Alessandra Korap é uma das principais lideranças femininas indígenas no Brasil. Apresenta-se como “guerreira” do povo Munduruku, porta-voz de 13 mil pessoas moradoras de comunidades na região do Médio Tapajós, no Pará.
Em setembro, esteve em Berlim para a Greve Global pelo Clima, onde apresentou o Protocolo de Consulta Munduruku ao Parlamento Europeu e discursou para 270 mil pessoas no Portão de Brandenburgo.
Nesta entrevista exclusiva à Mongabay, concedida em Berlim, ela fala sobre a situação das populações indígenas sob o governo Bolsonaro, o aumento das invasões em territórios ancestrais nos últimos meses e o protagonismo das mulheres na luta pela terra.
Desci da carona no mototáxi, meio de transporte que é parte do dia a dia em várias cidades na Amazônia, e fui ao encontro de dois meninos que me esperavam no portão de uma casa. Eles me conduziram por um caminho no quintal, entre trechos alagados pelas águas do Rio Tapajós. Era maio, época do inverno paraense, o que significa período de chuvas e de cheia dos rios. O termômetro marcava 35 graus. Me levaram até a mãe deles, Alessandra Korap Munduruku.
Poucas semanas antes, os três haviam se mudado da aldeia Praia do Índio, ponto vital de existência povo Munduruku, vizinho à cidade de Itaituba – um dos centros nervosos do agronegócio no país, onde se vê mais silos para estocagem de grãos do que floresta – para a cidade de Santarém, onde ela agora cursa graduação em Direito na Universidade Federal do Oeste do Pará (Ufopa). Alessandra e os meninos estavam ainda impressionados com o fato de que, na cidade, tudo se paga: água, comida, até para jogar no campo de futebol ao lado da casa. Pela primeira vez, estão vivendo separados de um modo de vida onde se produz e compartilha – não só alimentos, mas também decisões.
Quatro meses depois, em setembro, reencontrei Alessandra em Berlim, na Alemanha. Temperatura na casa dos 12 graus, ela mais séria, estranhando a comida alemã e na única pausa do dia de uma agenda cheia de encontros com parlamentares europeus. Mas sempre disposta a falar do povo Munduruku, hoje composto por cerca de 13 mil indivíduos, segundo dados do Ministério da Saúde brasileiro.
Era a segunda vez que nos encontrávamos, já que uns dias antes tínhamos dividido uma mesa de debate em um espaço de arte em Berlim, Savvy Contemporary. Ela tinha feito a plateia, de cerca de 120 pessoas, remexer-se na cadeira: ¨Para falar de queimadas, primeiro temos que falar de invasão, de agrotóxicos, de garimpo, da responsabilidade das empresas europeias e também de pesquisadores que entram nas nossas terras sem nossa autorização.¨
Naquela semana, ela discursou na Greve Global pelo Clima e apresentou o Protocolo de Consulta Munduruku ao Parlamento Europeu, expondo denúncias sobre violações de direitos enfrentadas pelos povos indígenas do Brasil. Alessandra Korap foi a primeira mulher presidente na Associação Pariri, que representa o povo Munduruku do Médio Tapajós, e é hoje uma das referências entre lideranças indígenas no país.
O hiato que separou nossos dois encontros deu o tom do quanto as questões ambientais no Brasil foram alçadas novamente ao debate internacional. Nesta entrevista, concedida em Berlim, ela fala sobre a situação das populações indígenas sob o governo Bolsonaro, o aumento das invasões em terras indígenas nos últimos meses e o protagonismo das mulheres na luta pela terra.
Na manifestação da Greve Global pelo Clima, 270 mil pessoas foram às ruas de Berlim, segundo dados da Polícia alemã. Você discursou no Portão de Brandemburgo para essa multidão. Que potencial você vê nessa mobilização e qual o papel das denúncias internacionais que têm sido feitas por diversas lideranças indígenas?
Aquele dia mostrou que a população alemã está interessada em ouvir e fazer algo. E que tem muita gente com a mesma vontade no mundo todo. Mas essa atenção toda sobre a Amazônia foi despertada pelas queimadas, pela imagem do fogo nas árvores. Nós, povos indígenas, estamos gritando sobre isso desde muito antes.
A atuação livre de empresas do agronegócio e de madeireiros, além da construção de hidrelétricas, portos e ferrovias de maneira acelerada, são uma forma contínua de destruir a Amazônia. Nós não temos sido ouvidos no decorrer dos últimos anos, e a situação piorou no governo Bolsonaro. Então, espero que a mobilização continue. Mas não adianta só ter vontade de fazer algo. Os europeus e as pessoas de todo o mundo têm que agir, começando por ouvir os povos que conhecem a floresta. Vim exatamente para mostrar que o que acontece no Brasil tem também a responsabilidade da Europa.
A Alemanha é um dos países com forte discurso público ambientalista, mas cujas empresas, ao mesmo tempo, também têm impactos negativos no Brasil. Qual foi a expectativa da visita?
Tive em Berlim uma agenda extensa. Encontros com várias e vários parlamentares para cobrar que eles acompanhem a atuação das empresas alemãs e para apresentar o Protocolo de Consulta Munduruku. A gente tem nossos direitos de consulta, que estão previstos na Convenção 169 [Da Organização Internacional do Trabalho]. Queremos saber onde estão as informações detalhadas sobre as empresas alemãs e europeias, sobre os impactos delas no Brasil, e não só depois que o estrago está feito. Precisamos ser consultados, antes de qualquer planejamento de empreendimentos nos nossos territórios.
Imagino que, na Alemanha, a população tenha mais direito de discutir sobre obras com grandes impactos antes de elas começarem. Então não é uma relação igual. Da mesma forma, os europeus precisam se informar sobre os produtos que consomem. Eles são responsáveis por buscar isso também. Então viemos falar, e fomos ouvidos. A Alemanha tem que assinar a Convenção 169, por exemplo. Não adianta dizer que é um dos países mais amigos da floresta e deixar empresas se instalarem no nosso território, sem que os povos tradicionais possam fazer parte das decisões. É essa a raiz do desmatamento e do nosso sofrimento.
A Convenção 169 garante a consulta prévia, livre e informada aos povos indígenas. Na prática, qual o significado desses intrumentos para as comunidades e por que ganharam tanto destaque neste momento? Você pode contar um pouco sobre o Protocolo de Consulta Munduruku?
Na maioria dos casos, a gente só sabe de projetos através da mídia. Empreendimentos são instalados dentro da nossa casa, e nós somos os últimos a saber. Assim foi com a hidrelétrica do de São Luiz do Tapajós, que conseguimos suspender em 2016. Não adianta fazer audiência pública com tudo pronto, querendo só que o povo diga sim. Então, para falar com a gente, tem que ler a Convenção 169 e o Protocolo Munduruku. Ele diz que temos direito a dizer sim ou não, ou mostrar o que deve ser feito, uma vez que a gente conhece cada pedaço do rio, tudo. Não adianta buscar uma liderança para responder pelo povo, como as empresas tentam; tem que respeitar a História. Os Munduruku, por exemplo, têm o cacique-geral, que é o cacique Arnaldo. Existem as associações. As representações precisam ser respeitadas, é assim que tomamos decisões. E todo o mundo tem voz, até as crianças.
A mídia mostra que a Amazônia está queimando. E dados dos centros de monitoramento da floresta, como o Inpe, apontam picos de desmatamento. Na prática, o que vocês têm visto diretamente no território Munduruku?
Aumentaram as invasões nas nossas terras e as queimadas. A Amazônia queima com o agronegócio, queima para abrir espaço para muitos empreendimentos planejados na nossa região do Tapajós. Não tem fiscalização, nem proteção do governo contra desmatamento nas terras indígenas. Em julho, logo antes dessas notícias todas, expulsamos madeireiros da Terra Indígena Sawré Muybu, durante mais uma etapa do nosso processo de autodemarcação. Vimos nossas árvores cortadas nos caminhões, máquinas pesadas e demos prazo para todos saírem dali. O tempo todo tem gente querendo entrar e desmatar ilegalmente, destruindo a floresta. Então não é difícil saber quem está fazendo, não é surpresa. A gente pisa na destruição, é dentro da nossa casa. A Amazônia está queimando há muito tempo. Nós temos muito mais de 519 anos e estamos lutando desde então.
Frequentemente a Amazônia aparece definida como “pulmão do mundo”. Mas esse olhar acaba tirando o foco de muitos outros significados da floresta. O que mais está sendo devastado?
Não tem separação entre floresta e nós, então é impacto em tudo. Fui ver a Hidrelétrica de Belo Monte, por exemplo. Via peixes amontoados e chorava. A empresa vem, cava um buraco e está resolvido o problema. A população lá já se acostumou a ver a cena. E as promessas de emprego, de saúde, de escolas, nada disso chegou. No Rio Teles Pires, já construíram barragens e destruíram um local sagrado, Karobixexe (Sete Quedas). O garimpo contamina muito o rio, as pessoas vão ficando doentes, principalmente porque comemos muito peixe.
Só na Bacia do Tapajós são 41 projetos de hidrelétricas. Imagina o desmatamento, e como nós seríamos retirados das nossas terras, dos nossos locais sagrados. Para a gente, tudo está morrendo, a nossa maneira de comer, de viver. As escolas indígenas sofrem para existir, a nossa língua, tudo. O Rio Tapajós só tem partes ainda limpas por causa de muita luta nossa. É só olhar e ver que os povos indígenas estão vivendo [na floresta] há centenas de anos, e a floresta continua viva também.
O presidente Jair Bolsonaro afirma que seu governo está alinhado ao desenvolvimento sustentável e tem reiterado o argumento de que os povos indígenas deveriam passar por um processo que ele chama de “inserção na sociedade brasileira”. Uma das justificativas para a construção de novos projetos seria, então, a necessidade fornecer acesso a eletricidade, internet e escolas às populações tradicionais. O que você pensa disso?
Desenvolvimento sustentável nunca existiu para a gente. Para construir hidrelétrica, precisa desmatar, inundar. Para plantar soja, precisa tirar as pessoas do local onde elas moram. O que está errado é como se decide sobre essas coisas, e quem decide. É só ver os dados, que mostram que a energia gerada na Amazônia não vai para nós. Vai para os produtos que vêm para a Europa, vai para outras regiões do país, vai para o agronegócio, as indústrias. No fim, é o povo que mora ao longo do rio que vai beber água contaminada. Floresta em pé é não deixar derrubar. E não queremos internet nem nada que precise passar por cima do nosso território. Tem que nos ouvir para saber o que queremos.
Um elemento que tem chamado a atenção para quem acompanha essa pauta é a presença de cada vez mais mulheres como porta-vozes do movimento indígena e protagonistas de várias ações. O que mudou?
As mulheres estão saindo cada vez mais de suas casas para lutar. Estamos ocupando espaços, tanto dentro das aldeias, como na luta para fora, inclusive na comunicação. Hoje em dia tem muitos instrumentos. Já temos o Coletivo Audiovisual Munduruku. As mulheres começaram a ver jornalistas e o pessoal do documentário nas nossas terras durante a autodemarcação da Terra Indígena Sawré Muybu, e resolveram que não queriam mais só carregar panela, porque na verdade sempre tivemos um papel importante nas aldeias. Pensaram “vamos carregar outras coisas”. E começaram com as câmeras. A tecnologia é um instrumento, mas a luta é a mesma de séculos.
Desafiamos também os homens, que as vezes se abatem. Dizemos “levanta que a gente pode fazer, sim”. Sempre tivemos ferramentas de comunicação, sempre foram várias, não uma só. Tem celular, tem carta, reunião. Eu fui a única mulher guerreira no meio dos homens por muito tempo em vários lugares. Acho que às vezes eles pensavam: “Será que ela vai aguentar? Tem marido, tem filho…”, e eu só segui. Agora estou estudando e tem cada vez mais tem mulheres comigo. Teve também a Marcha (das Mulheres Indígenas, em agosto, em Brasília). A gente se une cada vez mais.
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