Pesquisa detectou 2 mil registros de caça ilegal em grupos do Facebook entre 2018 e 2020; os posts expõem o abate de 4.658 animais da fauna brasileira de 157 espécies diferentes, de todos os biomas do país.
Dados sociais revelam que as imagens foram postadas em regiões com menores índices de pobreza, sugerindo que os caçadores têm alta renda e que não caçam por subsistência, e sim por esporte.
O estudo traz à tona a impunidade diante de crimes ambientais e a fácil disseminação de conteúdos relacionados a práticas ilegais em redes sociais no Brasil.
Mais de 2 mil registros de caça ilegal foram compartilhados em grupos sobre o tema no Facebook entre 2018 e 2020. Os posts somam 4.658 animais da fauna brasileira mortos, como pacas, tatus, capivaras e diversas espécies de aves.
É o que mostrou um estudo realizado por um grupo de pesquisadores liderado pelo biólogo brasileiro Hani R. El Bizri, do Centro de Pesquisa Florestal Internacional – Cifor/Icraf e Instituto de Desenvolvimento Sustentável Mamirauá. Eles coletaram e analisaram dados dos cinco grupos mais relevantes de caçadores ilegais do Facebook, abertos e privados, para entender como a atividade impacta a biodiversidade.
Ao identificar os padrões da caça ilegal no Brasil, foi possível mapear os municípios e biomas brasileiros em que os eventos de caça aconteceram, estimar o número de caçadores envolvidos e de animais abatidos, identificar as espécies afetadas e contabilizar a quantidade de carne em toneladas, para saber quanto de biomassa foi retirado dos habitats.
A pesquisa mostrou que a caça ilegal ocorreu em todos os biomas do país e em 14% dos municípios brasileiros, espalhados por todos os estados, incluindo o Distrito Federal. Foram estimados 1.400 caçadores, além de um total de 29 toneladas de carne silvestre obtidas com a atividade. Foram abatidas 157 espécies, de pequenos anfíbios a grandes mamíferos. Dessas, dezenove estão ameaçadas de extinção, como antas, queixadas, jacutingas e o coandu-mirim (Coendou speratus), espécie de porco-espinho descoberta pela ciência em 2013.
Caçando por esporte
De acordo com El Bizri, a maioria dos abates foi feita com armas de fogo e equipamentos como miras, o que revela prováveis boas condições financeiras dos praticantes.
“O que eu chamo ‘esportiva’ ou caça de ‘lazer’, como também é chamada na ciência, é aquela que não é por necessidade, não é por conflito. É aquela que a pessoa tem prazer em estar fazendo aquilo, por uma questão de vontade mesmo, sentir a emoção em fazer aquilo”, explica o pesquisador.
“A gente usa diversos indícios, diversas evidências, para falar que era caça ‘esportiva’. A maioria dos municípios que a gente pegou tem maior população, menor pobreza, maior IDH, então isso quer dizer que possivelmente são regiões mais ricas, não são regiões rurais, isoladas ou municípios pequenos”, completa ele.
A Amazônia foi o bioma com mais registros de caça. Em contrapartida, Mata Atlântica e Caatinga apresentaram maior degradação da vida silvestre, pelo excesso de desmatamento. Nestas áreas, notou-se uma mudança de alvo dos caçadores, de grandes mamíferos e répteis para pequenas aves, muitas vezes pegas em maiores quantidades como forma de compensar o tamanho do animal.
“O mais preocupante é que, mesmo uma área afetada como a Caatinga, uma área que já foi muito desmatada, muito destruída, continua tendo caça. Não tem mais a caça dos animais de grande porte, porque eles sumiram dali, foram extintos. Mas continua tendo caça dos pequenos, então não tem limite. É uma caça ao longo da cadeia, em que se vai perdendo bicho, ficando cada vez mais difícil para mais espécies, inclusive as espécies de menor porte, sobreviver”, afirma El Bizri.
Os impactos negativos da caça sobre a fauna brasileira ganham ainda mais força porque se somam às diferentes pressões humanas ao meio ambiente, como pontua o biólogo e pesquisador da Rede Fauna, André Pinassi Antunes.
“Eu acho que sempre teve no Brasil esse tipo de caça”, diz ele. “Isso era cultural. Imagina quantos homens não se juntavam na década de 60 para ir para o Pantanal fazer esse tipo de coisa. Isso sempre aconteceu como diversão, mas eu acho que o que a gente está vendo hoje é a perda de várias áreas íntegras, um desmatamento muito grande, intenso, cada vez menos áreas naturais e mais gente. Então hoje o impacto [da caça] é diferente. Uma coisa vai levando à outra e aí a gente perde o controle”.
Sem medo de represália
O estudo traz à tona a impunidade diante de crimes ambientais e a fácil disseminação de conteúdos relacionados a práticas ilegais em redes sociais no Brasil.
“A gente consegue ter uma visão melhor do quanto as mídias sociais estão sendo utilizadas para disseminação desse tipo de informação, e uma informação que está sendo compartilhada sem nenhum medo; tanto que a gente entrou em grupos que não tinham qualquer restrição, grupos abertos”, diz Marcela Álvares Oliveira, pesquisadora e professora do programa de pós-graduação da Universidade Federal de Rondônia e uma das autoras do estudo “Atividades que são ilegais estão se tornando muito mais fáceis de serem compartilhadas, distribuídas e, ao mesmo tempo, fomentadas pelas redes sociais. E sem nenhum medo de represália.”
“Tanto o resultado científico quanto o social são importantes para a gente pensar quais são realmente as diretrizes que o nosso país deve tomar frente à caça [ilegal]. Qual é o limite das liberdades de expressão que nós podemos ter nas mídias sociais, pensando, principalmente, na divulgação de crimes, que acontece com total liberdade e sem nenhuma onerosidade para o criminoso”, completa Oliveira.
A exposição na internet de animais mortos por caça ilegal revela uma outra característica da prática, a chamada ‘caça de troféu’, em que o abate é tido como uma conquista.
“Eu sou totalmente a favor da caça de subsistência, realizada pelos povos indígenas e comunidades tradicionais”, avalia Antunes. “Trabalho há mais de 15 anos diretamente com eles. É totalmente justificável, porque é da própria cosmologia desses povos e de uma importância nutricional que é fundamental. Eu nunca vi uma manifestação de desrespeito desses povos. Agora, você matar para se divertir, postar uma foto… a diferença é um abismo.”.
Para Oliveira, é preciso que a rede de fiscalização ambiental tenha uma frente que atue especificamente nas redes sociais, e para isso serão necessários agentes especializados.
“A gente tem uma lei no Brasil muito clara em relação a crimes contra fauna. O Facebook é americano. A lei dos Estados Unidos é muito diferente da nossa lei em relação a isso, o que favorece que essas redes sociais se instalem em diferentes localidades, sem respeitar as leis desses países. A rede social favorece que as pessoas se sintam seguras, dá uma liberdade de expressão que foge do parâmetro da ética. Eles usam o argumento de que o grupo não está hospedado no Brasil, está hospedado nos Estados Unidos.”
A pesquisadora defende ainda a educação como uma das ações prioritárias para combater crimes ambientais. “Estamos focados que o aluno entre numa faculdade, que ganhe uma boa pontuação no Enem. Não estamos preocupados em educar um cidadão, em ensinar porque isso é um crime”, ressalta.
El Bizri explica que não há solução simples para o problema. Para ele, as medidas vão de mudanças culturais à disseminação de informações sobre os riscos de doenças causadas pela proximidade entre pessoas e animais silvestres e o controle de armas de fogo. Mas, o pesquisador acredita que a regulação efetiva dos conteúdos das redes sociais é um primeiro e significativo passo.
“Criar oportunidades para que haja essas comunidades instiga, faz com que essas pessoas perdurem naquela atividade, naquele crime. São pessoas que estão ali reforçando a identidade do caçador esportivo, que pode caçar e que está impune, que não tem nenhum problema. De alguma forma, barrando essas conexões, talvez se consiga também limitar que a atividade aconteça. Se a foto é um troféu, ela deixa de ser. Isso não vale só para o Facebook, tem várias outras, talvez até mais problemáticas, porque são aquelas em que a coisa não é tão aberta”, diz o pesquisador
Em 2022, a empresa Meta, proprietária do Facebook, WhatsApp e Instagram, foi multada pelo Ibama em 2 milhões de dólares – cerca de 10 milhões de reais – pela divulgação de 2.227 anúncios de venda ilegal de animais silvestres nas plataformas. A empresa nega ter recebido a notificação.
Procurada pela reportagem, a assessoria de imprensa do Facebook não se manifestou até o fechamento da matéria.
Conexão China-Amazônia: cresce o tráfico de vida silvestre para a Ásia
Imagem do banner: foto de aves caçadas ilegalmente exibida em grupo do Facebook