Pesquisadores avaliaram os impactos das mudanças climáticas em 209 espécies de cobras peçonhentas até 2070; a conclusão: enquanto algumas espécies podem desaparecer, outras podem se expandir para novas regiões.
Serpentes peçonhentas estão entre os animais mais perigosos do planeta, responsáveis por pelo menos 80 mil mortes ao ano — a maioria em países pobres, com baixa capacidade de produção de soro antiofídico.
Outro impacto na saúde pública é a redução na fabricação de medicamentos: o veneno dessas serpentes tem grande potencial farmacológico, usado no combate a males que vão do câncer à insuficiência cardíaca.
Haverá também um desequilíbrio nos ecossistemas, pois cobras possuem papel fundamental de controle da população de outros animais, como roedores, também vetores de doenças.
Encontrada nas florestas do oeste da África subsaariana, a víbora-do-gabão (Bitis rhinoceros) é considerada uma das cobras mais peçonhentas que existe. Apesar de se movimentar lentamente, ela pode atacar de maneira súbita, para frente ou para os lados. Uma pequena dose de seu veneno é mortal. Em um futuro com temperaturas mais elevadas, essa serpente pode expandir sua área de distribuição em 250%, migrando para regiões onde ela não era observada até então. Isso pode significar um aumento no número de pessoas picadas e um preocupante desequilíbrio ambiental.
A projeção do possível deslocamento da víbora-do-gabão faz parte de um estudo realizado por pesquisadores internacionais e liderado por Pablo Ariel Martinez, professor do Departamento de Biologia da Universidade Federal de Sergipe. Usando modelos computacionais com diferentes variações climáticas para as próximas décadas, o grupo fez uma previsão do que pode acontecer com 209 espécies de cobras peçonhentas até 2070.
O resultado da análise, publicado na revista científica sobre medicina The Lancet, alerta sobre os impactos dessa mudança na distribuição geográfica de serpentes na saúde pública e na biodiversidade.
“As mudanças climáticas afetam a distribuição das espécies porque elas têm tolerâncias fisiológicas, pois só conseguem sobreviver e se reproduzir diante de algumas condições climáticas”, explica Martinez. “Se a temperatura fica mais alta, elas podem se dispersar em busca de um clima mais frio e migrar para áreas mais ao norte ou ao sul do planeta. Espécies não respondem a barreiras políticas.”
A projeção apontou que a Ásia deverá ser o continente com a mais alta migração de serpentes. Nepal, Níger, Namíbia, China e Myanmar serão alguns dos países mais suscetíveis a presenciar a chegada de cobras peçonhentas de nações vizinhas.
Em Bangladesh, por exemplo, recentemente hospitais e clínicas de saúde foram alertados pelo Ministério do Meio Ambiente, Florestas e Mudança do Clima sobre o aumento do número de casos de pessoas picadas pela víbora-de-russell (Daboia russelii) e a necessidade de terem estoque de antiveneno. A espécie, considerada a mais perigosa do subcontinente indiano, foi declarada extinta no país em 2002, mas parece ter se adaptado a novas condições climáticas e, com a expansão da agricultura, se espalhou por várias regiões.
Milhares de mortes por ano
Cerca de 5,4 milhões de pessoas são picadas por cobras anualmente no mundo. O número de mortes varia de 81 mil a 137 mil, e uma quantidade ainda maior de vítimas precisa sofrer amputações ou viver com sequelas permanentes causadas por esses acidentes. Os dados são da Organização Mundial da Saúde (OMS), que classifica esse como um grave problema de saúde pública, negligenciado em muitos países tropicais e subtropicais.
“As serpentes peçonhentas fazem parte do grupo [de animais] que mais causa mortes por acidentes no planeta”, confirma Martinez.
A grande maioria dos casos de picadas ocorre na África, Ásia e América Latina. Só no continente asiático, estima-se que, por ano, 2 milhões de pessoas sejam envenenadas por serpentes. Os mais afetados são mulheres, crianças e agricultores de comunidades rurais pobres. E o fardo econômico recai, consequentemente, em sistemas públicos de saúde de nações com recursos médicos escassos.
“Assim como qualquer produto, o desenvolvimento de um soro requer alto investimento e a participação de grupos multidisciplinares, em um processo semelhante ao de qualquer outro novo medicamento, que passa pela etapa de pesquisa, primeiros testes em laboratório até a fase pré-clínica”, explica Fan Hui Wen, diretora técnica do Núcleo de Produção de Soros do Instituto Butantan, em São Paulo.
Ela ressalta ainda como a questão do tempo de resposta é primordial para salvar vidas em casos de picadas de cobras mais venenosas, sobretudo quando são espécies exóticas, ou seja, nativas de outros países.
“Para todos os tipos de acidentes ofídicos, o tempo é fundamental. Quanto menor o intervalo entre o acidente e o tratamento, maior a chance de recuperação e menor o risco de complicações. No caso dos acidentes por jararaca e cascavel, que são os mais comuns no Brasil, estima-se de três a quatro horas como o tempo ideal. A partir de seis a doze horas, começa a aumentar o risco de ter alguma complicação”.
A recomendação é que governos se adiantem a esse cenário de migração e se preparem para o que pode acontecer daqui a algumas décadas. Em geral, antivenenos só são produzidos para espécies locais, e quando há um acidente com uma cobra exótica, ele precisa ser importado.
“A chegada de novas espécies exigirá uma logística de treinamento de profissionais de saúde e produção ou compra do antiveneno para aquelas espécies, que demanda planejamento. A atenção a esta problemática deve ser desenvolvida a longo prazo, uma vez que nossas previsões são para 2070, o que irá exigir um compromisso duradouro dos governantes”, afirma Irene Teixeira, pesquisadora da Universidade Federal de Sergipe e uma das coautoras do artigo.
Migração de espécies em alguns países, extinção em outros
O estudo publicado na The Lancet mostra duas faces do impacto do aumento da temperatura global sobre as espécies de serpentes analisadas. Se por um lado algumas delas devem migrar para novas áreas, por outro, muitas podem apresentar redução significativa de suas populações, ou até serem extintas por causa da perda de áreas habitáveis. É o que poderá ser observado no sul da África e na América do Sul.
“A floresta amazônica pode apresentar grandes perdas, assim como todo o Brasil, que representa a maior parte do continente”, revela Irene.
Entre as espécies citadas que apresentam grande chance de não encontrar mais condições climáticas para sobreviver estão a jararaca-centro-americana (Bothrops asper), a surucucu (Lachesis muta), a tamagá (Porthidium nasutum), a jararaca-vermelha (Bothrops brazili) e a coral-de-cauda-vermelha (Micrurus mipartitus). Algumas delas podem ter até 70% de seus habitats reduzidos.
O autor principal do artigo explica que fatores como a mudança de temperatura e precipitação (chuvas) influem na sobrevivência das serpentes. Assim como os anfíbios, esses répteis são ectotérmicos, ou seja, dependem das condições externas para regular a temperatura de seus corpos.
“Há espécies que se dão bem em áreas mais áridas e outras em úmidas. Mas a maior diversidade de espécies ocorre em florestas tropicais, de clima quente e úmido. Todavia, com a mudança climática, ocorre que as zonas tropicais estão ficando menores e as áridas expandindo”, diz Martinez.
Com isso, as cobras de climas áridos ampliarão sua área de distribuição, como o que mostra o cenário previsto pelo estudo para os países asiáticos e africanos.
Desequilíbrio ambiental e perdas bioeconômicas
A possível diminuição de espécies de serpentes em algumas regiões causará, inevitavelmente, impactos sobre ecossistemas. Cobras cumprem um importante papel em seus ambientes, controlando a população de vários outros animais, como os roedores, por exemplo, que provocam uma série de doenças.
Todavia, há outro efeito menos conhecido. “O veneno das serpentes tem um potencial farmacológico absurdo. É utilizado para a fabricação de fármacos para diversas doenças – neurológicas, cardíacas, câncer”, destaca o professor da Universidade Federal de Sergipe. “Esses venenos são dinheiro e essa diversidade está nos países tropicais”.
Um medicamento muito usado no mundo para o tratamento de hipertensão arterial e insuficiência cardíaca, o captopril, foi desenvolvido através do isolamento de dois peptídeos presentes na peçonha da jararaca-da-mata (Bothrops jararaca), encontrada em ambiente úmidos, como beira de rios e córregos, da Bahia ao Rio Grande do Sul, e em regiões adjacentes no Paraguai e Argentina.
Assim como o captopril, dezenas de outros remédios têm origem em moléculas provenientes desses répteis. Mas ainda há muitas espécies que cientistas sequer conhecem ou descreveram, que podem dar origem a futuros medicamentos e que também podem se perder.
“Com as mudanças climáticas, a maioria das espécies de serpentes peçonhentas de importância médica irá perder área no futuro”, alerta Irene Teixeira. “Como ecóloga, os possíveis impactos ecológicos dessas perdas me assustam, especialmente porque desequilíbrios nos ecossistemas sempre impactam a saúde humana, como pudemos ver com a pandemia da covid-19.”
https://brasil-mongabay-com.mongabay.com/2021/03/corrida-contra-o-tempo-para-salvar-as-serpentes-e-lagartos-do-cerrado/
Imagem do banner: Jararaca-da-mata (Bothrops jararaca). Foto: Mateus Serrer/Comunicação Butantan