Projeção feita por cientistas de universidades da Holanda e da Itália mostra que bioma poderá perder espécies de mamíferos em cerca de 20 mil km² em razão do aumento do consumo do biocombustível no mundo.
Em alguns pontos do Cerrado, a redução na riqueza de espécies chega a 100%; animais ameaçados de extinção serão especialmente prejudicados.
A Mata Atlântica apresentará dano em área semelhante. No Pantanal, a perda de biodiversidade pode abarcar cerca de 5% da extensão total do bioma.
O Efeito se dá tanto pelo crescimento direto das lavouras de cana sobre os biomas brasileiros quanto pela migração de outros cultivos para novas áreas – considerado pelos pesquisadores o maior achado do estudo.
Metade da Suíça: esse é o tamanho da área cuja biodiversidade deverá ser severamente impactada no Cerrado caso se confirme a previsão de aumento no consumo de etanol no mundo – que, em tempos de emergência climática, se firma como alternativa aos combustíveis fósseis.
Na ponta do lápis, 19 mil km² do bioma deverão ter redução drástica na riqueza de espécies de mamíferos até 2030 em razão da mudança no uso do solo da região – tudo para acolher as novas lavouras de cana-de-açúcar que deverão ser abertas em razão da demanda crescente pelo biocombustível.
É o que cientistas de universidades da Holanda e da Itália descobriram ao desenvolver um modelo espacial para calcular os impactos no meio ambiente da expansão das lavouras de cana no Brasil. Eles reuniram projeções anteriores feitas pela ciência sobre o desenvolvimento desse cultivo no país e cruzaram com dados e mapas de ocorrência de mamíferos em território nacional, conseguindo apontar exatamente a extensão da área em que se darão os principais efeitos.
A medição foi calculada a partir da mudança no uso da terra: se antes uma vegetação permitia que determinadas espécies vivessem ali, com a chegada a cana essas condições mudariam.
Assim, descobriram que, além de ser o bioma com maior área sob risco, o Cerrado também deverá ter perdas significativas no número de espécies de mamíferos em regiões menores: por exemplo, em um fragmento de 425 km² dos 19 mil km², a redução na biodiversidade chega a 100%. Em 2,7 km², a perda calculada varia entre 50% e 100%.
Segundo as projeções, espécies ameaçadas como o lobo-guará (Chrysocyon brachyurus), o tamanduá-bandeira (Myrmecophaga tridactyla) e a anta (Tapirus terrestris) enfrentam perigo ainda maior: em cerca de 7 mil km² do bioma, eles podem ser extintos, alerta a pesquisa.
“Devido à globalização do comércio, os produtos que consumimos todos os dias são cada vez mais produzidos em países distantes. Muitos produtos agrícolas produzidos no Brasil são exportados para outros países e, como países consumidores, acredito que também temos a responsabilidade sobre como recursos como terra e água são usados no Brasil e quais podem ser os impactos ambientais da produção”, justifica a pesquisadora Anna Duden, da Universidade de Utrecht, que liderou o estudo, publicado na revista especializada Land.
Bioma em alerta
O Brasil já é hoje o país com a maior área cultivada de cana-de-açúcar no mundo. A planta se prolifera especialmente no sudeste do Cerrado – mais recentemente, começou a se expandir também em direção ao noroeste do bioma, no qual 40% da área total já está ocupada pela agricultura. Apesar disso, salientam os pesquisadores no estudo, apenas 2% dos 1,9 milhão de km² totais do Cerrado são protegidos legalmente.
A gramínea com a qual se produz biocombustível tem grande relevância econômica para o país, mais até do que a própria soja, uma vez que representa 30% do valor líquido da produção agrícola nacional, enquanto a oleaginosa detém uma fatia de 29%, segundo dados da pesquisa. O terceiro item é o milho, com participação de apenas 4%. Com a ampliação da demanda por energias alternativas, a cultura tende a ganhar ainda mais importância.
Segundo previsões da Agência Internacional de Energia, a produção doméstica deverá passar dos atuais 33 bilhões de litros por ano (em 2019) para 54 bilhões de litros em 2030. Para abastecer esse mercado, as projeções apontam que pelo menos 35 mil km² de novas lavouras serão abertos – a maior parte no Cerrado e na Mata Atlântica, em parte substituindo outros cultivos, mas também se impondo sobre o campo natural e áreas arbustivas.
O impacto indireto pode ser ainda maior: os cientistas calculam que uma área entre 20 mil km² e 78 mil km² deverá sofrer alterações no uso atual da terra em decorrência da ampliação da produção nacional de biocombustível, incluindo neste cálculo a Amazônia e o Pantanal – uma parcela significativa, em função do deslocamento que outras lavouras precisarão fazer para novas áreas, porque as suas atuais serão tomadas pela cana. Seria como se um produtor de soja do município de Sinop, no Mato Grosso, precisasse deslocar sua plantação para uma região distante, ainda não cultivada, porque lhe compraram as terras para semear cana-de-açúcar.
Daí a ideia de medir as consequências dessa mudança no uso do solo na diversidade de espécies brasileiras. A escolha recaiu sobre os mamíferos, dos quais se tem dados suficientes para garantir mais precisão à análise, mas também porque esses animais são especialmente vulneráveis à perda de habitat: “O Brasil foi identificado como um dos dez principais países com um alto declínio de mamíferos projetado até 2050”, acrescentam os cientistas no texto.
O estudo previu o impacto sobre 610 espécies de mamíferos, dos quais 107 estão ameaçados de extinção e 93 são endêmicos do Brasil – entre eles a raposa-do-campo (Lycalopex vetulus) e o sagui-branco (Mico argentatus).
Além do Cerrado, Mata Atlântica e Pantanal acumulam impactos negativos em grande proporção. Na Mata Atlântica, o cálculo é que 17 mil km² tenham redução de biodiversidade, enquanto que no Pantanal o problema se estenderá por 7 mil km², ou 5% do total do bioma.
No Pantanal, a maior parte do impacto estimado pelo estudo não está diretamente relacionada à abertura de novas lavouras de cana, mas sim porque este bioma deverá receber as atividades que serão substituídas pela cana no Cerrado e na Mata Atlântica.
“Penso que o achado mais importante do nosso estudo é mostrar a importância de incluir os impactos indiretos da expansão da cana-de-açúcar induzida pela produção de etanol. Esses foram mais variáveis e maiores em algumas áreas”, pondera a pesquisadora, salientando que grande parte da perda da biodiversidade no Cerrado pode se dar pelo deslocamento de outras lavouras em função do avanço da cana.
Guia para políticas públicas
Embora não seja o primeiro a medir impactos da expansão da cana para os ecossistemas, o estudo liderado por Anna Duden avança justamente onde outros anteriores não conseguiram chegar: oferece uma análise espacial em larga escala, o que até agora não havia sido possível “em grande parte devido à natureza da biodiversidade, que é difícil quantificar em grandes áreas”, observa.
Assim, Duden e seus colegas de pesquisa esperam poder incidir sobre a política pública de desenvolvimento e preservação ambiental. “Se definirmos limites claros e mensuráveis dos impactos sobre a biodiversidade, os resultados do modelo poderão ajudar a informar melhor a tomada de decisão”, acredita.
A boa notícia – e sobre a qual Duden vai dedicar-se na próxima etapa da pesquisa, que contará com a participação da Universidade Federal de São Carlos, no estado de São Paulo – é que há métodos para mitigar os efeitos negativos da expansão das lavouras de cana-de-açúcar. “
Meus colegas do Copernicus Institute of Sustainable Development combinaram estratégias como o aumento da produtividade agrícola, a proteção de áreas naturais e um cenário de mudança para o etanol de segunda geração (feito de cana-de-açúcar e eucalipto). Com isso, evitou-se 96% da perda de vegetação natural, em comparação com cenários em que essas medidas não foram tomadas”, revela a pesquisadora.
“Eu estava interessada em avaliar os impactos ambientais do aumento da produção de bioenergia, para ver quais poderiam ser os efeitos potenciais de uma transição energética. No entanto, o que nossos resultados sugerem é que, ao estabelecer diretrizes de sustentabilidade para um setor, no caso o de bioenergia, é possível reduzir o impacto”, conclui a estudiosa.
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