Com uso de espectroscopia, tecnologia identifica espécies e auxilia especialistas na diferenciação de animais coletados em trabalhos de campo. Estudos mostram índice de confiabilidade de 80%.
Método busca ampliar banco de dados de referência e disponibilizar informações cruciais para o monitoramento da biodiversidade e para ações de combate ao comércio ilegal de animais silvestres, entre outras aplicações.
Especialistas destacam baixo custo e praticidade dos equipamentos necessários, projetando métodos aprimorados que criem novas soluções para a conservação em áreas com grande variedade de fauna, como a Amazônia.
A experiência de observar as compras deslizando no caixa de um supermercado é quase universal. Nesse processo cotidiano, um aparelho eletrônico escaneia o código de barras e identifica cada produto. Há, no entanto, uma explicação técnica por trás do “bipe”: sem que os olhos possam ver, o aparelho emite um feixe de ondas eletromagnéticas que mede a quantidade de luz refletida pelo objeto. As características da leitura são únicas para cada item, permitindo a diferenciação.
Chamada de Espectroscopia de Infravermelho Próximo (NIR, em sua sigla em inglês), a tecnologia é utilizada para analisar amostras de diferentes materiais e encontra muitas formas de aplicação – seja para o controle de qualidade na agricultura ou para o monitoramento da oxigenação do sangue no ramo médico. Seria possível, então, reproduzir essa prática comum de escaneamento na identificação de espécies em florestas tropicais, como a Amazônia?
A ciência tem a resposta.
À medida que o sol se põe, a densa área verde da Reserva de Desenvolvimento Sustentável Mamirauá, no estado do Amazonas, escurece em um piscar de olhos. O sumiço da luz é embalado pelo zumbido dos carapanãs, como são chamadas as diferentes espécies de mosquito nesta região. O barulho acompanha Kelly Torralvo, pesquisadora titular do Grupo de Pesquisa em Ecologia de Vertebrados Terrestres do Instituto Mamirauá. Enquanto caminha lentamente por uma trilha, acompanhada de sua lanterna, ela procura por répteis e anfíbios entre os galhos e as folhas. Os animais são coletados e levados de volta ao laboratório da base de campo que fica na reserva.
Lá, com o auxílio de um dispositivo que utiliza a tecnologia NIR, os pesquisadores “escaneiam” cada animal com um sensor que detecta sua “assinatura espectral.” Por funcionar como uma impressão digital da luz infravermelha, essa marca se torna única para cada espécie. Assim, a partir desse processo, é possível identificar cada animal encontrado nas buscas de campo, gerando dados cruciais para o monitoramento da herpetofauna – nome dado ao conjunto de espécies de répteis e anfíbios – que vive na área protegida.

Para que um animal seja identificado a partir desse método, é necessário realizar uma etapa prévia. Como na indústria, ou mesmo em um supermercado, o escaneamento deve estar atrelado a um banco de referência – nesse caso, contendo os dados das assinaturas espectrais de cada uma das espécies. É fundamental que a maior quantidade possível de animais seja escaneada, de forma a abastecer a base de arquivo. Surge, então, um desafio: ainda que seja possível utilizar animais em museus e instituições de pesquisa para o estudo de seres depositados em coleções biológicas, a demanda é outra quando envolve animais observados em campo, caso em que a coleta de dados deve ser feita com eles ainda vivos.
Esse é o objetivo de Torralvo, que sempre trabalhou com a herpetofauna ao longo de sua carreira. A experiência é uma aliada da pesquisadora em seus esforços para coletar dados desse grupo, cujos representantes servem como importantes bioindicadores.
“A ferramenta NIR representa um avanço em atividades de laboratório e campo, aliando o conhecimento de especialistas em biodiversidade à tecnologia disponível. Ao auxiliar no reconhecimento das espécies, esse método pode facilitar processos em inúmeras atividades de estudos acadêmicos, monitoramento, fiscalização e ações de manejo e conservação. [Também] em lugares onde um especialista não está presente para realizar o reconhecimento. Essa ferramenta pode impactar incontáveis esferas de atuação,” diz ela, em entrevista à Mongabay.
Pesquisas mostram resultados promissores: em um artigo publicado em 2023 na revista Journal of Near Infrared Spectroscopy, a tecnologia NIR identificou, com apenas uma leitura, cinco das oito espécies de anfíbios testadas, apresentando um nível de confiabilidade de 80% – uma delas foi identificada corretamente em 92% dos casos. Os autores acreditam que, com o aumento do banco de referência e o refinamento dos dispositivos utilizados, os valores podem aumentar.

As aplicações práticas de um método vital para a conservação
A identificação da carne de caça de animais silvestres também entra no escopo da tecnologia NIR, a partir do desenvolvimento de novos modelos de rastreamento. Segundo Torralvo, essa abordagem também tem papel crucial na luta pela natureza. “É possível, por exemplo, que a carne de um animal ameaçado de extinção seja misturada à de outra espécie para dificultar sua identificação quando fiscalizada. Ao realizar a leitura de amostras de carne de caça frescas, salgadas ou congeladas – as principais condições em que são encontradas –, é possível reconhecer o que foi abatido. Isso torna o NIR uma ferramenta potencialmente útil para o monitoramento do comércio indevido”, diz. Essa abordagem pode ser utilizada no contexto do tráfico de animais silvestres, cuja identificação impacta na multa a ser aplicada.
“O NIR é uma tecnologia revolucionária”, diz Pedro Pequeno, ecólogo e pesquisador do Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia em Sínteses da Biodiversidade Amazônica (INCT-Sinbiam). “O método já é bastante utilizado em outras áreas, como na química, mas acredito que tem imenso potencial de aplicação na biologia. A identificação de espécies costuma exigir um especialista, algo que se complica no caso de anfíbios, já que muitos desses animais são extremamente parecidos fisicamente. É possível realizar testes genéticos para identificá-los, mas é [algo] muito caro. Outra alternativa é reconhecê-los pelo som – a chamada bioacústica –, mas é trabalhoso e requer bastante treinamento. Com o NIR, é quase mágica! Com um banco de dados calibrado, basta passar o feixe de luz e, pronto: a espécie é reconhecida.”

Profissionais da ciência acreditam que o céu é o limite para os benefícios futuros vindos do uso do dispositivo. “Eu acredito que o [emprego do] NIR pode ir além, porque há muitas informações na leitura da assinatura espectral que, em teoria, podem ser acessadas. Por exemplo: é possível medir a composição química de um ser vivo, avaliando a quantidade de um hormônio de estresse ou a concentração de mercúrio em seu tecido. Quem sabe até a procedência geográfica, o que pode determinar se um peixe veio de uma área de manejo ou do comércio ilegal”, diz o ecólogo.
O otimismo se mistura ao desafio de se criar um banco de referência representativo, sobretudo ao se considerar a diversidade biológica encontrada na Amazônia. Mesmo assim, Torralvo confia que todos os esforços valem a pena. “O método é muito promissor, pois envolve um equipamento portátil e de preço relativamente baixo. As potenciais aplicações do NIR em situações de fiscalização e monitoramento da biodiversidade são inúmeras e a tendência é expandir esse horizonte de possibilidades cada vez mais. O aprimoramento dessa tecnologia será um passo importante rumo a decisões mais eficientes e confiáveis.”
Imagem do banner: Espécie de anfíbio encontrada durante levantamento na reserva Mamirauá. Foto: Miguel Monteiro