Enquanto o Cerrado vive a pior temporada de queimadas da história, brigada voluntária formada por indígenas Bakairi impede, há quatro anos, que grandes incêndios devastam a Terra Indígena Santana, em Mato Grosso.
A iniciativa nasceu após uma tragédia em 2018, quando o fogo destruiu parte do território e deixou a comunidade desamparada diante da demora das autoridades; depois disso, os Bakairi criaram sua própria força de combate, com protagonismo feminino e treinamento oferecido por um bombeiro aposentado.
Enquanto o Cerrado enfrenta recordes de devastação e as políticas públicas permanecem frágeis, a experiência Bakairi mostra um caminho possível: já são quatro anos sem incêndios de grandes proporções no território.
Ao fechar os olhos, os indígenas do povo Bakairi, na Terra Indígena Santana, ouviam um barulho semelhante ao de chuva na floresta. O som lembrava uma tempestade de verão, dessas que chegam de repente e encharcam o Cerrado. Mas, em vez de água, era fogo. As chamas se espalhavam pelo território de 73 mil hectares em Nobres, Mato Grosso, queimando árvores, animais, plantas medicinais e o que encontrava pelo caminho.
“Uma máquina na fazenda ao redor do território pegou fogo. Os proprietários não conseguiram fazer o manejo, então entrou na nossa região”, relembra Edna Rodrigues Bakairi, pedagoga de 39 anos. À medida que o incêndio avançava, a comunidade esperava por autorizações “da Funai, do governo federal, estadual, municipal” para a entrada de brigadas que pudessem conter as chamas. “Enquanto essa espera acontecia, o fogo chegou e destruiu tudo aqui dentro”, completa.
O episódio, em 2018, deixou cicatrizes profundas e forçou os Bakairi a buscar sua própria resposta. Assim nasceu uma brigada comunitária que, nos últimos seis anos, impediu novos incêndios de grandes proporções. O diferencial? O protagonismo feminino. Dos 45 voluntários treinados por um bombeiro aposentado, 25 são mulheres.
A tragédia em meio à crise nacional
Foi o coronel aposentado Paulo Selva, veterano do Corpo de Bombeiros de Mato Grosso, que levou à comunidade Bakairi um projeto de fortalecimento da resiliência socioambiental. Para ele, o sistema oficial não conseguia dar conta de toda a demanda. “As ações do Corpo de Bombeiros fazem frente apenas às questões relacionadas aos incêndios que ocorrem dentro das suas áreas de atuação. Só que mais de 45% dos incêndios florestais acontecem em áreas fora dessa situação legal”, explica.
Selva criou, então, o Instituto Grupo de Operação Ambiental (GOA), em dezembro de 2019, uma organização sem fins lucrativos composta por agentes ambientais voluntários. Com o GOA, percorreu aldeias indígenas distantes dos centros urbanos para oferecer treinamento técnico e capacitação gratuita para o combate de incêndios.
Durante uma das visitas, em 2021, conheceu um morador da aldeia Santana, que o convidou para treinar os indígenas. Ali, encontrou uma dinâmica nunca vista: o interesse majoritário de mulheres para integrar a brigada voluntária. Uma herança, saberia depois, que também veio do fogo: na última grande queimada, enquanto os homens buscavam por ajuda, elas assistiam à terra arder sem saber ao certo o que fazer.
Selva compreendeu durante as aulas que as mulheres são as que ficam no território por mais tempo. Seja no cuidado com os filhos, com a casa ou com a própria comunidade, enquanto os homens saem para trabalhar em fazendas vizinhas. E que falar de preservação exige um olhar atento, que elas já têm.
No mesmo ano, os 45 voluntários fizeram o Curso Básico de Gerenciamento de Queimadas Urbanas e Incêndios Florestais, oferecido pelo GOA. Receberam formação em primeiros socorros, radioamadorismo, prevenção e combate ao fogo, uso de equipamentos e técnicas de vivência em ambientes inóspitos. Desde então, o programa se estrutura em três frentes: gestão de risco e manejo tradicional do fogo, resposta a emergências e recomposição florestal e desenvolvimento de alternativas econômicas sustentáveis. Com as mulheres como protagonistas.
“Não são só meninas jovens. Tem senhoras de 40, 45, 50 anos que conseguem ir para o combate. São várias faixas etárias, e todas atuam com coragem”, conta Edna, que além de pedagoga, também é integrante da brigada. O perfil rompe estereótipos sobre quem é capaz de enfrentar o fogo, já que adolescentes de 15 ou 16 anos se somam a mulheres maduras, muitas delas já avós, e assumem a linha de frente na proteção ambiental.
Juntas, as mulheres Bakairi conquistaram um feito que contraria as estatísticas: sem fogos de grandes proporções na Terra Indígena Santana há quatro anos, mesmo com o bioma ardendo.
A queimada no Cerrado
Entre janeiro e dezembro de 2024, o Cerrado registrou 9,7 milhões de hectares queimados. Desse total, 85% — o equivalente a 8,2 milhões de hectares — estavam em áreas de vegetação nativa, representando um aumento de 47% em relação à média dos últimos seis anos. Os números são do Monitor do Fogo, do MapBiomas.
Segundo o Instituto de Pesquisa Ambiental da Amazônia (Ipam), a área queimada em terras indígenas do Cerrado cresceu 105% de janeiro a setembro 2024, atingindo 2,8 milhões de hectares destruídos. Uma combinação de desmatamento, queimadas provocadas para expansão agrícola e falta de políticas públicas eficazes aprofundou a vulnerabilidade.
“Grande parte desses incêndios que acontecem em Mato Grosso começam fora dos territórios e os invadem”, explica Edmar Kajejeu, geógrafo do povo Bororo e assessor da Federação dos Povos Indígenas de Mato Grosso (Fepoimt). Segundo levantamentos da organização, em um único dia de 2024, 23 territórios indígenas foram atingidos simultaneamente por focos de calor.
Ao observar o desmatamento, o Cerrado segue liderando as estatísticas negativas. Pelo segundo ano consecutivo — e mesmo com uma redução de 41% em relação ao ano anterior — o bioma concentrou mais da metade de toda a área desmatada do país em 2024 (52,5%), somando 652,1 mil hectares, de acordo com o RAD2024, o sexto Relatório Anual do Desmatamento no Brasil, elaborado pelo MapBiomas.
Nos últimos anos, Amazônia e Cerrado concentram mais de 82% da devastação do país, carregando o peso maior da crise ambiental.

Guardiãs da terra e do conhecimento ancestral
A dedicação das mulheres Bakairi, contudo, contrasta com a precariedade dos recursos disponíveis. A brigada opera de forma estritamente voluntária, sem qualquer remuneração ou subsídio para alimentação, transporte ou equipamentos. Muitas vezes, as mulheres precisam se ausentar de suas casas por dias, abrindo mão de sua rotina.
O grupo recebeu alguns uniformes da Federação dos Povos Indígenas, mas em quantidade insuficiente. “Tem só oito macacões e são mais de 30 voluntários. A maioria das mulheres vai com sapatilha, com tênis que ganha de doação, mas não é seguro. Mesmo assim, trabalham com amor porque o território é nosso, porque a terra é nossa mãe, é nossa vida”, diz Edna.
A atuação das mulheres não se restringe ao combate às chamas, pelo contrário: quando colocam as roupas improvisadas e rumam ao combate do fogo, mantêm vivo o conhecimento ancestral. “Nós temos ritual de festa de menina moça, de luto, pós-parto, dieta, qualquer remédio que a gente possa tomar. Para a população indígena, tudo tem seu espírito. Você tem que pedir licença, tem que pedir com amor, porque vai doer na planta se você arrancar”, explica Edna.
Após a destruição de 2018, foram elas que reinventaram a produção alimentar. “Por causa desse fogo que destruiu tudo, a gente começou a se proteger, plantando bananas, mandiocas no fundo dos quintais para que ficassem essas árvores para proteger do fogo, mas também para nos alimentar. Não existe mais fome aqui dentro, graças a Deus. A gente aprendeu a lidar com a dor da perda, nós transformamos”, conta.
O geógrafo Edmar destaca que o fogo destrói muito além das árvores. “Além das plantas medicinais, tem a época de coleta de fruta, que também tem um período específico. A queimada acaba mudando isso. Às vezes já não tem mais fruta como antes”, explica. Os animais também são vítimas – onças, capivaras e outros bichos morrem nas chamas, desequilibrando o ecossistema. “O indígena vive de caça e pesca, o fogo acaba com tudo.”

Vizinhos em situações diferentes
A cerca de 150 quilômetros de distância, na Terra Indígena Umutina, em Barra do Bugres, também em Mato Grosso, Helena Indiara Corezomaé, indígena do povo Balatiponé, jornalista e mestre em Antropologia Social, também vivencia os impactos do desmatamento no Cerrado, mas em condições diferentes. Ao longo dos anos, o território de 29 mil hectares sofreu com grandes incêndios repetidos, mas sem a organização de uma brigada estruturada como a dos Bakairi.
Em 2020, as chamas chegaram tão perto da casa dos pais de Helena que a família precisou usar baldes de água e ferramentas improvisadas. Enquanto os homens da comunidade combatiam um foco em outra área, não havia apoio especializado. Em 2024, outro incêndio de grandes proporções. Embora 23 territórios indígenas de Mato Grosso queimassem, segundo a Fepoimt, somente o de Helena recebeu apoio.
Ano após ano, “a gente passa pela mesma realidade: de não ter apoio, de não ter estrutura, de não ter equipamentos adequados”, diz. “A gente sente que em nenhum momento as populações indígenas são levadas a sério. Não existe um empenho em solucionar o problema”, desabafa Helena.
As consequências vão além da destruição ambiental. Quando o incêndio tomou conta do território em 2020, a fumaça e a fuligem tornaram o ar irrespirável. “Você não consegue ficar no território. Fica uma fumaça baixa e preta, e você não consegue respirar”, conta. A comunidade precisou abandonar temporariamente suas casas.
Diferente dos Bakairi, que conseguiram estruturar uma brigada permanente, os Balatiponé dependem de grupos voluntários formados a cada emergência — as ações acabam acontecendo quando o fogo já está em proporções muito grandes.
As solicitações por apoio para construção de uma brigada foram feitas diversas vezes ao PrevFogo, do Ibama, mas nunca obtiveram retorno efetivo. “Se a gente tem um planejamento, se a gente tem uma preparação, se a gente tem a equipe preparada, é uma outra situação”, pondera Helena.
Edmar confirma a eficácia das brigadas estruturadas, que não apenas protegem seus próprios territórios, mas socorrem outros povos. “Este ano estava pegando fogo na Terra Indígena Tereza Cristina [onde vive o povo Bororo]. A brigada Bakairi saiu do território deles e foi lá combater o fogo junto com uma brigada voluntária local”, exemplifica.
Mas a burocracia emperra a expansão dessas iniciativas. “Para criar brigadas indígenas capacitadas, você precisa seguir muita burocracia. Eles precisam aprovar essas brigadas, aí segue todo esse processo. A gente entende que demora muito”, lamenta o geógrafo. Segundo ele, outras entidades, como o Corpo de Bombeiros, poderiam acelerar os treinamentos, mas a Funai não autoriza por considerar que essas instituições não estão preparadas para lidar com as especificidades dos povos indígenas.
Na contramão das estatísticas
Os resultados são inegáveis. “Ano passado, ano retrasado e esse ano nós não tivemos foco de incêndio, graças a Deus e a essa brigada voluntária”, comemora Edna. Os focos que surgem são rapidamente controlados por quem conhece cada nascente, trilha e área vulnerável do território. Essa proximidade, aliada ao treinamento técnico, transformou a brigada em referência local.
“Eu estava conversando com um rapaz da brigada Bakairi de Santana. Ele disse que, nesses tempos em que a brigada foi criada, não está tendo queimada dentro da terra indígena. Isso quer dizer que está surtindo efeito. Eles estão conseguindo dar o recado, combater o fogo”, observa Edmar.
A experiência Bakairi chamou atenção de vizinhos e autoridades. Fazendeiros recorreram às brigadistas em momentos de crise, e órgãos estaduais buscaram sua colaboração. “É a primeira brigada indígena e também a primeira brigada voluntária que existe de que tenho conhecimento”, explica Selva.
Kajejeu reconhece a singularidade da iniciativa. “Acho que é uma coisa positiva, no sentido do protagonismo da mulher. Isso precisa ser fortalecido”, afirma.
A luta agora é pelo reconhecimento. Quatro anos sem grandes incêndios mostram que, quando as mulheres ficam para cuidar da terra, a terra permanece viva. Cercadas pelo agronegócio, as guardiãs Bakairi mostram que resistência também é cuidado, e que o futuro do Cerrado pode estar nas mãos de quem nunca deixou de habitá-lo. “Bakairi é teimoso, Bakairi é insistente, Bakairi persiste e até por isso ele resiste até hoje”, resume Edna.
Imagem do banner: Mulheres Bakairi, brigadistas de combate ao fogo do Grupo de Operação Ambiental, na Terra Indígena Santana (MT). Foto: Coronel Paulo Selva.