A Mongabay está lançando uma nova edição do livro “Uma Tempestade Perfeita na Amazônia”; a obra está sendo publicada em versão online, por partes e em três idiomas: espanhol, inglês e português.
O autor, Timothy J. Killeen, é um acadêmico e especialista que estuda desde a década de 1980 as florestas tropicais do Brasil e da Bolívia, onde viveu por mais de 35 anos.
Narrando os esforços de nove países amazônicos para conter o desmatamento, esta edição oferece uma visão geral dos temas mais relevantes para a conservação da biodiversidade da região, serviços ecossistêmicos e culturas indígenas, bem como uma descrição dos modelos de desenvolvimento convencional e sustentável que estão competindo por espaço na economia regional.
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O curso principal do rio Amazonas tem fornecido acesso a navios oceânicos de carga há séculos, incluindo modernos navios porta-contêineres que atendem ao setor de manufatura em Manaus e transportadores de minério que transportam bauxita de perto de Oriximiná (Pará) e minério de ferro e manganês de Santana (Amapá).
O primeiro terminal moderno de grãos, construído em Itacoatiara em 1998, em frente à foz do Rio Madeira (Amazonas), foi seguido em 2003 por um em Santarém (Pará), na foz do Tapajós, em 2014 em Barcarena, perto de Belém (Pará), na foz do Tocantins, e em 2016 em Santana (Amapá), no lado norte do delta do Amazonas. Esses terminais estão atualmente recebendo grãos de instalações de carregamento de barcaças, localizadas no topo dos três principais corredores de transporte, cada um dos quais desenvolveu, ou pretende desenvolver uma hidrovia industrial, conhecida como hidrovia.
No trecho do rio conhecido como Solimões, mais acima de Manaus, o tráfego fluvial diminui em várias escalas de importância porque não há minas industriais ou paisagens agrícolas que produzam commodities em quantidades necessárias para suportar um sistema de transporte a granel. Sabe-se que alguns navios de carga oceânicos que transportam madeira operam esporadicamente a partir de Iquitos (Peru) ou entregam maquinário pesado exigido pelo setor de petróleo e gás em Coari (Amazonas) e Iquitos. O tráfego fluvial consiste, em grande parte, em barcos fluviais que fornecem combustível e bens de consumo para as comunidades ribeirinhas (HML nº 3), navios de cruzeiro que atendem aos turistas no Rio Negro e madeira para o setor de manufatura em Manaus ou para exportação para mercados estrangeiros. Há um aumento na atividade na área da tríplice fronteira em torno de Tabatinga (Brasil), Letícia (Colômbia) e Santa Rosa de Yavarí (Peru).
A aspiração de criar uma hidrovia industrial entre o Brasil e as repúblicas andinas é um componente importante do portfólio de investimentos da IIRSA, que inclui dezoito projetos organizados em quatro grupos com um orçamento total de US$ 530 milhões. Essa coleção de projetos propostos e concluídos representa um esforço louvável para oferecer opções de transporte sustentáveis que minimizem a necessidade de estradas. Infelizmente, a maioria dos investimentos em portos fluviais no piemonte andino é semelhante à abordagem do Campo dos Sonhos para o planejamento de infraestrutura: Se você construir, eles virão.
Não há carga a granel comercialmente relevante em ambas direções entre o Brasil e os países andinos, enquanto os produtos manufaturados produzidos em Manaus provavelmente não serão competitivos com produtos similares do Leste Asiático. Isso não significa, entretanto, que não sejam “bons” investimentos. Elas fornecem serviços essenciais a muitas comunidades isoladas da região, às quais está sendo negado o acesso às estradas em nome da conservação da floresta. Dessa forma, seu desenvolvimento não deve ser visto como um investimento que se pagará por si só, mas como um subsídio para apoiar os meios de subsistência baseados na natureza.
Ironicamente, o único exemplo em que uma hidrovia poderia apoiar um sistema de transporte comercial autossuficiente tem a oposição de defensores ambientais e sociais: a Hidrovia Amazônica entre Iquitos, Yurimaguas, Pucallpa e Sarameriza, no Peru. A resistência se baseia, em parte, nos impactos causados pelas operações de dragagem em seções problemáticas do rio, mas também pelos atuais operadores e habitantes, incluindo comunidades indígenas, que temem ser explorados pela concessionária que recebeu o contrato para melhorar e operar a hidrovia.
Rio Madeira
O maior afluente do Amazonas funciona como corredor fluvial há milênios e foi uma importante artéria comercial durante o boom da borracha nos séculos XIX e XX. Desde 1998, passou por um renascimento comercial devido ao transporte de soja e milho, e Porto Velho é agora um dos portos mais movimentados da Amazônia.
Historicamente, a navegação entre o Madeira e seus afluentes da bacia hidrográfica superior (Itenez/Guaporé , Mamoré, Beni e Madre de Díos) era bloqueada por vários afloramentos rochosos distribuídos ao longo de aproximadamente 200 quilômetros entre Porto Velho e Guajará-Mirim. Cerca de metade dessas corredeiras foi inundada pelas barragens construídas em Santo Antônio e Jirau, enquanto o restante seria inundado pelas duas barragens que foram propostas para construção futura.
Em 2013, o Ministério dos Transportes do Brasil avaliou a factibilidade de estender a hidrovia do Madeira para além de Porto Velho, e confirmou que a construção das duas barragens adicionais resolveria os bloqueios físicos que impedem a navegação. Se todas as quatro barragens fossem melhoradas com a construção de eclusas, a navegação pela hidrovia do Madeira estenderia o transporte fluvial para o centro do Mato Grosso (1.200 quilômetros pelo Guaporé), as fronteiras agrícolas do Chapare e de Guarayos (1.000 quilômetros pelo Mamoré), os Yungas bolivianos (500 quilômetros pelo Rio Beni) e o sul do Peru (1.000 quilômetros pelo Madre de Díos).
A Agência Nacional de Transportes Aquaviários (ANTAQ), órgão que administra as hidrovias comerciais do Brasil, considera o Guaporé uma hidrovia economicamente importante e, em algumas ocasiões, apoiou sua extensão. No entanto, o estudo de viabilidade de 2013 identificou atributos físicos, como águas sazonalmente rasas e sinuosidade excessiva, que limitam sua utilidade como hidrovia industrial, além de destacar a presença de territórios indígenas na Bolívia e em Rondônia que complicariam seu desenvolvimento. O setor de agronegócios não demonstra interesse em desenvolver o Guaporé como uma hidrovia de transporte a granel, presumivelmente porque o custo não seria competitivo em relação ao transporte ferroviário.
Os defensores mais entusiastas de uma hidrovia Madeira-Mamoré de maior extensão sempre foram os políticos bolivianos que sonham em converter suas províncias de terras baixas em celeiros agrícolas. Essa aspiração pode ser outro exemplo da síndrome do “se você construir, eles virão”; no entanto, o governo regional de Beni aprovou uma nova estrutura de planejamento de uso da terra que legaliza a conversão de um milhão de hectares de habitat de savana para o cultivo de soja, milho e arroz, que tem o apoio do governo central e do setor de agronegócio de Santa Cruz.
Rio Tapajós
O Ministério dos Transportes do Brasil e o setor do agronegócio veem o rio Tapajós como uma hidrovia estrategicamente importante localizada entre as fazendas mais produtivas do Mato Grosso e os terminais de grãos no rio Amazonas. É, no entanto, um rio tecnicamente desafiador com várias corredeiras que limitam sua navegabilidade durante doze meses do ano. O Tapajós só pode ser usado como hidrovia industrial se uma série de barragens (entre três e seis) for construída para criar lagos que inundam as corredeiras mais problemáticas e regular os fluxos de água necessários para garantir o trânsito por barcaça.
A hidrovia foi selecionada para desenvolvimento prioritário no final da década de 2010, e foi iniciada a construção de quatro barragens na parte superior da bacia: Teles-Pires, São Manuel, Sinop e Colíder. O processo de licenciamento ambiental foi iniciado para São Miguel do Tapajós, a maior e mais baixa barragem, enquanto o desenvolvimento das duas barragens localizadas na seção média do rio (Chacarão e Jatobá) foi colocado em pauta para avaliação futura.
Após a reação política que acompanhou a construção do complexo hidrelétrico de Belo Monte e os escândalos de corrupção que prejudicaram as barragens no Rio Madeira, o apoio político ao projeto de São Miguel diminuiu e as autoridades ambientais negaram com sucesso a aprovação de sua licença ambiental. Essa determinação eliminou de fato o projeto da hidrovia Tapajós – Tele Pires, pois as três barragens inferiores são elementos fundamentais e, se qualquer uma delas for eliminada, a hidrovia deixará de funcionar.
Atualmente, o Tapajós é navegável por 300 quilômetros entre sua foz e as cidades gêmeas de Itaituba e Miritituba, localizadas uma em frente à outra no topo de um vale naturalmente inundado situado na base da fronteira norte do Escudo Brasileiro. Itaituba é a maior das duas cidades e a capital do município, mas Miritituba está localizada perto da interseção da BR-163 e da BR-230, o que a torna o local preferido para a construção de instalações logísticas para o carregamento de barcaças para o transbordo aos terminais de grãos no tronco principal do rio Amazonas.
A menos que o Congresso brasileiro atue para criar um mecanismo legal que anule a Constituição de 1988, ou que o povo indígena Munduruku modifique sua oposição às barragens, a hidrovia do Tapajós ficará limitada à seção entre Miritituba e o rio Amazonas.
Tocantins e Araguaia
Esses dois rios paralelos drenam as paisagens entre as terras altas da região central do Mato Grosso e o oeste da Bahia; consequentemente, estão estrategicamente localizados para fornecer uma opção de transporte para duas das paisagens agrícolas mais importantes do Brasil. Ambos são candidatos ao desenvolvimento de hidrovias, mas diferem em suas características físicas e na complexidade dos desafios sociais e ambientais que acompanham o desenvolvimento de uma hidrovia industrial. Os dois rios se unem em Marabá e fluem para o norte em direção à represa de Tucuruí, que foi equipada com eclusas em 2010, criando o primeiro ativo essencial no sistema hidroviário Araguaia-Tocantins.
O rio Araguaia requer menos investimentos em barragens e eclusas (Santa Isabela e Araguanã), mas sofre com os baixos níveis de água sazonais devido à sua ampla planície de inundação. Em contraste, o Tocantins tem um vale de rio relativamente confinado, mas com inúmeros afloramentos rochosos que exigem a construção de várias barragens e suas eclusas associadas.
Em 2013, o Ministério dos Transportes decidiu limitar seus investimentos em hidrovias ao Tocantins, em parte devido à existência de duas barragens (Estreito e Lajeado) e à construção planejada de três unidades hidrelétricas adicionais (Marabá, Serra Quebrada e Tupiratins). A decisão de não prosseguir com a hidrovia do Araguaia evitou o inevitável confronto sobre a operação de uma hidrovia industrial na fronteira de um grande território indígena (TI Araguaia) e duas áreas protegidas (PN do Araguaia e PE do Cantão).
O inevitável confronto com os defensores do meio ambiente começou com a dificuldade em se obter uma licença ambiental para modificar o canal do Rio Tocantins no Pedral do Lourenço, um enorme afloramento rochoso situado entre o reservatório de Tucuruí e a cidade de Marabá. Esse trecho do baixo Tocantins é navegável durante as estações de águas altas, mas uma hidrovia industrial deve estar aberta doze meses por ano para ser economicamente viável.
As propostas para dinamitar um canal através do Pedral afetariam o habitat de nidificação de duas espécies de tartarugas aquáticas, uma espécie endêmica de golfinho e bagres migratórios que já sofreram declínios populacionais causados pela construção da barragem de Tucuruí. O atraso na aprovação da licença congelou o uso da hidrovia por quase dez anos, apesar do forte apoio das autoridades nacionais e estaduais e das demandas de investidores privados que investiram um capital financeiro significativo no desenvolvimento de instalações portuárias em Barcarena, Marabá e Imperatriz (Tocantins).
O desenvolvimento da hidrovia do Tocantins acima de Marabá não é nada garantido. Para chegar à fronteira com o estado de Goiás – a meta do Ministério dos Transportes – seria necessária a construção de mais três barragens de grande porte, ao custo de US$ 5 a US$ 10 bilhões, e a instalação de eclusas em todas as cinco usinas hidrelétricas, ao custo de aproximadamente US$ 100 milhões cada. Outros impedimentos incluem a necessidade de construir estradas de acesso entre as fazendas no Mato Grosso e a hidrovia, o que implicaria a construção de uma rodovia que atravessaria um enorme complexo de áreas úmidas (Ilha de Bananal) que faz parte do território indígena Araguaia.
Paraná – Paraguai
Essa hidrovia não amazônica é navegável entre Corumbá (Mato Grosso do Sul) e portos na Argentina e no Uruguai; ela é usada por empresas de mineração que operam perto de Corumbá, mas não é um corredor de exportação para commodities agrícolas brasileiras. No entanto, é um ativo de transporte essencial para a agroindústria boliviana, cujos produtores em Santa Cruz (HML nº 31) estão a 2.000 quilômetros do porto atlântico mais próximo.
Os portos do Pacífico estão mais próximos, a 1.500 quilômetros, mas estão situados do outro lado de uma barreira de 5.000 metros de altura, por meio de estradas que não foram projetadas para caminhões de grãos de alta capacidade. Os produtores de soja da Bolívia são absolutamente dependentes do Rio Paraguai e de um sistema ferroviário antigo, sem o qual não poderiam competir nos mercados globais.
“Uma tempestade perfeita na Amazônia” é um livro de Timothy Killeen que contém as opiniões e análises do autor. A segunda edição foi publicada pela editora britânica The White Horse em 2021, sob os termos de uma licença Creative Commons (licença CC BY 4.0).