Na Reserva Extrativista Chico Mendes, mulheres e jovens transformam troncos caídos e árvores mortas em utensílios domésticos, que são também peças de arte.
Gamelas, miniaturas de árvore, móveis e biojóias feitos com madeiras de espécies nobres da floresta são as principais peças produzidas no Ateliê da Floresta.
A Resex Chico Mendes é uma das unidades de conservação mais pressionadas pela expansão do agronegócio e está entre as 10 que mais desmatam na Amazônia, segundo o Imazon.
RESEX CHICO MENDES, ACRE – Depois de atravessar o Rio Acre de balsa e rodar 23 km em carro 4×4 por estrada de terra, chegamos à marcenaria que dá vida ao que, de outra forma, seriam apenas resíduos em solo amazônico. No Ateliê da Floresta, que fica em Xapuri, na Reserva Extrativista (Resex) Chico Mendes, troncos caídos e árvores mortas são transformados em peças de arte, gerando rendimento extra às famílias locais.
Criada em junho de 2024, a marcenaria conta com a participação de 18 famílias e foi idealizada pelo primo de Chico Mendes, Raimundo Mendes de Barros, 79, carinhosamente chamado de Raimundão.
A unidade de conservação, nomeada em homenagem ao líder ambientalista assassinado em 1988, estende-se por quase 1 milhão de hectares e abrange sete municípios próximos à fronteira com Peru e Bolívia.
Na Resex, as comunidades locais praticam atividades florestais sustentáveis e conseguem sua renda principalmente a partir da colheita da castanha-do-Brasil e da borracha. Como os preços destes produtos sempre estiveram sujeitos às estações do ano e às flutuações do mercado, diversificar as fontes de renda tem sido um desafio constante para os extrativistas.
“A gente tem um foco muito grande no trabalho com a castanha e a seringa, né?”, diz à Mongabay Rogério Mendes de Barros, 26 anos, filho de Raimundão. “Essas fontes de renda não completam toda a nossa necessidade de economia pessoal de vida, né? Então, a gente vem sempre buscando mais alternativas”.

A Resex Chico Mendes é uma das reservas que mais sofre a pressão do desmatamento com a crescente expansão do pasto. Dar condições de vida para os povos locais permanecerem na floresta é uma forma importante de manter a Amazônia em pé, de acordo com Raimundão.
O Ateliê surge como uma alternativa de geração de renda que agrega mulheres e jovens num trabalho criativo. “O artesão é uma profissão nobre. Com isso, deixamos de derrubar as árvores vivas”, diz Raimundão.
A boiada pressiona
Segundo o Instituto do Homem e Meio Ambiente da Amazônia (Imazon), a Resex Chico Mendes frequentemente ocupa o ranking do Sistema de Alerta de Desmatamento (SAD), figurando entre as 10 unidades de conservação que mais desmatam na Amazônia Legal. A partir de março de 2024, ela esteve no ranking por nove meses consecutivos.
“As áreas protegidas, ao mesmo tempo que servem como refúgio para conservação da fauna e flora da região, também são territórios que sofrem muita pressão ambiental, quando estão inseridas em uma região com intensa atividade exploratória ao seu redor”, diz Larissa Amorim, pesquisadora do Imazon.
Segundo a especialista, dados recentes mostram que o desmatamento de janeiro a novembro de 2024 já superou em 30% a devastação que ocorreu no mesmo período de 2023.
Em 2023 o gado já avançava por mais de 105 mil hectares da reserva, segundo o MapBiomas, uma perda de 11% de área florestada da Resex.
Na região em que a diversificação de fontes de renda é um dos principais desafios, ter algumas cabeças de gado é considerado pelos locais como uma poupança para casos de emergência. O gado pode sempre ser vendido facilmente.

Dentro da Resex, no entanto, aumenta a pressão pelo pasto e há casos em que os extrativistas se sentem tentados a vender sua colocação para fazendeiros, o que é proibido por lei, pois as terras pertencem ao Estado. Quando isso acontece, o extrativista acaba ficando com uma área de terra muito reduzida, onde está a própria casa, e não tem mais a renda que os produtos da floresta propiciam.
“Nenhum de nós está proibido de criar nossos animais, como gado. Mas nós não podemos transformar nossa área numa fazenda”, diz Raimundão. “Nós podemos ter até 15 hectares de campo com capim. E além do capim, nós temos que ter a seringa, a castanha, a madeira de lei, até para ajudar os animais a pastarem na sombra das árvores. Isso pode”.
Segundo a pesquisadora do Imazon, é urgente intensificar as ações de combate ao desmatamento nessa região. “É necessário identificar e punir os responsáveis pelo não cumprimento do uso sustentável dos recursos naturais desta área protegida”, diz Larissa.
De acordo com o ICMBio, há 100 processos de desocupação, retirada de gado e similares tramitando atualmente dentro da Resex como resultado de denúncia ou fiscalização. Mas o tempo da lei é lento e leva de dois a sete anos para que um infrator seja efetivamente retirado de dentro da Resex.

Coletar madeira morta
Com vista para a grande mangueira, sentado na varanda de sua casa, Raimundão conta que a ideia do Ateliê surgiu quando estava envolvido num projeto de manejo de madeira na Resex. O manejo é um processo autorizado em que ocorre a extração sustentável de espécies de árvores selecionadas, dentro de critérios que não danificam a floresta.
Cumururana, cedro, cerejeira, maçaranduba, entaúba, entre outras, eram árvores extraídas no manejo.
Ao longo do projeto, alguns problemas surgiram. “A gente começou a perceber que a entaúba quando frutifica é um excelente alimento para os animais, e a cerejeira também, né? A maçaranduba também. Então a gente começou a se preocupar com a distribuição dos alimentos para os animais na floresta”, conta Raimundão.
Uma segunda questão chamou a atenção do extrativista. Quando ele precisou de madeira para o forro de sua casa, foi comprar na serralheria que funcionava dentro da Resex, mas era administrada por gente de fora da reserva.

“Nós estávamos vendendo o metro da madeira a R$ 60 e, quando eu cheguei lá, custava R$ 1.200. Aí, eu disse: não dá não para continuar com esse negócio. Isso vai empobrecer a nossa reserva de aves nobres, vai diminuir a alimentação dos animais, e quem vai ganhar dinheiro são os que estão fazendo o beneficiamento da madeira”, explica Raimundão.
Foi assim que surgiu a ideia de fazer a coleta de toda madeira morta dentro da floresta, aproveitando aquilo que está se perdendo e transformar em produtos de arte.
“Há 15 anos a gente estava buscando meios para trabalhar com as madeiras e gerar fonte de renda sólida”, explica Rogério. “O Ateliê sempre foi um sonho do Raimundão”.
Para viabilizar o projeto, Rogério e Raimundão procuraram organizações não governamentais que dão suporte a projetos ambientais na Amazônia. Com experiência na obtenção de financiamento e na identificação de oportunidades, estas organizações ajudaram a fornecer os recursos necessários para o avanço do projeto.

O Ateliê começou com um curso de carpintaria com a duração de um mês, frequentado por 12 mulheres e jovens da comunidade local. Conduzido por um instrutor experiente, o curso centrou-se na confecção de utensílios cotidianos de madeira com uma estética moderna. Esta formação inicial serviu de base para o projeto, dotando os participantes de competências práticas e conhecimentos de design.
“O interessante do projeto é que trouxe possibilidades não só para artesãos de desenvolver habilidades, não só para jovens, mas para mulheres também, ao desenvolver habilidades que muitas vezes podem estar adormecidas”, diz Neluce Soares, coordenadora executiva do Legado Integrado da Região Amazônica (Lira/ IPÊ), que apoiou a iniciativa com recursos do Fundo Amazônia e da Fundação Gordon e Betty Moore. “Teve um curso de design para ajudar, mas eles vão desenvolvendo a criatividade e elaborando utensílios para o uso deles também, para que não seja uma coisa que vá só para fora, mas que eles também possam ter o direito de usar coisas bonitas”.
Miguel Scarcello, secretário da SOS Amazônia, ONG que executou o projeto, considera importante a continuidade do desenvolvimento dos artesãos. “As famílias já tiveram uma etapa de treinamento e agora estão numa fase de desenvolver e se aperfeiçoar na produção dos objetos. Precisam investir muito nesse processo de aperfeiçoamento para atender às exigências que o mercado estabelece”.

Novos desafios
Caminhando até o Ateliê da Floresta, que fica a poucos metros da casa de Raimundão, quem canta alto, festejando a iniciativa, são os japus (Coryphospingus pileatus), ave típica da região amazônica que se alimenta de frutas, contribuindo para a dispersão de sementes na floresta.
Com encomendas de galerias de Manaus e São Paulo, as vendas do Ateliê nos primeiros seis meses chegaram a 60 mil R$. “O Ateliê está ganhando nome rapidamente. Mas a gente sempre está buscando parcerias para mostrar mais o nosso produto”, diz Rogério, que busca participação em feiras e parcerias como, por exemplo, com a Agência Brasileira de Promoção de Exportações e Investimentos (ApexBrasil) para exibir os produtos a potenciais compradores no exterior.
“Meu sonho não é que ele fique só na nossa comunidade, mas que esse trabalho alcance o Brasil todo e para fora e que a gente possa desenvolver outros ateliês em outras comunidades”, diz Rogério.
“Quando aparecem turistas, eles compram muito. Ajuda na renda. É pouco, mas ajuda”, conta Fabíola da Silva Feitosa, enquanto esculpe biojóias feitas com sementes naturais da floresta.
“A gente já vendeu bastante aqui”, acrescenta Elque Brito, que mora a 12 quilômetros do Ateliê e vem de moto três vezes por semana para trabalhar. “Tudo o que a gente faz, a gente vende junto e divide”.

Ainda em crescimento e envolvendo jovens e mulheres, o trabalho no Ateliê já encontra alguns desafios: conseguir recurso para contratar um novo professor que possa desenvolver e aprimorar os conhecimentos e habilidades dos artesãos e encontrar um técnico que faça a manutenção do maquinário da marcenaria dentro da Resex – a distância dificulta, e algumas máquinas já estão paradas à espera de conserto.
Para Raimundão, dar continuidade e ampliar o empreendimento é motivo de orgulho. Segundo o extrativista, quem leva uma peça do Ateliê está levando uma memória da Resex. “Com isso, está ajudando aqueles que estão aqui produzindo, que estão vivendo aqui na floresta e exaltando o nome daquele seringueiro que teve a coragem de enfrentar a bandidagem do latifúndio e dos políticos inescrupulosos, dando a sua própria vida em defesa dessa causa”, complementa, exaltando o legado de Chico Mendes.
Imagem em destaque: Peças em exposição na loja do Ateliê da Floresta. Foto de Sibélia Zanon para a Mongabay.
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