Equipe liderada pelo Brasil passou 70 dias viajando em torno da Antártica para entender o ritmo do derretimento das geleiras e ver como a região está reagindo ao aquecimento global.
Os pesquisadores se surpreenderam com as mudanças na paisagem, e alertam que o clima do Brasil será cada vez mais afetado pelo aquecimento da Antártica.
O Rio Grande do Sul, que em 2024 sofreu a maior tragédia climática da história, deve se preparar para que algo parecido se repita dentro dos próximos 30 anos.
Onde antes só se via o branco da neve e do gelo agora aparece o verde dos musgos e das gramíneas. Em busca de lugares mais frios, peixes e pinguins migram para o sul. E até mesmo a chuva, até pouco tempo impensável nesta parte do planeta, agora tem dado as caras. Estes são apenas alguns dos sinais de que a temperatura está aumentando em partes da Antártica, e rapidamente.
“O que mais me chama atenção é o recuo das geleiras, e na frente delas cada vez menos neve, com o solo sendo ocupado por novos organismos”, diz Jefferson Cardia Simões, do Centro Polar e Climático da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). “Isso chama bastante a atenção, porque são mudanças que tu vê a olho nu”.
Professor de Geografia Polar, Simões visita a Antártica periodicamente desde 1990, em um total de 27 expedições científicas. A última, coordenada por ele, ocorreu entre novembro de 2024 e janeiro de 2025, e já é conhecida como a maior circum-navegação polar já realizada. A equipe formada por 61 pesquisadores de sete países percorreu 29 mil quilômetros, o equivalente a mais de cinco vezes a distância entre o Oiapoque, no Amapá, e o Chuí, no Rio Grande do Sul.

A viagem de 70 dias foi a bordo de um quebra-gelo russo, navio que consegue transpor o mar congelado e chegar pertinho das geleiras que cercam o continente. “Não temos quebra-gelo no Brasil e existem poucos disponíveis no planeta para a ciência”, diz Francisco Eliseu Aquino, professor do departamento de Geografia da UFRGS. “Com esta embarcação conseguimos cruzar por áreas de gelo marinho de até 1,5 metro de espessura e nos aproximar das maiores geleiras do mundo”, explica o pesquisador, que coordenou a equipe de climatologistas durante a expedição.
O grupo fez uma volta completa ao redor da Antártica, continente que tem 1,6 vezes o tamanho do Brasil, mantendo-se o mais perto das geleiras possível. Os pesquisadores colheram amostras de neve, gelo, plantas e microrganismos, cuja análise deve demorar pelo menos um ano para ficar pronta.

Apenas pela observação visual, no entanto, é possível concluir que as mudanças climáticas já têm efeitos devastadores na região mais ao norte da Antártica, onde fica, por exemplo, a base brasileira, a Estação Antártica Comandante Ferraz. Os impactos, dizem os pesquisadores, são sentidos em todo o hemisfério sul.
“A circulação oceânica e atmosférica existe por causa da diferença de temperatura entre os trópicos e regiões polares”, diz Simões. “Os processos que afetam as regiões polares afetam os trópicos e vice-versa. O sistema é único e indivisível”.
O aquecimento global aumenta essa diferença de temperatura entre os polos e os trópicos, intensificando as correntes atmosféricas. No Brasil, os efeitos são períodos mais quentes e secos no centro e norte do país — que no ano passado enfrentou uma estiagem histórica, com rios virando extensos bancos de areia na Amazônia — e mais chuva na região sul. “A Antártica tem papel dominante na quantidade e intensidade de ciclones e frentes frias no Rio Grande do Sul”, afirma Aquino.

Em 2023, o Rio Grande do Sul já havia sofrido duas grandes enxurradas, em setembro e novembro. Apenas seis meses depois, em maio de 2024, quantidades de chuva sem precedentes provocaram a maior tragédia climática do estado, com mais de 180 mortes e 700 mil desabrigados. Na capital dos gaúchos, Porto Alegre, partes da cidade ficaram mais de um mês debaixo da água.
“Esse cenário de degradação ambiental está criando as condições para que a polarização frio e quente seja mais intensa”, diz Aquino. “Por isso, podemos dizer que esse fenômeno vai ser repetir dentro de uma janela de trinta anos”.
Para além dos efeitos no clima, o aumento da temperatura na Antártica contribui para o aumento do nível do mar, que coloca em risco cidades costeiras do Brasil e do resto do mundo. Na Austrália, por exemplo, o avanço das águas já levou o governo a elaborar um plano de realocação da população de um arquipélago inteiro.
Um dos objetivos da equipe liderada pelo Brasil era coletar dados sobre a velocidade do derretimento destas geleiras, que têm em torno de 500 metros de espessura. Mais do que isso, eles querem entender se estas enormes massas de gelo estão deslizando mais rapidamente em direção ao oceano.
Segundo Aquino, isso pode acontecer pelo derretimento da parte da frente das geleiras, que fica junto ao mar. Sem a antiga contenção, o gelo localizado no continente acaba deslizando para dentro do oceano. “A geleira vai fluir mais rápido, vai derreter no mar e o nível do mar vai subir”, diz o pesquisador.

Outro agravante é o aumento da temperatura do oceano. Em alguns pontos, a água mais quente acaba entrando por debaixo da plataforma de gelo e cria um manto de água que funciona como um lubrificante, fazendo a geleira deslizar mais rápido em direção ao mar. “Com isso, dentro de 200 a 300 anos o nível do mar poderia aumentar de dois a três metros,” diz Simões.
O polo sul abriga 90% do gelo do planeta, e o oceano que cerca a Antártica é o que está aquecendo mais rapidamente, atrás apenas do Ártico. “A maior onda de calor recente no planeta Terra foi registrada na Antártica em 2022″, diz Aquino. “Foi tão surpreendente que a gente se assustou. A temperatura ficou 40 graus acima do esperado para aquela época”.
Os pesquisadores também detectaram a presença de microplásticos e fuligem em amostras de neve da Antártica. Uma das hipóteses é que o material tenha origem nas queimadas da Amazônia e tenha sido trazido até o polo sul por um rio atmosférico — mesmo fenômeno que deixou diversas cidades do Brasil cobertas de fumaça em 2024.
Imagem do banner: Pesquisadores querem entender não apenas o ritmo do derretimento das geleiras, mas também se elas estão deslizando mais rapidamente em direção ao oceano. Foto:Anderson Astor e Marcelo Curia / ICCE.