Um bem-sucedido programa de reintrodução da ararinha-azul, ave declarada extinta na natureza, em seu habitat nativo tornou-se incerto devido a uma rixa entre as duas principais instituições envolvidas no programa.
O ICMBio recusou-se a renovar um acordo com a ACTP, a organização alemã que administra o programa utilizando aves de seu plantel de cativeiro.
O ICMBio alega que a ACTP se envolveu em transações comerciais de ararinhas-azuis ao transferir algumas das aves para um zoológico privado na Índia, mas a ACTP insiste que não houve venda e que está apenas realocando parte de seu plantel para instalações melhores na Índia.
Por sua vez, a ACTP acusa o ICMBio de politicagem e de prejudicar o programa de reintrodução; a rixa colocou o futuro do programa em dúvida, dado que atualmente não existem aves cativas suficientes fora do plantel da ACTP para abastecer o programa em longo prazo.
Esta é a segunda parte de uma reportagem sobre a reintrodução da ararinha-azul. Leia a primeira parte aqui.
Em 2022, a ararinha-azul (Cyanopsitta spixii), um dos psitacídeos mais ameaçados do mundo, começou a ser reintroduzida na Caatinga. A espécie, que faz do grupo das araras, papagaios e periquitos, desapareceu de seu habitat nativo em 2000, ano em que seu último indivíduo na natureza conhecido morreu.
O projeto de reintrodução, no município de Curaçá, na Bahia, vinha sendo coordenado por duas instituições: a Association for the Conservation of Threatened Parrots (ACTP), um criadouro alemão que atualmente abriga a maioria das ararinhas-azuis restantes no planeta; e o Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio), autarquia do governo brasileiro responsável pela gestão de áreas protegidas e biodiversidade.
O primeiro ano da reintrodução obteve um sucesso notável, com uma boa parcela das 20 ararinhas-azuis soltas sobrevivendo e permanecendo juntas, e com casais reproduzindo e chocando os primeiros filhotes nascidos na natureza em décadas. No entanto, em maio de 2024, o ICMBio anunciou que não renovaria seu acordo de cooperação técnica com a ACTP, que terminou oficialmente em junho.
A decisão veio como uma surpresa para conservacionistas envolvidos na reintrodução, e colocou em dúvida o futuro do promissor programa.
“Estou realmente perplexo com a decisão das autoridades brasileiras de não renovar o acordo com a ACTP. Não há razão biológica para essa decisão,” diz Thomas White, um dos líderes do Projeto de Recuperação do Papagaio-de-Porto-Rico e consultor do projeto de reintrodução da ararinha-azul desde 2012. “Temos uma reintrodução em seus estágios iniciais críticos, obtendo um sucesso fenomenal e histórico, e mudar completamente a gestão [do programa] neste momento é muito contraintuitivo e contraproducente.”
Comercial ou não?
Como White apontou, não havia razão biológica para o encerramento do acordo. A decisão foi administrativa. Segundo o ICMBio, o fator-chave por trás dela foram “as transações comerciais com ararinhas-azuis realizadas pela ACTP”.
A Mongabay e outros veículos já noticiaram controvérsias envolvendo a ACTP e seu fundador, Martin Guth. A instituição já foi acusada de falta de transparência em suas operações, e de usar métodos questionáveis para adquirir algumas de suas aves, especialmente dois papagaios-imperiais (Amazona imperialis) e dez papagaios-de-pescoço-vermelho (Amazona arausiaca) obtidos da Dominica em 2018.
Neste caso, as “transações comerciais” citadas pelo ICMBio dizem respeito à transferência, em 2023, de 26 ararinhas-azuis e quatro araras-azuis-de-lear (Anodorhynchus leari) — outra espécie endêmica do Brasil listada como ameaçada — para um zoológico privado na Índia, o Greens Zoological Rescue and Rehabilitation Centre (GZRRC).
As ararinhas-azuis são listadas no Apêndice I da Cites, a convenção global sobre o comércio internacional de vida selvagem, o que significa que seu comércio só é permitido em circunstâncias especiais.
Críticos afirmam que a transferência das aves da Alemanha para a Índia não atendeu a esses critérios. Vinte organizações envolvidas com a conservação da vida selvagem, bem-estar animal e esforços anti-tráfico, incluindo o World Parrot Trust, assinaram uma carta condenando o ato (junto com a transferência pela ACTP de outras 50 ararinhas-azuis para instalações na Bélgica, Dinamarca e Eslováquia), assim como o que designaram como uma má implementação das regulamentações de comércio de vida selvagem por parte da União Europeia. Embora autoridades alemãs tenham considerado a transação como não comercial, segundo a carta, o “criadouro alemão aparentemente recebeu quantias significativas de dinheiro pela transferência de aves criadas em cativeiro para pessoas privadas e zoológicos”.
O ICMBio disse à Mongabay que o Brasil é “terminantemente contrário ao comércio dessa espécie, ainda que com justificativas de financiamento de ações conservacionistas. O comércio de ararinhas-azuis é prejudicial à conservação da espécie e favorece interesses particulares em detrimento da proteção do bem público”.
A ACTP nega ter vendido as aves para o zoológico indiano. Em uma declaração emitida antes da reunião da Cites de novembro passado, a organização afirmou que “esta operação não é uma transação comercial e nenhuma ararinha-azul ou qualquer outra ave foi vendida.” A transferência, segundo o documento, foi necessária para expandir o espaço para criar as aves, expandir o projeto para outras partes do mundo e apoiar o programa de reintrodução. “Não houve transferência de propriedade dos animais para qualquer outra organização, e as aves e seus descendentes permanecem sob a propriedade da ACTP”, acrescentou.
O mesmo é reiterado por Cromwell Purchase, coordenador científico e de projetos de campo da ACTP, que supervisiona a reintrodução da ararinha-azul na Caatinga. “Martin está lentamente movendo suas instalações para a Índia,” disse Purchase à Mongabay. “Ele tem um pedaço de terra arrendado — um arrendamento de 99 anos com o Greens. Nesse terreno, o Greens construiu instalações de última geração, ainda melhores que as que ele tem na Alemanha. “A transferência é basicamente da ACTP para a ACTP”, acrescenta.
Cromwell diz que as licenças da Cites sob as quais as aves foram transferidas “são extremamente rigorosas. Nas licenças está escrito que as aves não são para comércio. Elas são especificamente para o programa da ararinha-azul. Então, não é como se a instituição indiana pudesse fazer qualquer coisa com essas aves além de usá-las para o programa”. Ele acrescenta que, enquanto o criadouro alemão abriga espécimes que pertencem legalmente ao governo brasileiro, todas as aves transferidas para a Índia são de propriedade da ACTP. “A ACTP não precisa da permissão do ICMBio para mover suas aves”, diz.
Problemas e política
Purchase acusa o ICMBio de usar a alegação de que a transferência era comercial para atacar a ACTP na reunião da Cites. Ele diz que a autarquia é culpada de atrasar o projeto, falhando em agir em prazos adequados em momentos-chave da reintrodução — atrasando, por exemplo, a transferência de mais ararinhas-azuis da Europa para o Brasil. Ele alega segundas intenções por parte de alguns funcionários do ICMBio, motivadas pelo papel central desempenhado pela ACTP na reintrodução, instituição que até o momento financiou a maior parte do programa. Ele diz que o Centro Nacional de Pesquisa e Conservação de Aves Silvestres (Cemave) do ICMBio, em particular, “apenas criou problemas e fez politicagem.”
Ugo Vercillo, diretor da Blue Sky Caatinga, empresa envolvida no programa que está restaurando os ecossistemas onde as aves são liberadas, acrescenta que um total de 120 ararinhas-azuis já deveria ter sido importado até o momento — mais do que o dobro das 52 trazidas da Alemanha até agora — e que 60 já deveriam ter sido soltas.
O ICMBio nega as acusações, dizendo que “não há animosidade da parte do ICMBio em relação a instituições estrangeiras e privadas que participam do projeto.” O que a agência tem, segundo ela, são “ressalvas quanto a certas atitudes da ACTP”.
A agência também nega estar prejudicando o programa de reintrodução, mantendo que sempre o apoiou: “Cumprimos da melhor forma possível, dentro das possibilidades institucionais, o que estava previsto no Acordo de Cooperação Técnica. Jamais dificultamos a entrada de ararinhas-azuis no Brasil”. O ICMBio também diz que recentemente aprovou a transferência de 42 ararinhas-azuis da ACTP para o Brasil. Mas, segundo Purchase, a aprovação veio tarde demais para que a reintrodução fosse realizada este ano.
Dada a atual situação, no entanto, a chegada dessas ararinhas-azuis na Caatinga tornou-se uma questão incerta. Em uma declaração dada ao site de notícias ((o))eco, Martin Guth, da ACTP, disse que “dado o futuro incerto do [projeto de conservação da ararinha-azul], não arriscaremos a vida de mais aves sem um entendimento claro da posição do governo brasileiro sobre sua reintrodução.”
O fim do acordo não impede a ACTP de continuar com a reintrodução, mas torna as coisas mais complicadas. Sob o acordo, o ICMBio era responsável por dar suporte técnico no monitoramento das aves e suporte burocrático ao projeto como um todo, enquanto a ACTP era responsável por construir e gerenciar as instalações para criar, treinar e soltar as aves dentro da área ocupada historicamente pela espécie. Com o ICMBio fora de cena, a ACTP ainda tem outros parceiros brasileiros dispostos a fornecer suporte. A Blue Sky Caatinga foi recentemente encarregada de gerenciar as instalações em Curaçá.
“[Em 10 de junho] foi publicada a portaria transferindo a gestão do centro do ICMBio para a Blue Sky”, disse Vercillo à Mongabay. “Então a Blue Sky vai começar a ter veterinário, contratar uma equipe, tudo isso.”
O ICMBio também não está se afastando da conservação; continuará a gerenciar duas áreas protegidas estabelecidas em 2018 especificamente para proteger futuras populações selvagens de ararinhas-azuis. A autarquia também irá monitorar as aves fora da área onde a ACTP conduz suas operações.
Um futuro incerto
Há cerca de 80 ararinhas-azuis atualmente no Brasil, divididas entre a população reintroduzida na Caatinga, as instalações geridas pela ACTP em Curaçá e o Zoológico de São Paulo. Este último atualmente abriga 27 aves recentemente transferidas de outra instituição a pedido do Cemave, mantidas em um novo centro de conservação construído especialmente para a espécie.
“A gente tem total interesse de participar do programa de reintrodução”, diz Fernanda Vaz Guida, bióloga responsável pelo setor de aves do zoológico. A instituição observou a formação de três casais entre suas ararinhas-azuis, e Guida espera que eles comecem a se reproduzir em breve. O objetivo do zoológico é eventualmente alcançar dez casais reprodutores para continuar aumentando a população de ararinhas-azuis. Ele tem hoje espaço suficiente para abrigar 44 aves.
Mas isso não é suficiente para abastecer o programa de reintrodução — cujos gestores têm como meta reintroduzir 20 aves por ano na natureza — se a ACTP decidir abandonar o projeto, colocando seu plantel de 267 aves, com mais 60 nascidas a cada ano, fora de alcance.
O ICMBio nega ter concordado oficialmente com a meta de liberar 20 aves por ano. Segundo a autarquia, o protocolo era experimental e, mesmo que a ACTP continue a cooperar plenamente com o projeto, diz que tirar tantas aves da população de cativeiro a cada ano poderia comprometer o estoque da espécie.
Mas, de acordo com Vercillo, que liderou um estudo apresentando uma análise de viabilidade populacional para a espécie em 2023, isso é improvável. Segundo ele, utilizar menos de 50% das aves nascidas em cativeiro e menos de 10% da população cativa para o programa de reintrodução a cada ano não deve comprometer o plantel da espécie.
Perguntado sobre seus planos para o futuro da reintrodução da ararinha-azul à luz da não renovação do acordo de cooperação, o ICMBio diz que “buscará a inclusão de todas as ararinhas-azuis existentes sob cuidados humanos (cativeiro) no programa de manejo oficial da espécie, contando com a continuidade do trabalho desenvolvido pela ACTP. Caso a ACTP resolva retirar-se do projeto de reintrodução, o governo brasileiro dará continuidade ao projeto assim que houver segurança para que sejam liberados, na natureza, grupos de tamanhos adequados e de forma contínua, de acordo com o melhor conhecimento existente sobre a espécie”.
Ainda assim, a decisão de desistir do acordo, rompendo uma parceria que, embora conturbada, estava funcionando em benefício da ararinha-azul, deixou muitos preocupados com o futuro da espécie.
“Esperamos que haja mais solturas,” diz Purchase. “Enquanto pudermos seguir o algoritmo e soltar 20 aves por ano, considerando o incrível sucesso das aves liberadas no primeiro ano, podemos assumir grandes chances de uma população sustentável dentro de 20 anos.”
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Imagem de banner: Ararinha-azul no Zoológico de São Paulo. Foto cedida pelo Zoológico de São Paulo