Em pleno Cerrado sul-matogrossense, uma iniciativa de financiamento diferenciada está fortalecendo a produção agroecológica e orgânica de agricultores.
Bioma-chave para a segurança hídrica brasileira e savana mais biodiversa do mundo, o Cerrado já perdeu um terço da vegetação nativa nos últimos 40 anos para a monocultura de commodities como soja e milho.
Como alternativa ao agronegócio, o Programa de Crédito Sistêmico já atendeu mais de 200 famílias no Mato Grosso do Sul, que tiveram 40% de aumento de renda em três anos.
“A natureza não nasceu para a monocultura”, opina Olácio Komori, fundador e coordenador administrativo-financeiro da Associação dos Produtores Orgânicos do Mato Grosso do Sul (Apoms). Com três décadas dedicadas ao fortalecimento da agricultura orgânica e agroecológica no Mato Grosso do Sul — estado que tem no agronegócio um alicerce das suas atividades econômicas —, ele argumenta que não é simples tornar a produção agrícola mais sustentável, embora seja possível.
O Cerrado, que ocupa cerca de 60% do Mato Grosso do Sul, é um dos biomas mais desmatados do Brasil, justamente pela expansão da fronteira agrícola. Já perdeu um terço da sua vegetação nativa em 40 anos. Isso significa 40,5 milhões de hectares suprimidos entre 1985 e 2024, correspondendo a um território com a extensão da Espanha. Os dados integram a Coleção 10 do Projeto MapBiomas, em parceria com o Instituto de Pesquisa Ambiental da Amazônia (Ipam), divulgada em 13 de agosto.
Pelos caminhos que optou por seguir, Komori identificou a dificuldade de acesso ao crédito e à assistência técnica como principais obstáculos enfrentados pelos agricultores familiares de Dourados, segundo maior município do estado e grande produtor agrícola. Sem encontrar alternativas no sistema financeiro tradicional, ele desenvolveu a metodologia do Programa de Crédito Sistêmico, apoiado por instituições parceiras também preocupadas com o futuro do Cerrado. A ideia dessa iniciativa foi atender justamente esse perfil de pequenos produtores rurais que têm condições de honrar os compromissos, com os resultados financeiros do que produzem, mas que muitas vezes esbarram em limitações, dentre as quais a comprovação de renda.
Como resultado positivo dessa alternativa, mais de 200 famílias conseguiram acessar R$ 1,55 milhão em operações de crédito e ações de assistência técnica, nos últimos três anos, na macrorregião de Dourados e Nova Andradina. Nesse tradicional polo de monoculturas de soja e milho, a agroecologia e a agricultura orgânica vêm conquistando novos adeptos e comprovando a sua viabilidade econômica e socioambiental.
Com o crédito sistêmico, cada família decidiu onde destinar os recursos obtidos com o aumento da produtividade e, consequentemente, da renda. Em geral, optou-se pela aquisição de máquinas e equipamentos ou de mais animais reprodutores, além de reformas e outras benfeitorias para fortalecer a sustentabilidade nas propriedades. Segundo Komori, essa é outra conquista do programa, pois promove economia de água, energia e tempo dos produtores, que conseguiram reduzir jornadas de trabalho a partir de incremento tecnológico e de outras melhorias.

Pequenas quantias fazem a diferença
“A gente vive em um estado que tem degradado muito o Cerrado e onde é forte a presença do agronegócio. Aqui, em geral, pequenas quantias fazem muita diferença na vida dos produtores familiares, mas as instituições financeiras priorizam os grandes projetos”, observa Komori. “Tem família que nunca tinha conseguido acessar uma alternativa de crédito na vida e, com essa iniciativa, conseguiu um recurso mais desburocratizado. Nesse caso, a inclusão financeira foi outro aspecto positivo.”
Por acreditar na força do cooperativismo para o enfrentamento de desafios comuns, Komori destaca a importância da Cooperativa de Produção e Comercialização da Rede dos Produtores Orgânicos de Mato Grosso do Sul (Cooperapoms), fundada em 2018, na qual atua como diretor administrativo-financeiro. Empenhado em fortalecer a atuação de aproximadamente 280 cooperados, ele argumenta que um dos grandes diferenciais do crédito sistêmico envolve o olhar ampliado sobre as múltiplas dimensões do funcionamento das propriedades familiares e suas fontes de renda diversificadas, nem sempre bem compreendidas pelo sistema financeiro convencional.
Como futuros desdobramentos dessa iniciativa, ele deseja que essa experiência-piloto possa inspirar avanços no Programa Nacional de Fortalecimento da Agricultura Familiar (Pronaf) que, “de tão engessado, não consegue ajudar o pequeno produtor rural”, conclui.
Parceria impulsiona resiliência climática
Angélica Rotondaro, consultora de instituições de investimentos como a Rabo Foundation e o Rural Fund no Brasil, destaca que agricultores familiares participantes da primeira etapa do Programa de Crédito Sistêmico tiveram 40% de aumento de renda. Esse cenário se manteve estável na segunda fase, mesmo quando, em 2024, a região foi atingida por forte escassez de chuvas que levou à quebra de produtividade agrícola. Produtores que não integravam essa estratégia tiveram queda em seus rendimentos.
“Os que participavam [do programa] continuaram fazendo entregas de seus produtos para a cooperativa”, afirma. Os dados são destacados em relatório de impacto do Climate Smart Institute, lançado em fevereiro. “Essa publicação indicou que a iniciativa fortaleceu a resiliência climática dos produtores. Tem muita gente fazendo a transição para a agricultura orgânica e contribuindo para a manutenção do Cerrado de pé”, observa a consultora.
Além da demanda reprimida, ela analisa que os resultados alcançados pelas famílias contaram com o fator de convencimento de vizinhos que foram se interessando em participar. Da mesma forma, destaca a capacidade de articulação de Olácio Komori em defesa da agricultura familiar e suas melhores práticas: “Ele é pai e mãe do crédito sistêmico”.

Para viabilizar o programa, a rede articulada pela Apoms contou com suporte da Alimi Impact Ventures e financiamento da Rabo Foundation. A instituição destinou um fundo de empréstimo de R$ 1,3 milhão, implementado pela cooperativa financeira Cresol, além de um fundo não reembolsável de assistência técnica de R$ 250 mil, cujas atividades ficaram a cargo da rede da Apoms.
Como diferenciais dessa iniciativa, Rotondaro aponta as ações de assistência técnica que começam antes do desembolso do crédito, além do cuidadoso planejamento com cada família. Por outro lado, para assegurar a sustentabilidade da agricultura familiar no Brasil, aponta como desafio a necessidade de envolvimento dos jovens na identificação de perspectivas educacionais e econômicas no campo.
Com esse propósito, o projeto incluiu cursos de longa e curta duração sobre planos de conversão para produção orgânica, além de ter beneficiado mulheres produtoras, que são 20% dos tomadores de crédito. O percentual, embora pequeno, é celebrado, considerando a liderança feminina na gestão dos recursos familiares.
Uma experiência de crédito anterior, iniciada em 2018 e ampliada em 2021 sob a coordenação dos mesmos parceiros, serviu de base para a consolidação da proposta do Crédito Sistêmico, com as características que o programa conseguiu agregar. Tendo alcançado resultados positivos, além de ser expandida no Mato Grosso do Sul, em 2025, a iniciativa também está sendo replicada no Rio Grande do Sul. Suas três linhas contam com 350 beneficiários diretos e somam 1 milhão de euros em empréstimos e 190,5 mil euros em fundos para assistência técnica.
Desafios para superar a degradação do Cerrado
Helga Correa, especialista em Conservação do WWF-Brasil, aponta quatro caminhos fundamentais para enfrentar a degradação do Cerrado, fortemente impulsionada pelo agronegócio. Zerar o desmatamento é um deles, bem como ampliar a abrangência de Unidades de Conservação, Terras Indígenas, Territórios Quilombolas e Projetos de Assentamentos de agricultores familiares, “povos que devem ser reconhecidos como guardiões da biodiversidade”. Além disso, ela sugere promover a sustentabilidade de atividades como pesca e agropecuária e incentivar a cidadania ativa da sociedade brasileira. “A forma como a economia tem funcionado contribui para a degradação da natureza e a economia precisa fazer parte das soluções”.
Diante desse panorama, a ambientalista reconhece a importância de iniciativas como a do Crédito Sistêmico, considerando que a oferta de crédito e de assistência técnica representam grandes obstáculos para agricultores familiares, povos indígenas, quilombolas e outras comunidades locais, quase sempre excluídas do sistema financeiro tradicional, tanto no Cerrado como em outros biomas.
Para ela, o apoio a esses grupos sociais mais vulneráveis representa uma das questões centrais no enfrentamento da perda de vegetação nativa para o agronegócio no Cerrado, problemática ainda mais preocupante diante do agravamento da crise climática. Seus alertas encontram ressonância na série de dados do projeto MapBiomas e em estudos já repercutidos pela Mongabay.
“É grande a velocidade do processo de conversão de vegetação nativa no Cerrado nos últimos 50 anos. Essa intervenção humana no bioma tem implicações no agravamento da crise climática. Já temos como exemplos o recorde de incêndios e a redução de água nessa região de importância fundamental para a segurança hídrica, a conservação da biodiversidade e a manutenção dos modos de vida de comunidades tradicionais”, conclui a ambientalista.
Imagem do banner: Olácio Komori, produtor agrícola no Mato Grosso do Sul, idealizador do Programa de Crédito Sistêmico. Foto: Programa de Crédito Sistêmico/divulgação.