Há 15 anos, a ativista dos direitos pela terra e missionária católica Dorothy Stang, conhecida como Irmã Dorothy, foi brutalmente assassinada no município de Anapu, no estado do Pará. Embora sua morte tenha causado grande clamor internacional e resultado em ações contra a violência no Brasil, tais práticas não duraram muito.
Menos de 5% dos mais de 550 assassinatos ocorridos desde o assassinato de Stang foram julgados, segundo dados coletados pela Comissão Pastoral da Terra (CPT) e analisados pela Mongabay. No Pará, estado em que Stang foi assassinada, apenas 6 dos mais de 190 assassinatos por conflitos de terra foram levados a julgamento.
Especialistas afirmam que a maioria dessas mortes é planejada por grileiros e poderosos proprietários de terras com a intensão de intimidar camponeses que defendem a reforma agrária ou tentam proteger suas pequenas propriedades. A corrupção no governo, na aplicação da lei e nos tribunais resulta em poucos processos.
Analistas temem que as políticas de Jair Bolsonaro piorem o problema. Em dezembro, o presidente criou a Medida Provisória 910, que, segundo críticos, legaliza a apropriação de terras. O decreto, que supostamente beneficia pequenos proprietários, oferece perdão para as posses realizadas por grileiros no passado e pode encorajar apropriações futuras.
“Pistoleiros soltos, madeireiros derrubando!” escreveu a missionária norte-americana Dorothy Stang em carta acalorada em 2004, alertando as autoridades brasileiras sobre o aumento da violência e do desmatamento ilegal no município de Anapu, no Pará.
Em fevereiro de 2005, quinze anos atrás, a freira católica conhecida como Irmã Dorothy, que lutava pelos direitos de camponeses sem terra na Amazônia brasileira, foi brutalmente assassinada – executada com seis tiros enquanto caminhava por uma estrada deserta no caminho para uma reunião sobre o direito à terra.
Evidências indicam que ela foi morta a mando de grileiros de Anapu e de poderosos proprietários de terras que se opunham a seu ativismo no Pará. Até o momento, dois atiradores, dois fazendeiros (mandantes do crime) e um intermediário foram condenados.
Quinze anos depois, menos de 5% dos mais de 550 assassinatos ligados aos direitos pela terra ocorridos desde a morte de Stang foram julgados, segundo dados coletados pela Comissão Pastoral da Terra (CPT) e analisados pela Mongabay. No Pará, apenas 6 dos mais de 190 assassinatos por conflitos de terra foram julgados.
José Batista Afonso, advogado de direitos humanos da CPT em Marabá, aponta que essa impressionante falta de aplicação da lei ajuda a perpetuar a violência crônica contra trabalhadores rurais e ativistas pelo direito à terra, do meio ambiente e de direitos humanos.
“Esse sentimento de impunidade garante a continuação do crime”, afirma Afonso. “Os proprietários de terras têm muito poder econômico e político. Por esse motivo, exercem forte influência na Polícia e no Poder Judiciário. Isso sempre trará dificuldades para qualquer processo criminal contra eles.”
Batista e outros especialistas entrevistados pela Mongabay concordam que é improvável que o problema das poderosas elites rurais ordenando a matança daqueles que vão contra seus interesses — e escapando da punição — chegue ao fim com o atual presidente do Brasil.
Desde que assumiu o cargo, em janeiro de 2019, Bolsonaro trabalhou para reduzir a proteção de florestas e povos indígenas. Em dezembro, emitiu a MP 910, medida que os críticos afirmam legalizar a apropriação de terras em larga escala. O decreto administrativo, que supostamente beneficia os pequenos proprietários, também oferece perdão generalizado aos grileiros. Especialistas sustentam que a medida provavelmente encorajará a apropriação ilegal de terras no futuro.
“Os últimos da fila serão os pequenos agricultores, pessoas que não têm representação legal, pessoas que não têm o vasto capital necessário para elaborar um mapa georreferenciado de uma propriedade [reivindicada]”, explica Jeremy Campbell, professor de antropologia da Universidade Roger Williams e autor de “Conjuring Property: Speculation and Environmental Futures in the Brazilian Amazon“.
“As pessoas que já são marginalizadas serão compradas, intimidadas ou enganadas”, afirma Campbell.
Sob Bolsonaro, a violência na Amazônia avançou: na semana passada, Fernando Ferreira da Rocha, advogado que trabalhava com famílias de camponeses, foi executado em Boca do Acre, no Amazonas, uma região dominada por interesses da pecuária.
Em 2019, grandes proprietários de terras, policiais militares e membros do Ibama foram presos, acusados de colaborar com um enorme esquema de apropriação de terras e desmatamento em uma área do tamanho de 86 mil campos de futebol. O objetivo era expandir a criação de gado em Boca do Acre, expulsando e ameaçando moradores – incluindo uma tentativa de homicídio de um pequeno agricultor.
“A fronteira do desmatamento está se expandindo”, comenta Joel Bogo, promotor federal do Acre. “Esses grupos [de grileiros] estão indo para novas áreas, que antes eram intocadas”.
Enquanto isso, no Pará, é amplamente sabido que os ruralistas envolvidos no assassinato de Stang ainda estão livres, e são responsáveis pela continuação da violência hoje em Anapu, onde a missionária foi baleada.
“Esses grupos [de elite] agem coletivamente no Congresso, com sua bancada ruralista, para fazer exigências ao governo. E quando se trata de crimes, eles também raramente agem individualmente”, explica Batista, da CPT. O lobby ruralista, dominado pelos interesses do agronegócio e da mineração, ganhou maior poder legislativo nas eleições nacionais de 2018.
“No caso da Irmã Dorothy, certamente houve mais pessoas que participaram da decisão de seu assassinato”, acrescenta Batista.
Em 2018, a Repórter Brasil, em parceria com a Mongabay, informou que Silvério Fernandes, poderoso proprietário de terras de Anapu e confidente local do presidente Bolsonaro, estava “trabalhando” para prender o sucessor de Stang no movimento pelos direitos dos sem-terra, padre José Amaro Lopes de Souza.
Amaro, que ficou 92 dias preso por conta de queixas feitas por Fernandes, acusa o fazendeiro de fazer parte do mesmo “consórcio” de proprietários, madeireiros e grileiros que ordenaram o assassinato de Stang.
Hoje, Anapu continua a ser berço de violentos conflitos fundiários, grilagem e extração ilegal de madeira. No total, de acordo com a CPT, pelo menos 19 pessoas foram mortas em assassinatos relacionados a conflitos pela terra desde 2015 na região.
Em dezembro, Márcio Reis — aliado do Padre Amaro e inimigo de longa data do proprietário Silvério Fernandes — foi esfaqueado até a morte enquanto trabalhava como motorista de táxi no município.
Cinco dias depois, Paulo Anacleto, ex-vereador do PT, foi morto a tiros por pistoleiros na frente de seu filho.
No dia seguinte, um homem armado atacou a casa do líder agrícola local Erasmo Teófilo, que vive sob constante ameaça de morte.
Na época, o Ministério Público Federal (MPF) solicitou que as forças de segurança do Pará fossem enviadas ao município para proteger os moradores e emitiu a seguinte declaração: “Para o MPF, o cenário atual no município mostra a ocorrência de frequentes ameaças direcionadas a defensores dos direitos humanos no campo.”
Andréia Barreto, defensora pública que trabalha com conflitos de terra na região, acredita que o estrangulamento do orçamento da reforma agrária juntamente com a retórica incendiária de Bolsonaro, copiada pelas elites rurais da região, foram os culpados pela mais recente erupção de violência.
O ativismo de Stang levou à criação do assentamento da reforma agrária PDS Esperança — Projeto de Desenvolvimento Sustentável Esperança —, que existe ainda hoje, mas continua sendo ameaçado pelas elites ruralistas.
Sua morte também provocou uma grande mudança na política ambiental do governo do então presidente Luiz Inácio Lula da Silva. “No período de um ano, foi adotada uma política ambiciosa de criação de parques e reservas indígenas”, comenta o professor e escritor Campbell. Bolsonaro está trabalhando para minar muitos desses avanços na conservação.
“Sentia-se um crescente rancor vindo das elites rurais da região” depois da morte da Irmã Dorothy, conta Campbell. “Eles estavam com muito medo de que a repressão após o assassinato dela levasse a um aumento das operações de fiscalização, confisco de propriedades ou prisão.”
O Projeto de Desenvolvimento Sustentável Esperança sofre com divisões internas, ameaças de morte e desmatamento ilegal desde pelo menos 2011. O assentamento foi invadido por um grupo de homens armados em 2018.
No ano passado, o Ministério Público Federal solicitou a reativação de guaritas de segurança na região. A maioria dos especialistas espera um aumento na violência relacionada à terra no futuro, uma vez que Bolsonaro avança com a desregulamentação ambiental e com seus planos para o desenvolvimento da Amazônia.
Imagem do banner: A freira e ativista ambiental Dorothy Stang, assassinada há 15 anos. Crédito da foto: midianinja em Visual Hunt / CC BY-NC-SA.