A Mongabay está lançando uma nova edição do livro “Uma Tempestade Perfeita na Amazônia”; a obra está sendo publicada em versão online, por partes e em três idiomas: espanhol, inglês e português.
O autor, Timothy J. Killeen, é um acadêmico e especialista que estuda desde a década de 1980 as florestas tropicais do Brasil e da Bolívia, onde viveu por mais de 35 anos.
Narrando os esforços de nove países amazônicos para conter o desmatamento, esta edição oferece uma visão geral dos temas mais relevantes para a conservação da biodiversidade da região, serviços ecossistêmicos e culturas indígenas, bem como uma descrição dos modelos de desenvolvimento convencional e sustentável que estão competindo por espaço na economia regional.
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O Rio Madeira foi o próximo afluente amazônico a atrair a atenção dos promotores de energia hidrelétrica do Brasil. O rio não tem corredeiras, pois flui ao longo da borda ocidental do Escudo Brasileiro por cerca de 1.300 quilômetros entre Porto Velho (Rondônia) e sua junção com o Rio Amazonas perto de Itacoatiara (Amazonas). A montante, a bacia hidrográfica é drenada por quatro grandes afluentes (Itenez/Guaporé, Mamoré, Beni e Madre de Díos); as bacias superior e inferior são separadas por aproximadamente 250 quilômetros, onde quatro grupos de corredeiras oferecem uma oportunidade única de gerar energia a partir de um enorme volume de água coletado de uma bacia hidrográfica de aproximadamente um milhão de quilômetros quadrados.
Leia aqui o texto em inglês e espanhol
Entre 2005 e 2015, durante as administrações do Presidente Lula da Silva e de sua sucessora, Dilma Rousseff, o Estado brasileiro construiu duas barragens de grande escala: Santo Antônio, localizada logo acima de Porto Velho; e Jirau, localizada 110 quilômetros rio acima, perto da fronteira com a Bolívia. Eventualmente, o complexo hidrelétrico do Madeira poderá incluir duas barragens adicionais: Binacional, que estaria localizada 150 quilômetros a montante de Jirau, na fronteira com a Bolívia; e Cachuela Esperanza, que estaria localizada a outros 50 quilômetros a montante, no Madre de Díos, dentro das fronteiras nacionais da Bolívia.
Todas essas instalações são, ou serão, instalações R-o-R porque os locais não são adequados para represas altas e grandes reservatórios. Cada uma delas estará localizada logo abaixo das corredeiras de pedras, onde uma barragem baixo nível acionará uma usina de energia com pequenos reservatórios entre 20.000 e 25.000 hectares.
O governo brasileiro acelerou o projeto, a análise ambiental e a construção de Santo Antônio e Jirau. As licenças ambientais foram aprovadas em 2008, e as primeiras turbinas estavam operando em 2012; a inauguração da última bateria de turbinas foi finalizada em 2017. A fim de gerenciar os riscos financeiros e operacionais inerentes a dois grandes projetos construídos simultaneamente, o governo criou processos de licitação paralelos. Cada barragem foi construída e agora é operada por consórcios diferentes: Energia San Antônio e Energia Sustentável do Brasil. O financiamento foi distribuído entre vários bancos nacionais, com o BNDES atuando como a principal fonte de capital de investimento; ambos foram incluídos na carteira da IIRSA devido ao seu potencial para facilitar o desenvolvimento da hidrovia do Madeira. O custo combinado original foi projetado em R$ 25 bilhões, mas os desafios técnicos fizeram com que o orçamento aumentasse para um valor estimado de R$ 43 bilhões ao final do projeto.
As duas instalações são consideradas a energia hidrelétrica mais cara do continente. O custo da energia é exacerbado pela distância dos mercados consumidores, o que exigiu um investimento adicional de US$ 3,8 bilhões para uma linha de transmissão de alta tensão em corrente contínua (HVDC) de 2.400 quilômetros (600 kV) entre Porto Velho e Araraquara (São Paulo). A construção da linha HVDC foi concluída em 2013; no entanto, uma auditoria técnica em 2017 revelou uma falha de projeto que reduziu a capacidade de transmissão em 25%. Ironicamente, as usinas nunca operaram com capacidade total e, consequentemente, o sistema evitou danos que poderiam ter sido causados por um desequilíbrio entre a geração e a capacidade de transmissão.
Tanto a licitação quanto os processos de supervisão da construção foram questionados por alegações – e, por fim, provas – de corrupção no escândalo da Lava Jato. As provas apresentadas no tribunal indicam que (pelo menos) dois por cento dos contratos originais foram pagos em propinas pelas empresas de construção a políticos individuais e seus partidos. No entanto, esse valor não capta o custo inflacionado da construção real que se reflete nos oitenta por cento de custos excedentes. Teoricamente, essas perdas deveriam ser assumidas pelas concessionárias que operam as usinas de energia, mas, como empresas de serviços públicos regulamentadas, elas provavelmente terão permissão para repassar o custo total (não penal) ao consumidor por meio de contas de eletricidade inflacionadas.
Da mesma forma, não é provável que os custos associados aos impactos ambientais sejam assumidos pelas empresas operadoras. Por exemplo, a altura das represas foi aumentada após a conclusão da análise ambiental formal, o que levou a um erro de cálculo na capacidade do vertedouro e no tamanho do corpo d’água localizado entre as duas represas. Essa falha de projeto levou a inundações imprevistas em anos chuvosos com níveis extremos de fluxo de água. Embora recursos tenham sido destinados para ajudar as famílias a reconstruir ou realocar, as empresas conseguiram evitar a responsabilidade legal pelas irregularidades no processo de revisão ambiental.
Durante a fase de planejamento e construção, o governo brasileiro basicamente ignorou as questões legais relacionadas aos possíveis impactos ambientais em um rio internacional. O governo boliviano se recusou a protestar ou solicitar um estudo de impacto ambiental internacional, o que teria sido amplamente justificado considerando o conhecido impacto potencial sobre os peixes migratórios. Quatro governos bolivianos consecutivos permaneceram em silêncio durante os estágios de planejamento, presumivelmente porque todos esperavam a eventual conclusão das duas barragens a montante que incluiriam a Bolívia como parceira.
A colaboração dos governos brasileiro e boliviano para concluir as duas hidrelétricas restantes é um componente explícito do portfólio de investimentos da IIRSA. Os dois projetos na fronteira com a Bolívia permanecem em espera, em parte porque o fornecimento de energia no Brasil atualmente satisfaz o consumo regional e nacional, mas isso inevitavelmente mudará com o crescimento da economia brasileira. A linha de transmissão HVDC existente pode ser expandida para fornecer capacidade adicional, o que aumenta a viabilidade dos projetos bolivianos.
“Uma tempestade perfeita na Amazônia” é um livro de Timothy Killeen que contém as opiniões e análises do autor. A segunda edição foi publicada pela editora britânica The White Horse em 2021, sob os termos de uma licença Creative Commons (licença CC BY 4.0).