Quase extinta pela caça no século 20, a ariranha ainda luta para se recuperar; acredita-se que a distribuição atual da espécie corresponda a apenas 60% de sua área original.
Diante da falta de dados precisos sobre a maior lontra do mundo, cientistas de 12 países mapearam 22 áreas prioritárias para a conservação da ariranha, sendo 12 no Brasil – país com a maior parcela da distribuição histórica do animal.
Além da falta de informações e de recursos para pesquisa, novas ameaças se impõem sobre espécie, como a intensificação das mudanças climáticas, a degradação do habitat e o aumento inédito da predação por onças-pintadas no Pantanal.
Com o fim da era da borracha na Amazônia no século 19, empresas que comercializavam o produto na região precisaram encontrar uma nova forma de ganhar dinheiro. Perceberam uma oportunidade no comércio internacional de peles, até então pouco explorado ali. A demanda para atender os mercados dos Estados Unidos, da Europa, e até do sul e sudeste do Brasil, era enorme. Estima-se que, entre 1904 e 1969, mais de 20 milhões de mamíferos e répteis selvagens, representando pelo menos 20 espécies, foram caçados comercialmente para terem suas peles retiradas.
Entre as principais vítimas dessa matança indiscriminada estava a ariranha (Pteronura brasiliensis), a maior dentre as 14 espécies de lontras do mundo. Durante essas seis décadas, quase 400 mil delas foram abatidas apenas na Amazônia brasileira, até que, em 1967, a aprovação da Lei nº 5.197 proibiu a caça de animais silvestres no Brasil.
Todavia, o impacto já tinha sido gigantesco. Endêmica da América do Sul, a ariranha acabou sendo dizimada em muitos locais e é considerada possivelmente extinta na Argentina e no Uruguai, segundo a União Internacional para a Conservação da Natureza (IUCN) – globalmente, é classificada como “em perigo” pela Lista Vermelha. Acredita-se que a distribuição atual da espécie corresponda a apenas 60% de sua área original.
No Brasil, essa distribuição não é homogênea. Há populações conhecidas em rios ao norte da Amazônia, no Pantanal e no Cerrado, próximo das bacias dos rios Tocantins e Araguaia. Contudo, não há ideia de quantas elas são.

“Não existem números”, revela a bióloga Miriam Marmontel, pesquisadora do Instituto de Desenvolvimento Sustentável Mamirauá e que há mais de 30 anos estuda as ariranhas. “Existe pouca pesquisa e as áreas de ocorrência são remotas. E em muitas delas, as ariranhas desapareceram por muitos anos. Só em 2000 é que começamos a ouvir relatos da volta delas em alguns lugares.”
Essa lacuna, com falta de dados e compartilhamento de informações sobre a ariranha entre especialistas sul-americanos, foi o que motivou a elaboração de uma publicação conjunta para definir estratégias para a proteção da espécie. Com a participação de 40 profissionais de 12 países, o livro não só resume o que se sabe sobre a biologia, a ecologia e as ameaças enfrentadas pela Pteronura brasiliensis, mas identifica 22 áreas de conservação prioritárias, das quais 12 estão localizadas no Brasil — país que abriga quase 62% da distribuição histórica da espécie.
“Agora temos uma ideia melhor de onde devemos concentrar nossos esforços”, afirma Caroline Leuchtenberger, presidente e fundadora do Projeto Ariranhas, professora do Instituto Federal Farroupilha e coordenadora da espécie no Grupo de Especialistas em Lontras da IUCN.
Segundo ela, o trabalho também evidencia ainda mais a necessidade de se ampliar as pesquisas sobre a ariranha em território brasileiro. “Se olharmos para o mapa do Brasil, há várias lacunas nas quais não temos conhecimento da presença ou não da espécie. E a falta dessa informação nos preocupa, sobretudo nesse cenário de ameaças emergentes e menos pessoas em campo.”

Desafios para o monitoramento da espécie
“Qualquer pessoa que já teve a sorte de encontrar um grupo de ariranhas na natureza jamais esquecerá a experiência”, diz Rob Wallace, cientista-sênior de Conservação da Wildlife Conservation Society (WCS) na Bolívia e na região dos Andes-Amazônia-Orinoco, e principal autor do relatório. “Espiando para fora da água, bufando e guinchando, elas simplesmente esbanjam carisma e, como nadadoras talentosas e acrobáticas, estão entre os principais predadores aquáticos da Amazônia.”
Ariranhas chegam a medir até 1,80 metro e vivem em grupos de dois a até 20 indivíduos. Por todas essas razões, mais as citadas acima por Wallace, não deveria ser difícil encontrá-las e realizar um levantamento sobre seus números. Entretanto, a realidade é muito diferente.
Os territórios dos grupos têm em média 10 km de extensão e, no período de chuva, quando o nível dos rios sobe, podem aumentar até três vezes ou mais. Se, durante o dia, pesquisadores podem até ter a sorte de encontrar ariranhas nadando ou na beira da água, quando o sol se põe elas se escondem em suas tocas, chamadas de locas, nos barrancos, ou na vegetação ribeirinha, onde dormem em solo firme.

“Para encontrá-las, é preciso ir a lugares remotos, próximos de cabeceiras de rios; elas não se aproximam de grandes cidades”, explica Miriam. “É difícil fazer um censo ou levantamento, que também requer bastante logística, e passar vários meses em uma certa região, porque os animais não ficam em um mesmo local o tempo todo. É necessário interiorizar mais as pesquisas.”
Além desses desafios naturais, há ainda a falta de financiamento para esse tipo de trabalho. Embora a espécie esteja incluída tanto no Plano de Ação Nacional (PAN) para os Mamíferos Aquáticos Amazônicos do Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade quanto em um plano próprio, criado em 2024 – o PAN Ariranha, focado em Pantanal e Cerrado —, ainda assim não são disponibilizados recursos públicos para pesquisas.
“Não existe nenhum orçamento para pesquisa, zero”, lamenta Miriam. “Esse é um problema sério desde que os PANs foram criados. Fazem-se reuniões, elencam-se as prioridades, mas os recursos para os trabalhos são aqueles que as instituições ou os pesquisadores já têm ou que vão buscar. Ou seja, os esforços ficam muito limitados ao que nós conseguimos fazer se conseguirmos financiamento.”

Mudanças climáticas e aumento da predação de onças no Pantanal
Se o abate para a retirada de sua pele não é mais uma ameaça nos dias atuais, há diversas outras que colocam em risco a sobrevivência das ariranhas. Entre as principais, estão a perda e a degradação de seu habitat — seja pela contaminação dos rios ou pela destruição da mata ciliar, provocadas pelo garimpo ou a expansão agropecuária. O aumento do turismo desenfreado também é um problema, principalmente no Pantanal, onde embarcações se aproximam demais desses animais, já que não existe uma legislação ambiental com normas específicas regulamentando esse tipo de atividade e definindo distâncias seguras em relação à vida silvestre.
No Pantanal, onde está a maior população de ariranhas do Brasil, existem ainda duas outras preocupações. A primeira delas está relacionada com as mudanças climáticas. Ano a ano, os principais rios do bioma enfrentam secas extremas, que podem reduzir a quantidade de alimentos para a espécie (peixes) — dados do MapBiomas apontam que, em 2024, a área de cobertura de água foi 61% menor que a média histórica. Incêndios florestais também estão mais frequentes e intensos.
Em 2020, quando o fogo devastou 90% da região de Porto Jofre (MT), durante a temporada de reprodução das ariranhas, dentre os seis grupos monitorados pelo Projeto Ariranhas, apenas um filhote sobreviveu — e não viveu além do ano seguinte. Já em 2021, não foi documentado nenhum nascimento sequer. E, em 2022, houve reprodução entre um grupo só, com uma taxa de sobrevivência dos filhotes de 50%.
Para piorar ainda mais a situação, um novo fenômeno começou a ser observado recentemente pelo Projeto Ariranhas: o aumento da predação de ariranhas por onças-pintadas (Panthera onca). Entre julho e dezembro de 2024, seis delas foram mortas por esses felinos, entre elas cinco filhotes e uma fêmea que estava amamentando.
Embora seja natural, ariranhas não costumam ser a presa mais comum das onças. “É uma alta taxa de predação nunca antes vista”, ressalta Carol. “Há várias hipóteses para o que está ocorrendo. Pode ser um desequilíbrio da cadeia alimentar ou algo pontual, por causa da questão climática. Precisamos estudar mais para entender, mas eu me preocupo muito com o futuro da espécie, ainda mais com esse cenário global de mudanças climáticas.”
Imagem do banner: Ariranha (Pteronura brasiliensis). Foto: Marcelo Ismar Santana