Há mais de 30 anos, empresas de diversos setores têm usado estratégias de marketing para esconder os impactos sociais e ambientais negativos de suas operações.
Em abril de 2014, a CHTP, que construiu e opera a Usina Hidrelétrica Teles Pires, uma das quatro sendo finalizadas no rio Teles Pires, recebeu o Certificado Selo Verde na categoria Gestão Socioambiental Responsável do Prêmio Chico Mendes.
Lideranças indígenas, pesquisadores e ambientalistas se perguntam como é possível que a UHE Teles Pires seja considerada esse “exemplo de sustentabilidade”.
Publicado em cooperação com The Intercept Brasil. Read a version of this article in English here.
Há mais de 30 anos, empresas de diversos setores têm usado estratégias de marketing para esconder os impactos sociais e ambientais negativos de suas operações. É a chamada “maquiagem verde”, ou greenwash, em inglês. O caso recente da Companhia Hidrelétrica Teles Pires (CHTP), embora não seja exatamente inédito, está “zerando” as definições de “maquiagem verde” na Amazônia.
Em abril de 2014, a CHTP, que construiu e opera a Usina Hidrelétrica Teles Pires, uma das quatro sendo finalizadas no rio Teles Pires, recebeu o Certificado Selo Verde na categoria Gestão Socioambiental Responsável do Prêmio Chico Mendes. O certificado é um reconhecimento do Instituto Internacional de Pesquisa e Responsabilidade Socioambiental Chico Mendes a empresas que são “exemplos de solução de conflitos entre desenvolvimento, justiça social e equilíbrio ambiental”.
O Prêmio Chico Mendes não é o único reconhecimento “verde” que a CHTP ostenta. Dois outros grupos ligados ao setor energético – Power Brasil e Instituto Acende Brasil – premiaram a empresa em 2014 e 2016, respectivamente, por sua inovação e em reconhecimento ao seu empenho social e ambiental.
Lideranças indígenas, pesquisadores e ambientalistas se perguntam como é possível que a UHE Teles Pires seja considerada esse “exemplo de sustentabilidade”. Afinal, o empreendimento é conhecido por ter prejudicado a vida das comunidades tradicionais e dos povos indígenas, impactado a biodiversidade, ter acelerado o desmatamento na sua área de influência e, ainda, ter destruído locais sagrados para os índios da região.
Átila Rocha Macedo, coordenador de Comunicação Social da CHTP, mostra bem o viés propagandístico da companhia quando diz à reportagem que o Certificado Selo Verde foi concedido em reconhecimento à contribuição que a empresa faz ao desenvolvimento sustentável e à “melhoria de vida da população nos municípios em sua área de abrangência”.
Por outro lado, o arqueólogo Francisco Pugliese, pesquisador do Laboratório de Arqueologia dos Trópicos do Museu de Arqueologia e Etnologia da Universidade de São Paulo, afirma, em entrevista a The Intercept Brasil, que “esse prêmio vai contra tudo o que se espera de algo que carrega o nome Chico Mendes e seus desdobramentos serão catastróficos se a UHE Teles Pires for tomada como exemplo de responsabilidade social”.
A UHE Teles Pires custou mais de R$ 4 bilhões e tem capacidade máxima de geração de 1.820 megawatts, energia suficiente para abastecer uma população de 5 milhões de habitantes. A usina foi construída na divisa de Mato Grosso e Pará, sobre o rio Teles Pires, principal formador do rio Tapajós, e recebeu a licença de instalação do Ibama em 2010. A obra estava pronta para entrar em operação em novembro de 2015. A oposição ao projeto, com inúmeros protestos e ações judiciais de povos indígenas, comunidades tradicionais, pesquisadores e Ministério Público Federal (MPF), começou ainda durante a fase de estudos da usina e continua até hoje.
Predação certificada
Além dos prêmios de “sustentabilidade”, a CHTP ganhou outro tipo de reconhecimento por seus “préstimos” ambientais. Em 2012, a companhia se candidatou e obteve créditos de carbono no âmbito do Protocolo de Kyoto. No regime do Mecanismo de Desenvolvimento Limpo (MDL), projetos de países em desenvolvimento que reduzem emissões de dióxido de carbono geram créditos, que, por sua vez, podem ser negociados ou vendidos para países industrializados a fim de compensar suas metas de redução de emissão de gases.
Ao habilitar a CHTP, o MDL desconsiderou pesquisas científicas que mostram que a vegetação em decomposição nas barragens tropicais emitem quantidades significativas de metano, gás 20 vezes mais danoso ao clima que dióxido de carbono.
“Vários estudos indicam que as emissões de represamentos na Amazônia são substanciais ao longo dos seus primeiros dez anos, justamente o período coberto pelos créditos de carbono”, observou Philip Fearnside, professor do Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia (INPA) e ganhador de Prêmio Nobel por trabalhos sobre aquecimento global.
Estudos “de encomenda”
Essa imagem pública da CHTP toda trabalhada na “inovação e sustentabilidade” leva os menos atentos a imaginar que o projeto foi analisado e discutido criteriosamente antes de ser implementado pelo governo.
Não foi o que ocorreu, de acordo com Brent Millikan, diretor do programa Amazônia da ONG International Rivers. “No Plano Decenal de Energia (PDE) de 2008, o Ministério de Minas e Energia deixou claro que a decisão política de construir a usina de Teles Pires já estava tomada – ou seja, dois anos antes da apresentação do Estudo e Relatório de Impacto Ambiental (EIA/Rima) que avaliariam os impactos socioambientais e as viabilidades técnica e econômica do projeto”, afirma.
Quando finalmente o EIA/Rima foi realizado, tomou-se cuidado para que ele não trouxesse “surpresas” que se opusessem aos interesses barrageiros. Millikan explica que, “no caso da UHE Teles Pires, uma das contratadas para a realização dos estudos de impacto foi a empresa Leme Engenharia, que foi sócia da Odebrecht – além da Andrade Gutierrez e da Engevix – na construção da UHE Capim Branco I e II, no rio Araguari-MG. Além disso, a Leme Engenharia é vinculada à empresa energética belga-francesa GDF Suez/Engie, que tem projetos na bacia do Tapajós. Ainda assim, o governo nunca cogitou haver qualquer conflito de interesses”.
“A decisão política de construir a UHE Teles Pires veio anos antes dos estudos de viabilidade técnica, econômica e ambiental serem feitos”, continua Millikan.
Os estudos realizados pela Leme e as outras empresas deveriam ter atentado a todos os potenciais impactos da usina, incluindo efeitos negativos sobre pesca, ecossistemas aquáticos e terrestres, biodiversidade, comunidades tradicionais e povos indígenas, mudanças climáticas, entre outros. Porém, nem os estudos nem a análise do Ibama (o órgão federal que concedeu a licença ambiental) encontraram qualquer tipo de inconveniente que resultasse em atrasos significativos ou redesenhos do projeto.
Solange Arrolho, professora da Universidade Estadual de Mato Grosso e coordenadora do laboratório de ictiologia da universidade, disse a The Intercept Brasil que “a maior parte dos pesquisadores que fazem os estudos não são da região. Não vão a uma peixaria, à feira. Conversam muito pouco com pescadores ou com as universidades locais. Moro aqui há 25 anos. Os estudos das hidrelétricas foram feitos por gente que nunca pisou nessa universidade para coletar informações”.
De acordo com Arrolho, a precariedade das pesquisas leva a um grave subdimensionamento dos verdadeiros custos dos empreendimentos: “Qual o custo de uma estrada ou de uma hidrelétrica, por exemplo? Comumente se chega à conclusão de que é viável por não se levar em consideração todo o passivo ambiental e social que a obra traz. Os processos de compensações socioambientais da usinas são irrisórios diante de todo o impacto”.
Ricardo Scoles, doutor em ecologia e professor da Universidade Federal do Oeste do Pará, concorda. “Não há argumentos científicos que possam garantir baixos impactos socioambientais quando se trata de construção de barragens em bacias de alta diversidade socioambiental como o Teles Pires. Temos que lembrar que a área Tapajós-Xingu é considerada uma região de alto endemismo e, portanto, os potenciais impactos sobre a fauna seriam mais severos e irreversíveis já que muitas espécies de animais somente são encontradas nessa biorregião”.
“É altamente irresponsável interferir na dinâmica dos cursos d’água localizados na Amazônia Meridional, uma região já atingida por mudanças climáticas locais, com diminuição média da precipitação e secas mais prolongadas”, explica Soles.
Licenciamento Cosmético
Quem acompanhou o processo de perto sabe que servidores do Ibama e da Funai tentaram garantir alguma seriedade ao licenciamento, mas foram silenciados. Millikan relata que “a Empresa de Pesquisa Energética (EPE), órgão federal encarregado do planejamento do fornecimento de energia no Brasil, ficou ‘indignada’ quando técnicos do Ibama e da Funai levantaram objeções ao projeto, ainda que formalmente fosse sua obrigação fazê-lo”.
A situação com a Funai foi particularmente tensa. Millikan prossegue: “Em dezembro de 2010, servidores da Funai produziram uma crítica técnica detalhada ao EIA, justificando por que a parte do estudo que se referia aos povos indígenas teria que ser completamente reformulada. Alguns dias depois, o presidente do órgão, sob intensa pressão do setor energético – que tinha o apoio do gabinete da Presidência da República – anuiu com a emissão da primeira das três licenças para o empreendimento”.
Desde 2010, em vista do grande número de irregularidades, a Justiça Federal considerou, em várias instâncias, o estudo de impacto ambiental da UHE Teles Pires “totalmente viciado e nulo de pleno direito, por agredir os princípios constitucionais de ordem pública, da impessoalidade e da moralidade ambiental” . Mesmo assim, os embargos ao empreendimento caíram sucessivamente com a aplicação do mecanismo de Suspensão de Segurança a pedido do governo federal.
Os Munduruku e a Caixa de Comentários
Sem espaço para análises técnicas, sem a participação dos índios, sem segurança jurídica e sem a realização de consulta prévia, um dos únicos foros de discussão (bastante limitada) sobre a UHE Teles Pires foi a seção de comentários públicos do website Mecanismo de Desenvolvimento Limpo (MDL). Ainda em 2012, quando a CHTP buscava se habilitar, várias entidades, brasileiras e internacionais fizeram objeções à concessão dos créditos à companhia.
Uma das questões discutidas ali foi o impacto da barragem sobre a vida espiritual dos Munduruku e outros povos indígenas da região, como a destruição da cachoeira de Sete Quedas, detalhado em artigo anterior.
Em resposta, a CHTP minimizou a relevância de Sete Quedas para os índios, alegando que a área não era frequentemente visitada e que estudos etnográficos sobre esse grupo étnico não mencionam a cachoeira de Sete Quedas como um local de importância cosmológica.
É mentira.
O fato da área não ser frequentada deve-se, justamente, à sua sacralidade. Na cultura Munduruku, os locais sagrados não devem ser perturbados. Há muito se sabia que a cachoeira Sete Quedas era um lugar sagrado para os índios Munduruku, inclusive com manifestações a esse respeito dos próprios índios. Também era sabido que a destruição da cachoeira traria consequências catastróficas para a cosmologia desse povo.
CHTP deixa sua marca – nos peixes
Apesar da falta de dados históricos e da construção apressada da barragem, a especialista em peixes Solange Arrolho diz que o empreendimento certamente afetou a migração de peixes. “Antes do rio ser barrado, alguns peixes – principalmente os maiores – migravam para alcançar o alto curso do Teles Pires, algo que não podem mais fazer, pois a obra não conta com o canal lateral para permitir que os peixes a transponham”.
Os peixes estariam, então, procurando outros lugares para se reproduzir rio abaixo. Arrolho adverte que também os impactos chegarão gradativamente à jusante: “Os peixes ficarão concentrados em pontos como o entorno da usina e estarão sob pressão de pesca e captura muito maiores”.
Suas opiniões são corroboradas pelo ecólogo e assessor ambiental do MPF no estado de Mato Grosso, Francisco Arruda Machado, popularmente conhecido como Chico Peixe. Ele contou à reportagem que, em janeiro de 2016, ao coletar exemplares de peixes no rio Verde, um afluente do Teles Pires, à montante da barragem, pôde notar os impactos. “No passado, eu coletava de 10 a 15 grandes peixes como matrinchã ou curimatá, cada um pesando de 2,5 a 3 kg”, disse ele. “Este ano eu não peguei nenhum. Isto me convence de que os peixes não estão conseguindo migrar à montante do rio para desovar”.
“Diminuiu muito o peixe. Está muito difícil a gente pegar peixe igual antes da barragem. O peixe está morrendo de cardume, a gente não sabe como vai sobreviver daqui pra frente”, diz Sandro Waro Munduruku, jovem liderança indígena.
Pode haver diversas razões para a escassez de peixe de que os Munduruku e outros povos indígenas que vivem na região da UHE se queixam muito. Os impactos se acumulam. Arrolho explica que, com o barramento do rio, “metano e outros gases são liberados com a decomposição de material orgânico. Quando esses gases vêm para a superfície, a água se torna mais ácida, a temperatura aumenta e diminui a quantidade de oxigênio. Toda a estrutura do rio é alterada. Os bichos não comem direito e não têm nutrientes para processos reprodutivos”.
“Os impactos se acumulam. Nas cabeceiras do Teles Pires há um grande polo do agronegócio que despeja um volume enorme de sedimentos e agrotóxicos. Rio abaixo, as barragens retêm e concentram esse material, agravando o efeito da contaminação”, diz Arrolho.
O antropólogo Rinaldo Arruda, da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, reitera a gravidade dos impactos sobre o rio: “Na Amazônia, o rio é a ‘alma’ da vida animal e humana, tudo acontece no e ao redor do rio. Quando os rios são seccionados em uma série de lagos com barragens hidrelétricas, tudo isso é drasticamente perturbado.”
Energia (nem tão) limpa, barra suja
Em um número especial da revista Teles Pires, a Neoenergia, principal parceira do consórcio de construção da barragem, escreveu que havia redesenhado o projeto original e repetiu que “comparada a outros empreendimentos hidrelétricos, a obra se destaca pelo alto rendimento de geração de energia e baixo impacto” e que “a CHTP avaliou e alterou o projeto original da hidrelétrica para reduzir ainda mais os impactos ambientais”, com “o uso de técnicas avançadas de engenharia sustentável”.
Entretanto, os resultados práticos se mostram diferentes. Em entrevista à Repórter Brasil, a CHTP garante ter tomado o cuidado de não danificar a floresta ao construir a barragem, alojando os 6 mil trabalhadores da construção na própria obra, em canteiros que já estariam sendo gradativamente desmontados e a área isolada. Tentando transmitir modernidade e cuidado, a empresa alega que Teles Pires é uma usina-plataforma por empregar um sistema similar ao de plataformas petrolíferas no oceano, o que impediria a formação de povoados ao redor da obra.
Tal narrativa pode até servir às estratégias de marketing da CHTP, mas é inócua em relação aos impactos indiretos da usina, principalmente o desmatamento gerado por terceiros associados ao empreendimento, como prestadores de serviço, por exemplo.
Até hoje, nenhuma grande represa foi construída na Amazônia sem gerar grande influxo populacional, brutal valorização das terras e aumento de investimentos ligados à degradação florestal.
A Bacia do Teles Pires não é exceção. Em 2010, antes da obra ser iniciada, a cidade mais próxima, Paranaíta, era a 93ª mais desmatada do país. Com a chegada da hidrelétrica, em 2014, o município saltou para a 26ª posição. Indagada a respeito, a CHTP responde simplesmente que “não há como estabelecer qualquer nexo com a chegada do empreendimento.” A empresa parece acreditar em “coincidências” convenientes.
Passando vergonha
Os críticos da UHE Teles Pires admitem que a CHTP não é a única responsável pelos impactos ambientais e sociais da usina – os maiores danos socioambientais devem ser compartilhados. Afinal, foi o governo federal que decidiu lançar o projeto, executar – e aprovar – estudos inadequados, evitar um debate público aberto, descumprir a obrigatoriedade legal de consultar povos e comunidades tradicionais e até recorrer a atos autoritários, como o instrumento da suspensão de segurança, para construir a barragem.
Com a usina hidrelétrica em operação, muitos que acompanham o processo ficaram perplexos quando um prêmio que leva o nome de Chico Mendes foi concedido à CHTP. Vale ressaltar que a filha do seringueiro, Elenira Mendes, insiste há anos para que o Instituto deixe de usar o nome de seu pai no prêmio – sem obter sucesso.
O arqueólogo Francisco Pugliese observa: “Se olharmos a premiação de perto, veremos que foi concedida por um instituto privado e direcionada a um campo muito específico do poder econômico nacional, que atua não só no Brasil, mas em vários países de diversas partes do globo: as grandes empreiteiras.”
Nesse enredo de licenciamentos cosméticos e atropelos aos direitos de povos e comunidades tradicionais e ambientais, premiações como essas operam um ambientalismo de mercado que esconde os desmandos e impactos do empreendimento. Usam selos concebidos como propaganda para promover a imagem da empresa e aumentar os seus lucros.
O caso da CHTP na Bacia do Tapajós comprova que as mídias e redes podem ser até novas, mas o conceito aplicado é a velha e conhecida “maquiagem verde”. Não há nada de inovador e sustentável sob o sol do marketing falacioso de empreiteiras e setores governamentais de energia que lideram a corrida barrageira na Amazônia e ameaçam a sobrevivência dos povos indígenas. Chico Mendes sentiria vergonha.
Esta matéria é da série exclusiva “Tapajós sob Ataque”, escrita pela jornalista Sue Branford e pelo cientista social Mauricio Torres, que percorrem a bacia Tapajós. A série é produzida em colaboração com The Intercept Brasil. Leia a versão em inglês.
Agradecemos o Instituto Centro de Vida (ICV) e a International Rivers pelo apoio logístico na região do rio Teles Pires.