aldeados da Mina Grande fora trabalhar na construção da BR-110 em Ibimirim, terra dos Kambiwá. Foram esses que mencionaram a existência de uma escritura imperial, datada de 1874, cujo texto falava da doação de terras aos moradores da aldeia de “Macaco dos Índios”, em agradecimento pela participação na Guerra do Paraguai.
Pois Macaco não só é o nome de uma das aldeias mais antigas do território Kapinawá como o documento também esmiuçava todos os limites das terras doadas, incluindo o nome das famílias beneficiadas – que os Kapinawá reconheceram como seus antepassados. Pesquisas complementares revelaram que a aldeia de Macaco já era conhecida desde o século 17 como morada de indígenas, referidos como Paratió (ou Prakió), aparentados com os Kambiwá.
Tudo levou a crer, portanto, que esses Paratió eram os mesmos Kapinawá de hoje, esquecidos de seu passado e – mais importante – alienados do fato de que eram donos de direito daquelas terras, com a benção do imperador.
Como a jurema, os Kapinawá rebrotaram com força redobrada no chão da Caatinga, já não mais como caboclos, porém indígenas. Renascidos, deram-se novo nome, revelado em ritual pelos encantados, cujo significado seria “capim e água” – dois recursos que existem em abundância no território.
O parentesco e a proximidade com os Kambiwá ajudaram, tanto que dois deles acabaram se tornando mestres dos Kapinawá em sua jornada de autorreconhecimento. Dôca e Zé Índio foram os primeiros cacique e pajé dos Kapinawá, encarregados de reensinar práticas havia muito esquecidas – entre elas o toré.
O toré é um ritual comum a vários grupos indígenas do Nordeste brasileiro e se fundamenta no consumo do anjucá, o “vinho da jurema”, bebida sagrada cujo poder mágico leva as pessoas ao transe e ao contato com os encantados – forças espirituais ligadas aos ancestrais e à natureza. “A jurema é uma mãe pra gente”, resume Mocinha.
Sabendo-se indígenas, e fortalecidos pelo toré, os Kapinawá se lançaram a um conflito que durou três anos, com repetidos cortes de arame. Sempre que os grileiros levantavam uma cerca, as famílias da Mina Grande não tardavam em derrubá-la.
“A gente dançava o ritual à noite e saía com foice às 3 horas da manhã pra cortar o arame. Ia criança, idoso, todo o mundo. Depois queimava”, diz Mocinha. “Pra resumir, foi cortado o arame sete vezes. Com a força dos encantados, a gente conseguiu.”
Os de dentro e os de fora
No último corte de arame, os fazendeiros desistiram. Para os Kapinawá, começou uma nova luta, a de reconhecimento como indígenas e legalmente donos de seu território por parte das autoridades – um longo processo que só se materializou em 1998, quando a Terra Indígena Kapinawá foi finalmente homologada, com 12.260 hectares de área.
A reserva, hoje com 14 aldeias, corresponde mais ou menos à extensão das terras doadas pelo Império em 1874, delimitadas pelos riachos do Macaco ao sul e do Catimbau ao norte. A questão é que havia também aldeias Kapinawá para além do Riacho do Catimbau, ainda mais ao norte – que ficaram de fora da Terra Indígena.
“O cacique da época não levou em conta as famílias que estavam espalhadas do lado de cá”, conta Socorro Kapinawá (de sobrenome Silva França), liderança da aldeia Malhador, a maior da chamada Área Nova.
Como a jornada de reconhecimento de indianidade se concentrou na Mina Grande e nas aldeias adjacentes, onde também a luta por território foi mais violenta, o que se conta é que as comunidades ao norte do Riacho do Catimbau ficaram um tanto alheias a esse processo. No momento de demarcar a Terra Indígena, nem todas quiseram se envolver.
“É meio complicado falar isso, mas quando vieram fazer a demarcação teve aldeia que não quis participar”, revela Mocinha.
O antropólogo José Augusto Laranjeiras Sampaio, conhecido como Guga, conselheiro-diretor da Anaí (Associação Nacional de Ação Indigenista) e professor na Universidade do Estado da Bahia (Uneb), acompanha de perto os Kapinawá desde o tempo do Corte dos Arames.
Ele confirma a fala de Mocinha: “Quando foram fazer o estudo da terra, não era toda comunidade que se sentia à vontade de se submeter à Funai. E como essas comunidades não estavam sendo ameaçadas, a Funai deixou de fora.”
Não que elas também não vivessem seu próprio inferno fundiário. As terras ali, consideradas devolutas, haviam sido tituladas por usucapião a particulares e então vendidas a fazendeiros. Muitas famílias Kapinawá foram expulsas nesse processo, outras se tornaram inquilinas dos territórios ocupados e algumas poucas resistiram, confinadas a uma dúzia de aldeias.
Quando essas aldeias decidiram também lutar por seu território, já era tarde: apenas quatro anos depois de homologada a reserva indígena do lado de lá do riacho, a Área Nova foi convertida em parque nacional.
Uma grande lousa de pedra
Não eram poucos os motivos para a criação do Parque Nacional do Catimbau, em 2002. Esta é uma das áreas de maior diversidade biológica e geológica da Caatinga: um conglomerado de serras, vales, desfiladeiros, cavernas, chapadas e formações rochosas onde crescem 613 espécies de plantas – incluindo enclaves de Cerrado, matas úmidas e campos rupestres. Ao menos 192 espécies de aves foram registradas aqui, além de alguns répteis endêmicos.
Além disso, a paisagem do Catimbau – de grande beleza, por sinal – vem sendo lugar de pouso e passagem para povos originários há pelo menos 6 mil anos, conforme atestam as numerosas ossadas e registros lavrados em pedra por toda a região.
O Parque Nacional do Catimbau tem a segunda maior concentração de pinturas rupestres do Brasil – 64 sítios arqueológicos catalogados –, atrás apenas da Serra da Capivara, no Piauí. Uma grande lousa de pedra que Ronaldo Kapinawá conhece muito bem.
“O parque nacional foi meu parque de diversão na infância”, diz Ronaldo Siqueira, filho de Socorro, guia turístico e arqueólogo formado pela Universidade Federal do Cariri, onde foi estudar a versão oficial da história dos povos originários para então voltar para casa e reescrevê-la segundo a versão Kapinawá.
“Tá vendo esse desenho aqui, que os arqueólogos interpretam como palma da mão?”, diz Ronaldo, apontando no celular uma das pinturas rupestres presentes no parque. “Pra mim é outra coisa”, ele assegura, e então levanta os olhos para a visão panorâmica do vale que se desdobra a seus pés. “Olha aí na paisagem essas palmeiras. Vê se essa pintura não é um conjunto de babaçus? Não tem nada a ver com mão humana. Tanto que o dedão nem aparece.”
Para Ronaldo Kapinawá, os “letreiros” do Catimbau – como são chamadas localmente as inscrições rupestres – são mapas topográficos que os povos de passagem pela região desenhavam para indicar a presença de água, frutos e caça. Cada imagem, um sinal: palmeiral, leito de rio, formação rochosa.
“Já é o quarto mapa que eu consigo identificar aqui no vale”, ele diz, mostrando mais um sítio arqueológico no celular, com a certeza de quem é íntimo tanto do território onde nasceu quanto da arte que foi ali inscrita, possivelmente deixada pelos seus ancestrais. “Eu tenho essa visão porque meu olhar é nativo. Eu sou um historiador da minha própria história.”
“E eu tenho um grande professor, que me diz o que cada desenho significa”, revela Ronaldo, um tanto enigmático. “É o tronco velho dos Kapinawá, todos aqueles que já se foram e deixaram registrada sua história. Bisavôs, tataravôs, eles estão aqui espiritualmente, eles guardam esses sítios. Pra mim é como ler um livro que eles escreveram.”
No entanto, apesar de toda a evidência de continuidade da presença de povos originários no vale, nem um único indígena foi consultado quando o Governo Federal decidiu destinar 62.300 hectares para a criação de um parque nacional.
“E aí a gente foi pra luta, né?”
“O Parque Nacional do Catimbau foi criado sem nenhum trabalho de campo. Foi criado com foto aérea”, diz o antropólogo Guga Sampaio. “Isso é muito comum no Brasil: você vê de cima que tem pouca gente morando e cria ali um parque nas áreas que as comunidades tradicionais preservaram. Aí você remove quem preservou.”
E houve mesmo a tentativa de remoção das 45 famílias que habitavam a área na época pelos órgãos competentes (primeiro o Ibama, depois o ICMBio), inclusive durante o governo Lula, com direito a diversas reuniões de intimidação com as autoridades.
Eram seis as aldeias Kapinawá que se viram inteiramente dentro do parque, além de outras seis que ficaram numa zona intermediária entre a Terra Indígena e o parque nacional, fora de ambos, mas que usavam o perímetro deste para caça, criação de cabras e coleta de frutos. No total, 147 famílias foram afetadas.
“A gente estava bem quietinho e de repente aparece aí um parque nacional sem nos consultar”, conta Socorro Kapinawá, sentada na varanda de sua casa, na aldeia Malhador, de frente para uma vasta área de Caatinga que ela mesma vem cuidando de preservar.
“E a gente sofreu muita pressão na época. O representante do Ibama veio pra cima da gente e disse: ‘vocês vão sair daqui’. E aí a gente foi pra luta, né? Procurou os órgãos que podiam nos defender e nos ajudar.”
Entre esses órgãos estavam o Conselho Indigenista Missionário (Cimi) e a Associação Nacional de Ação Indigenista (Anaí), esta na figura de Guga Sampaio, que teve papel crucial ao intermediar o processo de autoidentificação das comunidades como indígenas junto à Funai, duas décadas depois do pessoal da Mina Grande.
“Só quando o parque foi criado, com restrição de uso, que as comunidades falaram: ‘a gente aqui é indígena’”, lembra Guga, justificando a demora em relação aos outros Kapinawá: “Ser indígena no Brasil é difícil, você sofre pra diabo. Pra você dizer que é indígena tem que ter um bom motivo. Ou seja, quando está ameaçado.”
O reconhecimento chegou, mas a luta não parou. Ganhou inclusive ares de guerra quando, em 2011, os Kapinawá souberam que a sede de uma fazenda dentro do parque nacional seria transformada em pousada. Lideradas pela aldeia do Malhador, famílias de quase todas as 26 aldeias Kapinawá marcharam até a casa-grande e tomaram posse dela, num processo que ficou conhecido como Retomada.
O que se estabeleceu de lá para cá, e se mantém até hoje, foi um acordo de convivência entre os indígenas e a gestão do parque nacional, a cargo do ICMBio – ressalvadas, é claro, as restrições que por lei se aplicam a qualquer Unidade de Conservação de Proteção Integral. E é por causa delas que a tensão persiste.
Tem um parque no meio do caminho
“Pra tudo a gente tem que pedir permissão a eles”, reclama Socorro Kapinawá. “Não pode botar energia em casa sem antes pedir ao gestor do parque nacional. Não pode cavar poço. Não pode retirar material pra ajeitar as estradas. A gente tem um material de primeira aqui, que é a piçarra [um tipo de cascalho], que a água não arrasta. É muita areia aqui, não dá pra trafegar. Mas eles não deixam.”
E ela continua: “se a gente precisa de madeira pra ajeitar uma cerca, construir uma casinha, tem que pedir permissão pra tirar no vale. Mas a gente conhece a Caatinga e sabe qual é a árvore que brota novamente depois que corta, que tem esse poder de regeneração. Tem o angico, a catingueira, a sacatinga, o bálsamo… Eles querem impedir que a gente faça uma coisa que a gente sabe como fazer, e que vem preservando há tanto tempo.”
A essas queixas, Jailton Fernandes, chefe do Parque Nacional do Catimbau desde 2021, responde dizendo que “a gente não se opõe ao reparo nas estradas. O problema é que eles querem tirar de dentro do parque. Vai alterar a paisagem. Precisa ter um projeto pra gente autorizar”.
Sobre a retirada de madeira, diz Jailton que “não tem problema coletar dentro da própria área. A gente não proíbe. Eles sabem como fazer, deixam regenerar. Se não tem dano ambiental, a gente autoriza. O que não pode é desmatar e vender o material.”
E, de fato, tanto Socorro quanto Jailton concordam que há casos de retirada criminosa de madeira de dentro do Catimbau. “Os índios inclusive comunicam quanto tem infração ambiental”, diz o chefe do parque.
Mas Socorro pede mais: “Queríamos formar uma parceria pra defender a Caatinga, pegar o pessoal que corta madeira, pega passarinho pra vender, mas eles não fiscalizam. Jailton argumenta que “somos só dois funcionários efetivos aqui – e eu sou um deles.”
Para Socorro, porém, o mais doído é a restrição de acesso a lugares que os Kapinawá têm como sagrados. Jailton sustenta que os indígenas são livres para circular pelo parque, mas Socorro insiste que “existem muitos lugares que a gente não pode ir mais porque virou lugar turístico. A gente agora tem que ir como turista, e não como filho da terra.”
Um desses lugares é o Santuário, um anfiteatro natural em arenito esculpido por água e vento que, segundo Socorro, é “morada dos encantados, um local muito sagrado”. E, como esse, “existem muitos locais que hoje são rota de turistas que sempre foram sagrados. E sempre serão. Só que a gente não pode mais andar por lá. Não pode mais ir fazer um ritual. Tem que olhar de longe, só com vontade de fazer”, ela diz, com os olhos em lágrimas.
Mestre Aroeira, Mestre Angico, Mestre Jatobá
Porque, acima de tudo, o Vale do Catimbau é território sagrado para os Kapinawá.
“É nas matas que vivem os encantados”, explica Mocinha. “Quando a gente precisa se fortificar, a gente bota o pé na terra. Vai pra mata pedir força aos nossos ancestrais.”
Um toré regado a vinho de jurema quase sempre acontece na oca central das aldeias, mas é comum que seja feito também no meio da Caatinga – sobretudo se envolver um ritual de cura – ou dentro das muitas cavernas que se espalham pelo Vale do Catimbau.
Essas cavernas os Kapinawá chamam de “furnas”, a maioria forrada de registros rupestres – para os indígenas, prova inequívoca de que seus antepassados passaram por lá (e, de fato, foram encontrados muitos enterramentos ali). “Esses lugares nos dão força. É lá que estão nossos ancestrais”, diz Ronaldo.
Ancestrais esses que, segundo os Kapinawá, se encantaram e foram habitar o reino mágico do Juremá para então descer de volta à terra quando convocados por meio do transe da jurema, quando se manifestam como “caboclos” ou “mestres”. Mestres esses, como explica Ronaldo, que são a própria personificação das árvores da Caatinga: Mestre Aroeira, Mestre Angico, Mestre Jatobá…
Em terras Kapinawá, a Caatinga é alimento que fortalece corpo e espírito. Quando não são os encantados, é a própria carne dos frutos e a nervura das folhas que serve de sustento, alicerce e cura. Sobretudo em tempos de escassez.
Tome-se como exemplo o ouricuri (Syagrus coronata), “nossa mãe de leite”, segundo Mocinha. “A gente usa pra tudo.” Do coquinho dessa palmeira nativa, tira-se leite e óleo. Do tronco, o palmito e o bró, um tipo de farinha. Da palha, o teto das ocas e o chapéu tradicional Kapinawá. Da raiz, um chá medicinal para tirar dor das costas. “Uma das plantas mais sagradas que tem para gente é o ouricuri”, resume Socorro.
E há outras: caroá, bacupari, cambuí, maçã-do-mato, aroeira, sacatinga, baraúna – frutas de comer, palhas de trançar e ervas de curar que só a Caatinga dá. “Tem mais de dez anos que não vou ao hospital. Minha cura está aqui, com os encantados e as plantas da Caatinga”, diz Ronaldo.
Claro está, portanto, que os Kapinawá não vão desistir tão cedo deste território que é templo, despensa e farmácia. “A gente só quer ter livre arbítrio de viver nos nossos espaços, de poder usufruir da nossa terra sem que eles estejam no nosso pé”, diz Socorro. “A gente está no que é nosso, eles é que chegaram depois.”
“Tem um processo encalhado na Funai”, conta o antropólogo Guga Sampaio, que está acompanhando de perto a luta Kapinawá. “A solução que está sendo dada é o que chamam de dupla afetação“, ele explica. “Para não ter que desconstituir um parque nacional, você estabelece uma Terra Indígena na forma de gestão compartilhada.”
Guga diz que o modelo foi inicialmente adotado na Ilha do Bananal, em Tocantins, hoje tanto Parque Nacional do Araguaia quanto Terra Indígena Inãwébohona, onde vivem os Karajá e os Javaé. Mesma coisa em Roraima, onde a Terra Indígena Raposa Serra do Sol se sobrepõe ao Parque Nacional Monte Roraima. “E tem dado certo aqui no Monte Pascoal, onde vivem os Pataxó”, diz Guga.
No Catimbau, ele argumenta, “como a gente sabe que a demarcação vai demorar, a gente vê que os esforços de convivência estão indo bem. O que eles [a gestão do parque] têm feito é colocado os Kapinawá como guias, como responsáveis pela preservação”.
Jailton, o chefe do parque nacional, acrescenta que “no novo plano de manejo, que deve sair este ano, vai se definir essa convivência. Índios e parque têm o mesmo objetivo, que é a preservação.”
A folhinha da jurema
Pois é isso que os Kapinawá estão fazendo. Enquanto a lei não lhes concede a terra que é de direito – e enquanto os poucos funcionários do parque não dão conta de mantê-la –, eles mesmos decidiram cuidar do Catimbau.
Ronaldo começou recuperando uma área degradada deixada pelo avô há dez anos. Socorro se ocupa em coletar sementes. “Peguei mania”, ela diz. “Onde eu passo, se eu vejo uma semente, eu vou lá e apanho. Quando chego em casa, já vou logo colocando num vasinho.”
E são infinitos os vasos na varanda de Socorro, cujas mudas um dia serão árvores como as que já crescem no quintal, entre elas um angico, um mandacaru e um jucá de seis anos onde “já dá pra sentar na sombra”. “Quando vi que tinha um terreiro tão grande em casa, decidi que ia começar a recaatingar por aqui.”
Recaatingamento é o nome que se dá a uma série de práticas que buscam recuperar a Caatinga em áreas onde está degradada – protegendo-a dos rebanhos, reflorestando e, como se diz por aqui, “plantando água”. “A gente faz pequenas contenções onde essa água vai ser armazenada e voltar para o solo, irrigando os lençóis freáticos”, explica Ronaldo.
Tudo isso em meio a quintais produtivos – “a gente chama de agrocaatinga“, diz Socorro –, em que matas e roças agem em sinergia para incrementar a segurança alimentar, o que tem feito da aldeia do Malhador o maior laboratório de agroecologia do território Kapinawá.
Um centro de experimentos que tem como núcleo a escola indígena Saturnino Vieira de Melo, da qual Ronaldo é coordenador e onde dezenas de crianças aprendem a recaatingar elas mesmas o território Kapinawá. Do domo geodésico que serve de viveiro já saíram 2 mil mudas de ipê, imburana, jatobá e outras tantas espécies da Caatinga, doadas a famílias de todo o território para que as plantem em seus terrenos.
“Estamos passando para as crianças esses ensinamentos que vêm dos ancestrais”, explica Ronaldo. “Fazer isso reflorestando, recaatingando, plantando água. Criar esse elo das pessoas com o território.”
“A Caatinga tem um poder muito forte de regeneração”, observa Socorro. “Quando você acha que a árvore tá morta, dá uma chuvada e 15 dias depois você vê a força com que vêm as folhinhas novas. Como é que uma terra dessas é fraca?”
Ainda mais se for terra Kapinawá, povo juremeiro em que desde cedo as crianças são iniciadas não só nos cuidados da Caatinga como também na ligação com sua força mágica. “Até as crianças tomam o vinho da jurema”, diz Socorro. “Porque, para preparar os guerreiros de amanhã, tem que começar hoje, né? Em todo toré elas estão dentro.”
Mocinha confirma: “Nós somos semente de jurema”. E emenda com o canto que encerra todo toré, cuja melodia só não rasga sozinha o silêncio do terreiro central da Mina Grande porque subitamente o vento sopra e parece que todas as árvores resolvem cantar junto: “A folhinha da jurema/que o vento vai levando/vai levando e vai levando/e os caboclo acompanhando…”
Imagem do banner: Socorro Kapinawá na oca da aldeia Malhador. Foto: Rafael Martins/Mongabay