A CoopCerrado, cooperativa que reúne 5 mil famílias, ganhou o Prêmio Equador da ONU por suas mais de duas décadas de trabalho no desenvolvimento de um modelo de apoio mútuo entre agricultores para treinamento, comercialização e estabelecimento da produção orgânica e regenerativa no Cerrado.
Para salvar o Cerrado, agricultores e comunidades extrativistas tradicionais desenvolveram um modelo expansível de apoio coletivo para compartilhar conhecimentos e recursos, ao mesmo tempo em que restauram o bioma e fornecem renda para milhares de famílias vulneráveis.
Os obstáculos burocráticos e logísticos costumam excluir os pequenos agricultores e as comunidades tradicionais dos mercados e indústrias; uma das chaves do sucesso da cooperativa é exatamente conseguir preencher essa lacuna.
Os membros da cooperativa hoje coletam e comercializam 170 espécies nativas do Cerrado; para a vagem da faveira, usada na fabricação de medicamentos para a pressão alta, conseguiram aumentar o preço em 1.000% quando deixaram de depender de atravessadores.
Quando a agricultora Mônica de Souza Ribeiro se mudou para seu assentamento sem-terra em Guapó, Goiás, no final dos anos 1990, ficou espantada com a enorme quantidade de agrotóxicos e produtos químicos usados na região, dominada pelo gado e pela soja. Primeiro ela aderiu à prática, usando fertilizantes químicos para plantar os vegetais que vendia em seu negócio familiar, mas à medida que o tempo passava, ficava cada vez mais preocupada com a destruição que via à sua volta.
O Cerrado abriga 5% da biodiversidade do mundo, mas quase metade de sua vegetação natural foi destruída para dar lugar ao agronegócio – na maior parte monoculturas de soja e milho, além de pastagens de gado. A vasta destruição contribui para o processo de desertificação da região, ameaçando a estabilidade climática regional, a biodiversidade e o fornecimento de energia e alimentos no país.
“Quando mudamos para cá, eu não via nenhum passarinho. O veneno matava tudo”, diz Ribeiro. “Eu queria cuidar da natureza e do Cerrado, mas não sabia como.”
Isso mudou quando ela entrou para a CoopCerrado, hoje uma cooperativa de 5 mil famílias de agricultores orgânicos e vencedora do Prêmio Equador da ONU em 2021 na categoria “New Nature Economies” (Novas Economias Baseadas na Natureza, em tradução livre) por sua luta de duas décadas para tornar a produção regenerativa e orgânica possível para os pequenos produtores. A CoopCerrado é hoje composta por 238 pequenas propriedades e comunidades tradicionais localizadas ao longo de cinco estados que fazem parte do coração do agronegócio brasileiro.
A vida ficou mais difícil para as comunidades vulneráveis da região sob o governo do antiambientalista Jair Bolsonaro. À medida que as pressões econômicas e políticas continuam favorecendo o poderoso lobby do agronegócio, as comunidades tradicionais se veem sob uma ameaça crescente de expulsões violentas, e os conflitos por terras bateram recordes no ano passado. E mesmo enquanto a pandemia de covid-19 continua afetando o setor, enterrando um número considerável de pequenas empresas, a cooperativa oferece um vislumbre de esperança.
“A cooperativa se manteve como um modelo efetivo para o uso sustentável de um bioma vulnerável, comercializando com sucesso mais de 170 produtos florestais não madeireiros”, informa Anna Medri, analista sênior do Programa de Desenvolvimento da ONU. “Ela oferece um modelo para as cadeias de fornecimento sustentáveis que deixam os ecossistemas intactos.” Como reconhecimento a essa iniciativa, a Coopcerrado recebeu da ONU em 2021 o Prêmio Equador.
Menos exploração e mais conservação
Há vinte anos, a extração excessiva da vagem da faveira (Dimorphandra mollis) estava prejudicando o Cerrado e explorando os coletores. Com a alta demanda das companhias farmacêuticas pela planta, que é rica em vários flavonoides usados na fabricação de medicamentos para pressão alta, atravessadores obtinham a vagem dos habitantes mais vulneráveis da região, com frequência mulheres e crianças sem-terra.
Na época, o custo da vagem era de apenas R$ 0,22, corrigidos pela inflação. Quem colhia os frutos mal conseguia sobreviver, conta Alessandra Silva, coordenadora da CoopCerrado e uma das integrantes mais antigas da cooperativa. A vagem da faveira também era tão barata in natura que podia ser trocada pelo mesmo peso de sal.
“O preço pago para os coletores era o mais baixo possível. Era desvalorizado pela rede de fornecimento exploratória, e o meio ambiente também sofria”, diz Silva. “Ninguém tinha incentivo para proteger a natureza.”
O primeiro projeto da cooperativa, em 2000, estabeleceu a cooperação entre os coletores com a ajuda de consultores e agrônomos. Com a certificação orgânica e melhorias nas técnicas, e sem atravessadores, a cooperativa conseguiu negociar coletivamente com companhias farmacêuticas locais. O resultado foi que as pessoas da parte mais baixa da cadeia de fornecimento viram o preço saltar mais de 1.000%, passando a vender a vagem da faveira por R$ 2,60. Esse acordo também pôs fim à extração predatória que prejudicava o meio ambiente.
Para a planta ter tempo de se regenerar, os agricultores precisavam pular uma colheita a cada dois anos. O planejamento coletivo e o aumento da renda para as famílias deu às plantas o tempo necessário para se recuperar.
Trabalhar com um contrato unificado também facilitou a vida de todos. As farmacêuticas não precisam mais negociar centenas de contratos separados e têm uma fonte confiável do ingrediente. E os coletores podem evitar a burocracia. “Todos saem ganhando”, diz Silva.
Hoje a CoopCerrado aplica estratégias semelhantes para 170 espécies nativas do Cerrado coletadas pelos cooperados, vendidas a mercados locais, nacionais, redes de supermercados, multinacionais e para exportação. A cooperativa também negocia coletivamente a cobrança, a embalagem e a venda dos produtos. Ela também se responsabiliza pelo transporte, fornecendo o serviço a famílias e comunidades de difícil acesso nas áreas rurais.
Compartilhar recursos e habilidades é a chave do sucesso
Os membros da cooperativa se subdividem em centenas de unidades menores. Cada dez famílias formam um núcleo local que se reúne mensalmente para receber apoio e treinamento dos agrônomos da cooperativa e trocar informações. “Recentemente, compartilhei meu remédio natural para combater uma formiga que estava atacando as plantas”, diz Ribeiro. “Compartilhamos o conhecimento que temos entre nós e também aprendemos com a assistência técnica e profissional dos agrônomos.”
Mas os desafios continuam imensos: “Os bancos não fornecem crédito para esse tipo de projeto. Eles ainda não acham que é um investimento que vale a pena”, diz Silva, acrescentando que o apoio do governo também caiu nos mandatos de Temer e Bolsonaro.
O compartilhar de recursos entre os membros ajuda a preencher essa lacuna. Um esquema de crédito cíclico, que nem sempre está disponível devido às limitações de financiamento, e um banco de sementes gratuito ajudam os membros novos e os já cooperados.
Em 2010, o projeto forneceu a Mônica Ribeiro acesso a um crédito cíclico baseado em projetos para plantar sua primeira safra de pimenta-de-macaco, possibilitando que ela começasse a produção. Assim que ela recebeu o pagamento pela produção, os fundos se reverteram para o próximo agricultor.
Um caminho para longe da ganância e da exploração
Nos anos que virão, a CoopCerrado planeja alcançar dez mil famílias. Para isso, ela precisa de acesso a recursos como crédito, bolsas e doações, bem como de mudanças nas políticas públicas.
“Queremos reverter esse caminho de exploração e ganância e mostrar que há outro caminho possível para o Cerrado”, diz Silva.
A ação do governo pode fazer uma enorme diferença para expandir os horizontes do uso sustentável da terra na região, diz, mas as perspectivas no governo atual são sombrias. Durante anos, os agricultores da cooperativa venderam farinha da nutritiva castanha de baru para o governo para a merenda escolar. Mas o programa foi cortado nos últimos anos, e o governo encerrou o contrato.
Melhorias nos direitos à terra e medidas do governo para apoiar as comunidades tradicionais também são extremamente necessárias, diz Silva. “Muitas comunidades enfrentam altos níveis de precariedade, mas a cooperativa não pode substituir a política pública”, diz ela.
Dez anos depois de entrar para a cooperativa, Mônica Ribeiro diz ver uma grande mudança em suas próprias terras, agora uma fazenda de produtos orgânicos.
“As pessoas não estão acordando para o fato de que estamos matando a vida na Terra. Se permitirmos que os grandes fazendeiros destruam tudo aqui no Cerrado e plantem até as margens dos rios, onde os animais vão viver?”, questiona. “Hoje, minha fazenda é um lugar feliz. A natureza está mais viva. A vida ao meu redor se transformou, há muitos pássaros no céu. Até as pessoas à nossa volta que não fazem parte da cooperativa começaram a reduzir os agrotóxicos.”
Imagem do banner: Coleta de baru por membros da CoopCerrado. Foto: Conab/divulgação.