O Refúgio de Vida Silvestre Tatu-Bola tem 110 mil hectares de extensão e é a maior unidade de conservação de proteção integral de Pernambuco.
Foi criado em 2015 para salvaguardar espécies endêmicas da Caatinga, um dos biomas menos protegidos do país
No local, porém, há dezenas de comunidades agrícolas que dizem estar ameaçadas de expropriação e propõem o fim da reserva.
O decreto de criação da unidade de fato proíbe qualquer tipo de atividade econômica em sua área, mas, segundo especialistas, isso poderia ser resolvido com um plano de manejo – que, quase dez anos depois, ainda não foi feito.
Este ano, o Refúgio de Vida Silvestre Tatu-Bola completa uma década. Maior unidade de conservação (UC) de proteção integral de Pernambuco, com 110 mil hectares de extensão, ela foi criada para proteger a fauna e a flora da Caatinga. Segue, porém, sem plano de manejo, documento essencial para compatibilizar as ações em seu interior.
O RVS Tatu-Bola abrange os municípios de Petrolina, Lagoa Grande e Santa Maria da Boa Vista, no sertão do São Francisco. Dentro da área do refúgio, pequenos produtores mantêm tradicionalmente criação de ovinos e caprinos e agricultura de base familiar. Uma vez definido o plano de manejo, essas atividades poderiam ser mantidas em compatibilidade com a preservação da área.
Para fazer um balanço dessa primeira década, a Mongabay visitou o refúgio e encontrou uma população que, alvo de desinformação, crê que terá suas terras expropriadas a qualquer momento.
Deusdete do Senhor do Bonfim, de 60 anos, nasceu e foi criado na comunidade de Baixa Alegre, uma das comunidades situadas dentro do RVS Tatu-Bola. Emocionado durante a entrevista, ele narra sua relação com a terra: “Foi herança do nosso avô, passou pro meu pai, criei os meus filhos e hoje já sou avô. O que nós temos é produzido aqui na terra, trabalhando de sol a sol”.
Nos seus quase 60 hectares de propriedade, Deusdete afirma que preserva cerca de 20% de Caatinga: “A gente não desmata total, deixa umbuzeiro, umburana, aroeira… esses paus grandes a gente deixa”.
O agricultor, que produz milho, feijão, mamona e outros cultivares, diz que perde noites de sono com a ideia de perder as terras. “Ainda não chegou a ordem, mas o que a gente sabe é que é pra sair sem direito a nada, sem nem poder chupar um umbu do pé de umbuzeiro”, conta.
O que diz a legislação
A lei estadual 13.787, inspirada na lei nacional 9.985, é responsável pela criação e regulamentação das UCs em Pernambuco. Segundo o dispositivo, a expropriação de terras, mesmo em uma unidade de proteção integral, só acontece se for comprovada a total incompatibilidade de atividades antrópicas (humanas). Quem pode apontar essa compatibilidade é o plano de manejo.
A advogada e auditora membro da Comissão de Proteção Animal e Ambiental da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) em Petrolina, Shirley Lourenço, explica que a expropriação de terras não é uma consequência direta da criação de uma UC.
A jurista Shirley Lourenço observa ainda que a UC tem um objetivo de preservação ambiental, mas também tem um caráter social. “Isso não está sendo atendido. A população está desinformada, perdida, pessoas doentes. Se você criar uma unidade de conservação e não adotar política pública não adianta”, observa.
“Expropriar porque a lei define? Não é assim! Tem que ter um plano de manejo para mostrar quais atividades particulares existentes ali são compatíveis ou não com a proposta da UC.Esse plano precisa ser conhecido do produtor para que ele saiba como agir em uma unidade de conservação”, esclarece.
Segundo José Siqueira, professor da Universidade do Vale do São Francisco (Univasf) e autor do estudo e do planejamento estratégico que deram origem ao RVS Tatu-Bola, as atividades tradicionais pré-existentes no território — agricultura de base familiar e criação de caprinos e ovinos — “são totalmente compatíveis com a unidade de conservação, desde que sejam adaptadas ao processo de transição agroecológica, uma necessidade que deve ser preconizada no plano de manejo da UC”.
Ele explica que as terras agricultáveis foram excluídas da delimitação. “O polígono da reserva foi definido cruzando os shapes [mapas] de solos disponíveis e de vegetação nativa, longe de comunidades e estradas. Uma estratégia não conflitiva, tudo pautado pela ciência, baseado nos princípios da Ecologia de Paisagem. Qual o sentido de vermos uma terra que o agricultor está plantando alimento, criando animal e dizer que ela agora passa a pertencer ao Tatu-Bola?”, questiona.
Siqueira afirma que realizou diversas visitas prévias às comunidades, além das audiências públicas nas Câmaras Legislativas dos três municípios envolvidos, etapas obrigatórias da criação de unidades de conservação.
“Na época, aprovamos um projeto de extensão na Univasf com recursos da ordem de R$ 750 mil para trabalhar com educação ambiental nas escolas dos municípios, especialmente aquelas localizadas na zona rural, mas houve retaliação das secretarias de educação de Lagoa Grande e Santa Maria da Boa Vista. O recurso foi praticamente devolvido ao governo”, relata o pesquisador, referindo-se ao receio das prefeituras de que a criação da reserva prejudicasse a economia local. “A população deixou de ser mobilizada para as audiências, dificultando o acesso à informação.”
O Refúgio Tatu-Bola não é um caso isolado. Das 2.945 UCs existentes no Brasil, 45,43% não possuem plano de manejo, revela o Painel de Unidades de Conservação Brasileiras do Ministério do Meio Ambiente.
No caso de uma unidade de proteção integral, avalia a advogada Shirley Lourenço, seria necessário que o plano estivesse pronto já no processo de criação da UC. “É de fundamental importância por se tratar de uma [unidade] de proteção integral que esse plano de manejo já esteja pronto no momento da formação dessa unidade”, reforça.
Preservação da Caatinga e tatu ameaçado
A área do RVS Tatu-Bola possui mais de mil espécies vegetais, das quais 30% são endêmicas da Caatinga e estão sob forte ameaça de extinção, entre elas o umbuzeiro. O levantamento realizado para a criação da reserva constatou, por exemplo, um declínio de indivíduos jovens de umbuzeiros na área.
A unidade de conservação teria, pois, o papel de proteger as gerações futuras dessa e de outras espécies vegetais e animais, inclusive a do raro tatu-bola-da-caatinga (Tolypeutes tricinctus), que dá nome à reserva. Este mamífero endêmico do semiárido já chegou a ser dado como extinto e hoje tenta sobreviver à perda de habitat e à caça para consumo.
O estudo alerta que a preservação do tatu-bola impactaria também no controle da hanseníase, já que várias espécies de tatu costumam hospedar a bactéria Mycobacterium leprae, vetor da doença infecciosa. Combater o consumo de sua carne seria uma forma de evitar a disseminação da enfermidade.
Vale lembrar que apenas 2,3% da Caatinga estão protegidos por uma unidade de conservação de proteção integral. O fato é alarmante pois o bioma é o terceiro mais afetado pelo desmatamento no Brasil — segundo o MapBiomas, o número de alertas de desmatamento identificados ali aumentou 2.500% entre 2019 e 2022. O excesso de uso do solo para agropecuária, somado às mudanças climáticas, também já levou 13% da Caatinga à desertificação.
O professor Siqueira, autor desse estudo, afirma que a proposta inicial do refúgio media 76 mil hectares e incluia os 20% de reserva florestal dos assentamentos rurais. “O Incra [Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária] averbou as reservas florestais nos assentamentos e, quando os técnicos da Semas [Secretaria Estadual do Meio Ambiente] entraram no território, ampliaram a área da UC para 117 mil hectares, se aproximaram das comunidades rurais e, ao final, ficou com 110 mil hectares”, diz.
O estudo que viabilizou a criação da UC Tatu-bola também identificou outras duas unidades de conservação. O Parque Estadual de Serra do Areal, que possui 1.596 hectares, e o Refúgio de Vida Silvestre Riacho do Pontal, com 4.819 hectares, que foram titulados em 2014, e também seguem sem plano de manejo.
“Por que não há conflito quanto à ausência dos planos de manejos dessas duas unidades?”, questiona Siqueira. “A [reserva] Tatu-Bola tem área maior e toca em interesses econômicos. O governo do Estado precisa criar os planos de manejo dessas outras unidades.”
Desinformação e discurso de expropriação
Nos últimos dois anos, a desinformação e o discurso de expropriação, que já alcançavam níveis altos, ganharam ainda mais ênfase no RVS Tatu-Bola. Na comunidade de Icó de Né Gomes, 108 famílias vivem da agricultura.
O presidente da Associação dos Agricultores e Criadores de Caprinos e Ovinos de Icó de Né Gomes, Lucivaldo Elizeu Barbosa, diz que “[os agricultores] ficaram sabendo que estavam dentro de uma reserva quando, já no ano passado [2023], foram pegar empréstimo no banco e foi negado, por ser uma área protegida desde 2015.”
Além dos contratempos bancários, as comunidades relatam que outros serviços também foram suspensos para quem mora na reserva, como a instalação de rede de energia elétrica e a manutenção das estradas.
Quase o mesmo discurso se repete em outras comunidades. Os agricultores pedem pela revogação do decreto do refúgio, mesmo não sabendo ao certo o que significa. A comunidade entrou em pânico ao escutar um áudio com um trecho de uma entrevista dada pelo prefeito de Lagoa Grande, Vilmar Capellaro, na rádio Petrolina FM, em que afirma que o Banco Mundial estaria pedindo a retirada dos moradores da área.
“Esse projeto que foi aprovado é uma reserva integral, onde as pessoas não podem utilizar suas áreas (…). Veio agora a determinação e as exigências do Banco Mundial para que se cumpra as determinações”, diz o prefeito na gravação da entrevista que circula nos grupos de WhatsApp.
O deputado estadual Luciano Duque é um dos políticos mais atuantes contra o refúgio. Sua chegada na mobilização reforçou o discurso confuso da expropriação. “O sentimento é de expropriação, ou seja, hoje eu não posso usar mais minha terra. Eu não fui desapropriado, mas tive um direito tolhido porque o governo criou um RVS e não permite que eu tenha direitos de produzir na reserva”, explica Duque à Mongabay.
O presidente do Conselho Municipal e de Desenvolvimento Rural Sustentável de Lagoa Grande (CMDRS) Ivo Lopes, que mora em um dos assentamentos que se sobrepõem ao refúgio em Lagoa Grande, afirma que “nenhum agricultor foi expropriado e nem precisou parar de trabalhar”.
Ele conta que houve dificuldades de acessar políticas públicas, como o crédito do Pronaf [Programa Nacional de Fortalecimento da Agricultura Familiar], mas que esse problema foi resolvido em 2022, quando o governo de Pernambuco acrescentou um parágrafo ao decreto de criação do parque, permitindo provisoriamente a atividade agrícola ali dentro.
Interesses políticos e econômicos
Em Lagoa Grande, José Adenilson Damasceno Campos, presidente de outra associação criada por produtores que se dizem prejudicados pelo refúgio, afirma que os requisitos foram “absurdos” e que o levantamento feito foi “fictício”.
“É um descaso com os agricultores. Essa reserva, a gente sabe que o intuito dela foi só de gerar dinheiro para encher mais os cofres públicos”, diz o produtor rural, que há 28 anos é proprietário de uma área de 400 hectares, hoje localizada na reserva, onde cria caprinos e bovinos — a criação de gado não é compatível com a proposta do refúgio.
A compensação econômica citada por Adenilson é o ICMS Ecológico. De acordo com dados do Tribunal de Justiça de Pernambuco (TJPE), o município de Santa Maria da Boa Vista recebeu pouco mais de R$ 885 mil de ICMS Ecológico em 2023 como forma de compensação pela existência de unidade de conservação de proteção integral em seu território.
Já o município de Lagoa Grande recebeu quase R$ 2,8 milhões, enquanto Petrolina quase R$ 680 mil. A reportagem fez contato com as prefeituras dos três municípios para saber como esse recurso é investido. Nenhuma das instituições respondeu.
Dentre os perfis identificados na apuração de campo, o de José Adenilson é o que mais se diferencia pela atividade agropecuária e pela larga extensão de terras que possui. Imagens do sistema de alerta de desmatamento do MapBiomas de 2022, analisadas pela nossa equipe, mostram uma área de 37 hectares que foi suprimida pela agropecuária dentro da propriedade de José Adenilson.
A associação comandada por Adenilson pede o fim do refúgio. “Estão tentando tirar a gente das terras sem direito a nada, sem nenhum tipo de indenização, que a gente nem quer. A gente quer ficar do jeito que a gente era”, pontua o presidente.
É importante destacar que os membros da associação que ele representa e que encontramos durante a apuração possuem pequenas porções de terra e atividades agrícolas de cunho familiar.
A Mongabay apurou que há também outros interesses por trás do fim do RVS Tatu-Bola. Na época da criação da UC, um dos trechos, localizado entre 700 e 800 metros de altitude, foi identificado como tendo vocação para ser uma Reserva Biológica, a Serra do Recreio. Esse tipo de unidade é destinado à preservação integral de todos os seres vivos do ambiente.
De acordo com uma fonte ligada ao projeto de criação do RVS Tatu-Bola, mas que prefere não se identificar, “esse trecho seria alvo de um grande empreendimento eólico, que estava sendo negociado com um grupo português”, afirmou. O trecho estava situado na área de um produtor rural, que segundo essa fonte, começou a se posicionar de forma contrária ao RVS nas redes sociais e na imprensa. Esse teria sido o início do conflito na região, segundo essa fonte.
Uma solução para o impasse
Enquanto o plano de manejo não sai e o conflito não se resolve, o governo de Pernambuco modificou o decreto de criação do RVS Tatu-Bola em 2022, acrescentado um parágrafo que permite a prática de agricultura familiar, produção orgânica e sistemas agroflorestais sustentáveis na reserva, entre outras modalidades agroecológicas, “até que seja elaborado e publicado um Plano de Manejo”. Essa mudança tem permitido aos produtores obter o crédito rural no contexto do Pronaf (Programa Nacional de Fortalecimento da Agricultura Familiar).
Visando uma solução definitiva para o conflito, o presidente do Conselho Municipal e de Desenvolvimento Rural Sustentável de Lagoa Grande (CMDRS), Ivo Lopes, afirma que membros da Agência Estadual do Meio Ambiente de Pernambuco (CPRH) têm mantido contato com o órgão.
“A proposta deles, já que a maioria [dos agricultores] tem cadastro ambiental, seria transferir a área do refúgio para a área de reserva do cadastro ambiental. Porém, muita gente não sabe que o cadastro tem uma área de reserva e que, se for desmatada ou causar transtorno ambiental, pode ser penalizado”, explica Ivo.
Segundo afirmou o presidente do CMDRS, a CPRH estaria propondo que as áreas preservadas que existem dentro de cada assentamento sejam sobrepostas à área de refúgio. Sendo assim, essas áreas teriam que obrigatoriamente ser preservadas para cumprimento do Código Florestal e do Refúgio de Vida Silvestre. No entanto, não sabemos como ficariam as propriedades que não têm formato de assentamento. A Mongabay não conseguiu confirmar essa informação com a CPRH.
A reportagem também tentou contato com a assessoria de imprensa da CPRH para saber se há previsão para elaboração do plano de manejo do RVS Tatu-Bola. A assessoria informou, por mensagem no WhatsApp, que “a CPRH não se pronunciará sobre o assunto, enquanto não forem concluídos os estudos que estão sendo realizados na área”.
Para Ivo Lopes, a revogação não é mais possível, mas é necessário que no plano de manejo o agricultor seja o protagonista. “Com o plano de manejo instalado, o que o agricultor familiar vai ter de benefício, já que é ele que preserva, e qual a garantia de que ele vai poder permanecer na roça dele?”, questiona.
Em novembro de 2015, oito meses após a criação do RVS Tatu-Bola, o Conselho Estadual de Meio Ambiente (Consema) aprovou a recategorização da UC. A ideia era adotar uma modalidade de proteção mais branda, atendendo aos apelos dos pequenos produtores locais, que alegam temer pela desapropriação das terras. A recategorização não foi adiante.
José Siqueira acredita que a possibilidade de revogação ou recategorização não deve ser cogitada, devido à urgência de cuidados com a Caatinga. “O governo tem que fazer a sua escolha. Proteger as espécies endêmicas ameaçadas de extinção, prestar uma contribuição para combater as mudanças climáticas de forma clara e inteligente, mobilizar e viabilizar economicamente as comunidades e alertar aos gestores municipais sobre a importância deles aplicarem o ICMS socioambiental”, conclui.
Imagem do banner: Paisagem do Refugio de Vida Silvestre Tatu-Bola, no sertão de Pernambuco. Foto: Adriano Alves/Mongabay