Cerca de 100 portos fluviais industriais foram construídos nos principais rios da Amazônia brasileira durante as duas últimas décadas. Muitos dos projetos foram financiados internacionalmente e construídos por empresas de commodities com pouca supervisão governamental. Estes portos têm transformado a região ao abrirem caminho para o agronegócio e a exportação de commodities, especialmente soja, para a China e o resto do mundo. Mas este boom na infraestrutura portuária muitas vezes veio em detrimento do meio ambiente e das comunidades ribeirinhas tradicionais. Hoje, mais de 40 grandes portos fluviais estão planejados para a Amazônia nos rios Tapajós, Tocantins, Madeira e outros — projetos que avançam em grande parte sem levar em conta os impactos socioambientais cumulativos. “Que recursos esses homens da soja trazem para nossa cidade?”, pergunta Manoel Munduruku, líder indígena. “Eles só trazem destruição”. Esta reportagem é uma parceria da Mongabay com o Diálogo Chino. Alessandra Korap Munduruku queria ser ouvida. Mas ela havia sido convidada para a audiência de agosto de 2020 apenas como observadora, sentada por horas em silêncio forçado, mesmo servindo como a única representante do povo indígena cujas terras, vidas e futuro seriam impactados por um porto fluvial proposto naquele pedaço da Amazônia. Somente advogados e funcionários do governo foram convidados a falar na audiência online realizada em meio à pandemia de covid-19 em que a juíza Sandra Maria Correia da Silva ponderou se deveria levantar uma suspensão na licença do porto, imposta anteriormente porque o projeto ainda carecia de uma consulta prévia com o Munduruku, o povo de Korap. Por quase uma década, a líder Munduruku vinha lutando sem sucesso contra a rápida transformação da cidade de Itaituba, no Pará, em um importante centro da cadeia global de fornecimento de commodities, e a conversão do Rio Tapajós em uma hidrovia industrial — um elo para o transporte de soja e milho do coração da Amazônia brasileira para a China, a União Europeia e outros países. Desde 2013, a comunidade viu múltiplos portos fluviais industriais serem construídos por gigantes transnacionais do agronegócio, transformando um rio que, durante séculos, foi navegado apenas por pequenos barcos e canoas Munduruku. Entretanto, nunca, durante o boom da construção, o grupo indígena foi formalmente consultado sobre os planos da indústria de commodities, o que os promotores consideraram uma clara violação da Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho, um acordo do qual o Brasil é signatário. Os novos portos tinham rapidamente transformado a cidade, já atormentada por grandes operações ilegais de extração de ouro, em um destino congestionado de caminhões carregados de mercadorias que muitas vezes entopem a BR-163 em engarrafamentos de quilômetros de trânsito. Chegando em Itaituba, essa carga é transferida para enormes barcaças para o trajeto descendente até navios com destino principalmente à China. A multidão de caminhoneiros que chega frequentemente atrai a prostituição e o comércio ilegal de drogas, enquanto as barcaças afetam a pesca no rio, empobrecendo os pescadores tradicionais. Após a intervenção de advogados simpáticos à causa Munduruku, Korap foi finalmente autorizada a falar. Ela contou ao tribunal como o porto proposto pela empresa Rio Tapajós Logística havia sido precedido por outros, e como ele provavelmente aceleraria a construção de uma grande ferrovia amazônica, e talvez até novas barragens para tornar um trecho maior do Tapajós navegável. A decisão atual, ela enfatizou, não dizia respeito apenas a um projeto, mas a um plano de desenvolvimento multifacetado para mudar o rio e a região e torná-la irreconhecível. “A gente sabe que esses projetos são ligados um no outro”, disse ela ao juiz. “Essas empresas que estão vindo estão nos matando, sufocando nossa cultura”. Mercado de peixe junto a terminal de soja da Cargill em Santarém (PA), próximo ao encontro dos rios Amazonas e Tapajós. Foto: Thaís Borges/Mongabay. De longe, Flávio Acatauassú, que dirige a Amport, a associação que representa a maioria das empresas que operam portos fluviais amazônicos, também estava observando o desdobramento do caso. Assim como Alessandra Korap, ele sentiu que o caso tinha implicações maiores do que apenas a aprovação de um porto. Ele argumentou que um resultado favorável ao porto no caso era vital não apenas para todas as empresas com planos de operar ao longo do Rio Tapajós, mas como um precedente assegurando a viabilidade de futuros investimentos em logística de transporte de mercadorias na bacia amazônica. Hoje, os cerca de 100 portos fluviais industriais privados da Amazônia são uma parte essencial e integral do corredor logístico de crescimento mais rápido no Brasil — movendo mercadorias de forma barata e rápida do interior do país para a costa atlântica para exportação, explicou Acatauassú. Os portos fluviais do norte, que movimentam cargas pelo Rio Amazonas e seus tributários, mais do que dobraram sua participação no mercado na última década. Somente no primeiro semestre de 2020, quase 20% da soja e do milho do país fluíram ao longo dos principais rios da bacia amazônica. Cerca de 40 projetos privados planejados, com investimentos de centenas de milhões de dólares, estão agora em jogo, com muitos previstos para ecossistemas sensíveis — lugares como a Ilha de Marajó, um delta na foz dos rios Amazonas e Tocantins, e o lago Maicá, rico em biodiversidade. Se fosse necessário o consentimento dos povos tradicionais para todos esses projetos, então “todos os investimentos na bacia amazônica iam morrer”, disse Acatauassú. Ainda assim, ele estava confiante de que as partes interessadas encontrariam um caminho a seguir. Em termos de logística, ele explicou, o agronegócio brasileiro “não tem mais para onde correr”.