Do shampoo inspirado nas teias de aranha ao hotel projetado com base nos atributos térmicos do bico dos tucanos, cientistas e empresas do país estão apostando na inteligência da natureza para criar soluções inovadoras que reduzam os impactos no planeta.
Ao valorizar o design multifuncional e o uso de materiais que a natureza reconheça e possa integrar em ciclos produtivos, a biomimética reforça a otimização de recursos e alinha-se aos princípios da economia circular. Diferentemente de um modelo econômico linear, baseado em extração, transformação e descarte, o modelo circular dissocia o crescimento econômico do consumo de recursos finitos e implementa o uso de energia renovável.
A biomimética começou a ser implantada de modo sistemático no mundo nos anos 1990, inicialmente focada em eficiência energética. Exemplos clássicos são edifícios no Zimbábue e na Austrália inspirados na circulação de ar em cupinzeiros e o princípio das nadadeiras das baleias aplicado à geração de energia eólica. Nos últimos anos, surgiram projetos como o das paredes antissépticas que imitam a pele dos tubarões.
No Brasil, proliferam os cursos de imersão na Amazônia e no Cerrado concentrados na inovação de materiais, assim como o surgimento de consultores e startups de biomimética. Em 2018, a Nucleário tornou-se a primeira empresa brasileira a ganhar um prêmio concedido pelo Biomimicry Institute, graças à sua tecnologia para proteção de árvores em projetos de reflorestamento com base em princípios das sementes aladas e das bromélias.
Reconhecer a sabedoria acumulada por bilhões de anos pela natureza e reconectar-se a ela é o ponto de partida da biomimética, ciência que vem despertando interesse por reproduzir as estratégias do meio natural e solucionar, assim, impasses da nossa época. Não há ineditismo em ter a natureza como guia: se não fossem os pássaros, provavelmente não teríamos os aviões. Contudo, a biomimética traz duas novidades: a conscientização da natureza como fonte de inspiração e a sistematização da pesquisa por meio de uma metodologia não linear, repleta de ferramentas, denominada Biomimicry DesignLens.
Ao lançar o livro Biomimética: Inovação Inspirada pela Natureza, em 1997 nos Estados Unidos e em 2003 no Brasil, Janine Benyus, bióloga norte-americana e uma das fundadoras do Biomimicry Institute, em Montana, EUA, foi a responsável por propagar a ciência que se desdobra em múltiplas aplicações.
A biomimética auxilia áreas como a saúde – ao traçar, por exemplo, possíveis relações entre o veneno de uma vespa e novas terapias contra o câncer –, reproduz a tecnologia da teia de aranha para a indústria da beleza, oferece à engenharia melhorias na eficiência energética por meio da observação do cupinzeiro ou do bico do tucano, propõe utilizar raízes de cogumelos e resíduos agrícolas no lugar de embalagens de isopor e plástico, e dialoga muito bem com as novas tecnologias, a exemplo de aplicativos para facilitar a logística. Além disso, ela oferece fundamentos para trabalhar com desenvolvimento pessoal e comportamento humano.
Diante do mosaico atual, a biomimética torna-se, cada vez mais, uma importante ferramenta. Aquecimento global, padrões de produção pouco amigáveis ao meio ambiente, níveis elevados de degradação, desperdício e descarte, crescimento populacional: todos juntos colocando em cheque a disponibilidade de recursos naturais e alertando para a necessidade de novos parâmetros industriais e econômicos.
“O metaprincípio da biomimética é de que a vida cria condições propícias à vida”, diz Alessandra Araújo, bióloga pós-graduada em biomimética pela Universidade do Arizona, EUA, e fundadora da consultoria Bio-Inspirations. “A natureza não cria nada que gere um problema ad aeternum. Quando acaba o ciclo de vida de um organismo, ele se transforma em matéria-prima. Até um animal peçonhento como uma cobra-coral ou um escorpião letal se transformam em matéria-prima, diferentemente de uma pilha ou de uma bateria de lítio.”
Ao valorizar o design multifuncional e a utilização de materiais que a natureza reconheça e possa integrar em ciclos produtivos, a biomimética reforça a otimização de recursos e alinha-se aos princípios da economia circular. Diferentemente de um modelo econômico linear, que é baseado em extração, transformação e descarte, o modelo circular dissocia o crescimento econômico do consumo de recursos finitos e implementa o uso de energia renovável. Transforma, assim, o que seria resíduo em recurso para promover a continuidade do ciclo e trazer benefícios para toda a conjuntura, seja econômica, natural ou social.
Bico de tucanos, teia de aranhas, pele de tubarões
A aplicação da biomimética em eficiência energética é ampla. Assim como o movimento das nadadeiras das baleias já inspirou inovações na geração de energia eólica, a circulação do ar dentro de cupinzeiros inspirou a construção de edifícios mais sustentáveis – a exemplo do Eastgate Centre no Zimbábue, que contou com precisas simulações computacionais de desempenho térmico, ou ainda do Council House 2, prédio da prefeitura de Melbourne, na Austrália.
Também no Brasil foi realizado o projeto do Votu hotel, no sul da Bahia, ainda no papel e em flerte recorrente com investidores estrangeiros. O projeto inspirou-se nas estratégias de várias espécies para garantir conforto térmico em suas dependências. As tocas do cão-da-pradaria, por exemplo, guiaram os arquitetos no desenho dos bangalôs, que permanecem sempre ventiladas. Já a capacidade de auto-sombreamento de alguns cactos permitiu a criação de paredes de concreto que, além de refrigerar, sustentam telhados verdes. Na cozinha, esse telhado ainda ajuda a manter o ambiente mais fresco: inspirada no bico dos tucanos, um grande trocador de calor, uma serpentina de cobre atrai o ar quente e passa pelo solo do teto, esfriando o ar que retornará à cozinha.
Caso clássico de aplicação da biomimética é a remodelação do trem japonês Shinkansen, em 1989. Quando entrava em túneis, o trem empurrava ondas atmosféricas, produzindo na saída uma explosão sonora que podia ser escutada a 400 metros de distância. Isso representava um problema, principalmente nas áreas residenciais. Eiji Nakatsu, gerente de desenvolvimento tecnológico, era um observador de aves e se inspirou na aerodinâmica do bico do martim-pescador. Ao penetrar a água com velocidade, o pássaro não causa uma onda de impacto, qualidade importante para não assustar a presa. O engenheiro redesenhou a parte dianteira do trem e reduziu significativamente o efeito sonoro.
Outra inspiração que vem das águas presta serviço à medicina. A estrutura da pele do tubarão tem como característica a capacidade de interromper a proliferação de bactérias e evitar a aderência de microorganismos. Em 2014, a empresa Sharklet Technologies, do Colorado, em conjunto com um grupo de cientistas, publicou um artigo revelando a significativa redução de contaminação em superfícies que fossem revestidas com a tecnologia sharklet, que replica a geometria da pele do tubarão. A película, se aplicada futuramente em laboratórios e salas cirúrgicas, evitaria o uso de produtos químicos ou tóxicos na limpeza, prejudiciais à saúde, e poderia reduzir infecções.
A morte de pássaros ao colidir com os vidros de edifícios fez a empresa alemã Arnold Glass buscar uma solução nas teias de aranha. Possuidoras de uma fibra que reflete a luz ultravioleta (UV), as teias tornam-se visíveis para os pássaros, fazendo com que eles desviem sem colidir. Partindo dessa observação, a empresa desenvolveu a linha de vidros Ornilux, que reflete a luz UV, tornando-o visível para as aves e permanecendo praticamente transparente ao olho humano, incapaz de enxergar esse tipo de luz. O vidro já está em uso em edifícios e casas em vários países, principalmente na Alemanha e Estados Unidos.
Sementes aladas na reconstrução de florestas
Uma coletânea de inspirações em biomimética é disponibilizada pela página asknature.org, braço do Biomimicry Institute, referência que congrega informações e incentiva o crescimento da área. Entre as inspirações divulgadas está o Nucleário, produto criado pela startup brasileira de mesmo nome para tornar mais eficientes os processos de restauração florestal. O produto configura a primeira iniciativa brasileira em biomimética a ganhar o prêmio Ray of Hope Prize, concedido anualmente pelo mesmo Biomimicry Institute.
“Foi muito importante ganhar o prêmio em 2018. A divulgação na mídia americana e depois brasileira gerou procura pelo produto”, diz Pedro Rutman, designer gráfico e idealizador do Nucleário junto com o irmão Bruno Rutman. “Além do reconhecimento, fomos premiados com US$ 100 mil e temos investido 100% do valor na empresa. No momento, estamos fazendo os últimos ajustes no produto e até metade de 2020 produziremos em larga escala.”
O produto foi concebido com base em três elementos da natureza: as bromélias, pela sua capaciadade de reter água e coletar biodiversidade; a serapilheira (restos de plantas acumulados no chão), por proteger o solo da lixiviação; e as sementes aladas, por representarem a estratégia da natureza de dispersão através do vento. A estrutura leve e reutilizável do produto tem uma barreira que dificulta a aproximação de formigas-cortadeiras, impede o crescimento de gramíneas invasoras e armazena água para períodos de estiagem. O Nucleário tem como principal objetivo auxiliar na manutenção pós-plantio, diminuindo eventuais obstáculos ao reflorestamento.
Pioneira na prática da biomimética no Brasil, a empresa de cosméticos Natura tornou-se a quarta maior em beleza do mundo após concluir a compra da americana Avon em janeiro deste ano. No ano passado, lançou a linha de produtos para o cabelo Lumina, também inspirada na teia de aranha. Após identificar que a proteína presente nas teias tem formato similar à do fio de cabelo, a empresa reproduziu a tecnologia em laboratório para a regeneração dos fios.
Cliente da Tátil Design de Ideias, que tem o designer e especialista em biomimética Fred Gelli como fundador e sócio, a Natura já havia elaborado um frasco em formato de gota para outra linha de shampoo, a SOU. Imitando a geometria das gotas, a embalagem evita desperdício e leva 70% menos plástico do que os recipientes convencionais. A Natura conta com a consultoria Biomimicry 3.8, de Janine Benyus, e emprega a biomimética em outras áreas de atuação, como na produção sustentável do óleo de palma.
Outras aplicações da biomimética encontram-se em pesquisa avançada, a exemplo do grampo de sutura inspirado na mandíbula da formiga-cortadeira Atta laevigata, um dos processos patenteados pelo Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia (Inpa) em 2010. Registros indicam que o uso da mandíbula de formigas para a sutura de ferimentos era prática recorrente há mil anos. A designer industrial Thays Obando Brito, junto com um grupo de pesquisadores da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), publicou em 2017 um estudo sobre o tema, com o objetivo de identificar possíveis biomateriais que poderão ser usados para a produção dos grampos.
A sabedoria dos organismos vivos
Especialistas brasileiros notam o interesse crescente por soluções que vêm da natureza. Consultorias promovem cursos de imersão em ambiente natural, incluindo os biomas Amazônia e Cerrado, e usam a biomimética não apenas como instrumento para inovação de materiais, mas também para diagnóstico e melhoria de processos de comunicação, relacionamento interpessoal, inclusão e desenvolvimento humano. Ainda que as áreas de pesquisa e inovação no Brasil amarguem uma fase de redução orçamentária, cursos de graduação, principalmente os correlatos ao design, têm a ciência em sua grade curricular há mais de uma década.
Está prevista para este ano, em Belterra, no Pará, a inauguração do Museu de Ciências da Amazônia (MuCA), que tem o objetivo de ser um centro de disseminação de valores da cultura científica da região e promover reflexões sobre o valor da floresta em pé. “O Museu dará importância à biomimética, da mesma forma que destacará ciências como a botânica ou a zoologia”, diz Alessandra Araújo, da consultoria Bio-Inspirations. A iniciativa é do governo do Pará, por meio da Secretaria de Ciência, Tecnologia e Educação Profissional e Tecnológica (Sectet), em conjunto com parceiros.
Também a iniciativa privada tem incentivado o desenvolvimento de projetos embasados pela biomimética. Um exemplo é a linha Mycena, que chegará ao mercado em breve e já consta no catálogo da Atex Brasil. A linha decorativa para revestir teto, paredes e divisórias é feita com reaproveitamento de materiais plásticos e foi inspirada na configuração das colônias de cogumelos. O desenvolvimento do produto foi feito por alunos do Instituto Mauá, vencedores da 5a Edição do Desafio Design Odebrecht Braskem, em 2017. A empresa Atex, especializada em lajes nervuradas, foi parceira daquela edição e lançará o produto ainda este ano.
A biomimética é a primeira entre as principais tendências tecnológicas capazes de fazer uma empresas se destacar no mercado, afirmou especialista na revista Forbes em artigo de 2014. Dados divulgados pela economista Lynn Reaser, do Fermanian Business & Economic Institute, em 2013, preveem as tecnologias e negócios relacionados à bioinspiração gerando US$ 1,6 trilhões no produto interno bruto (PIB) mundial até 2030.
Laura Landau, mestre em biomimética pela Universidade de Arizona e pelo Biomimicry Institute, além de pesquisadora em inovação e tecnologias do projeto Amazônia 4.0, considera a biomimética uma nova maneira de olhar para o mundo, em que as relações ecológicas e a sabedoria dos organismos vivos podem guiar o ser humano para melhores formas de habitar o planeta. “Acredito que não devemos considerar a biomimética apenas uma ferramenta para gerar soluções inovadoras, mas sim uma filosofia para pensar nas próximas soluções necessárias, pois ela transforma o olhar de quem a usa, instigando a identificar as melhores adaptações dos organismos e a tirar proveito do que já existe sem degradar a natureza”, diz.
Imagem do banner: Anna Ritenour/CC-BY.
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