De acordo com um novo estudo, 91,6% das comunidades de mamíferos terrestres da Caatinga perderão espécies até 2060, com 87% delas perdendo habitat caso a temperatura na região aumente 2 °C.
Mamíferos de pequeno porte serão os mais prejudicados, e algumas espécies poderão desaparecer do bioma, como o tamanduá-bandeira e o tatu-canastra.
Além do aumento da seca e da temperatura na região, o desmatamento decorrente da instalação de parques eólicos também ameaça algumas espécies, como a onça-pintada.
Os mesmos pesquisadores, em outro estudo, já haviam alertado 99% das comunidades de plantas da Caatinga perderão espécies até 2060.
Mesmo se tudo correr bem e as metas estabelecidas pelo Acordo de Paris forem cumpridas, as temperaturas médias devem aumentar 2,7 °C no norte da América do Sul até 2060, com aumento de 21 dias consecutivos sem chuva na estação seca. Isso trará, como era de se esperar, consequências drásticas para o clima e os seres vivos de todos os biomas do planeta. Para a Caatinga, por exemplo, que ocupa 850 mil quilômetros quadrados no Nordeste brasileiro, elas poderão ser catastróficas.
Um estudo realizado por pesquisadores das universidades Estadual de Campinas (Unicamp) e federais de Minas Gerais (UFMG) e da Paraíba (UFPB), publicado recentemente na revista científica Global Change Biology, prevê que 91,6% das comunidades de mamíferos terrestres do bioma perderão espécies, com 87% delas perdendo habitat até 2060. Os mais prejudicados serão os de pequeno porte – como a cuíca (Gracilinanus agilis) e o gambá-de-orelha-branca (Didelphis albiventris) –, que constituem 54% das espécies de mamíferos da Caatinga.
Para realizar o estudo, os pesquisadores se basearam nas previsões do Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas (IPCC, na sigla em inglês). Segundo o biólogo Mário Ribeiro de Moura, pesquisador do Instituto de Biologia (IB) da Unicamp, coordenador do trabalho, as alterações climáticas induzidas pela humanidade intensificaram os impactos negativos sobre os fatores socioeconômicos, o ambiente e a biodiversidade, incluindo mudanças nos padrões de precipitação e um aumento nas temperaturas médias globais.
“As zonas áridas estão particularmente em risco, com projeções sugerindo que se tornarão mais quentes, mais secas e menos adequadas para uma parte significativa das suas espécies, levando potencialmente à defaunação dos mamíferos”, explica Moura.
Para o também biólogo Mathias Mistretta Pires, colega de Moura na Unicamp, o principal resultado do trabalho foi constatar que as regiões mais secas do país, especialmente o semiárido do Nordeste, devem perder cada vez mais espécies de mamíferos — sobretudo os de pequeno porte. “Aquelas com área de ocorrência mais restrita, como alguns roedores, devem se tornar cada vez mais raras e somente umas poucas mais resistentes ao clima seco, como algumas de tatus, devem conseguir manter sua distribuição”, diz. “De maneira geral, a região estudada passará a ter faunas mais pobres em espécies e funções.”
Moura conta que o estudo foi feito por meio da revisão de 40 mil ocorrências de 93 espécies de mamíferos não voadores. “Após a curadoria dos dados, restaram cerca de 12 mil registros verificados”, revela. “Usamos os registros de ocorrência para construir modelos de nicho ecológico e entender como os mamíferos da Caatinga poderão responder às mudanças climáticas.”
De acordo com ele, a integração de informações sobre clima e biodiversidade com métodos de ciência de dados torna possível modelar como as espécies respondem às variações ambientais. Após construir os modelos, é possível alimentá-los com projeções do clima futuro e mapear a distribuição geográfica esperada para as espécies. Ao comparar os resultados obtidos entre o presente e futuro, é possível antecipar as mudanças esperadas para cada uma delas.
Além das mudanças climáticas, parques eólicos também são ameaça
Segundo o estudo, haverá uma homogeneização em 70% das comunidades de mamíferos, com a sobrevivência de apenas poucas espécies generalistas — que têm dieta e habitat diversificados —, substituindo as mais raras e especialistas, que vivem em apenas um determinado habitat e possuem uma dieta mais restrita.
A consequência dessa substituição será a perda de funções ecológicas, como dispersão de sementes. Todo o ecossistema se tornará menos resiliente. “As espécies de pequeno porte serão as mais prejudicadas e perderão a maior parte dos seus habitats adequados, especialmente nas terras altas”, diz Moura. “O cenário é ainda pior na metade oriental da Caatinga, onde a destruição de habitat já prevalece, agravando as ameaças enfrentadas pelos animais naquela região.”
Com base nos dados do IPCC, que define trajetórias futuras para o clima do planeta, os pesquisadores traçaram dois cenários para a Caatinga até 2060. “O otimista é normalmente um cenário conforme o Acordo de Paris, em que o planeta fica 1,6 °C mais quente”, explica Moura. “Mas, no nosso estudo, ele prevê que a Terra atinja até 2 graus de aquecimento [quando comparado com o clima pré-Revolução Industrial]. “Nosso cenário pessimista visualiza um aquecimento de 5 graus.”
Moura conta que, no cenário otimista que traçaram, 87% das espécies de mamíferos perderão, até 2060, áreas que são hoje climaticamente adequadas para a ocorrência delas. Doze delas poderão ser extintas na Caatinga, algumas icônicas como o tamanduá-bandeira (Myrmecophaga tridactyla), o tatu-canastra (Priodontes maximus), o bugio-preto (Alouatta caraya) e o macaco-prego-dourado (Sapajus flavius). “Ou seja, elas perderão 100% das áreas climaticamente adequadas até 2060”, afirma. “No cenário pessimista, esse número sobe para 28 espécies.”
Existem ainda aquelas, que, além das mudanças climáticas, enfrentam outras ameaças. É o caso das onças, tanto a parda (Puma concolor) como a pintada (Panthera onca). Essas espécies, como todas as outras, enfrentam a falta de políticas públicas destinadas à preservação da Caatinga – menos de 10% do bioma se encontram protegidos por Unidades de Conservação – e, ao mesmo tempo, o avanço dos parques eólicos para a geração de energia. É neste bioma que estão 90% desses complexos do país, segundo a Associação Brasileira de Energia Eólica.
Estima-se que vivam apenas 250 onças-pintadas e 2.500 onças-pardas em toda a Caatinga, com maior concentração entre o norte da Bahia e o sul do Piauí, na região da Serra da Capivara. Desse total, 30 pintadas estão na região do Boqueirão da Onça, no norte baiano – região em que, para azar delas, estão instalados quatro complexos eólicos, um dos quais com 500 torres.
A construção desses parques eólicos implica o corte da vegetação nativa, que pode secar nascentes próximas e alterar o escoamento natural da água da chuva. Como consequência, as onças precisam percorrer maiores distâncias em busca de água e alimento, o que as leva a se aproximar de propriedades rurais, onde costumam abater cabras e bodes; fazendeiros, em defesa de suas criações, terminam por matá-las.
Plantas da Caatinga também vão desaparecer
Antes desse trabalho sobre os mamíferos, o mesmo grupo de pesquisadores realizou anteriormente um estudo inédito sobre as ameaças às plantas da Caatinga. Eles analisaram 420 mil registros de ocorrência de 3.060 espécies do bioma e concluíram que 99% das comunidades vegetais devem perder espécies até 2060.
Mesmo sendo um bioma com plantas teoricamente adaptadas a climas extremos, os pesquisadores identificaram que a Caatinga é muito mais vulnerável às mudanças climáticas do que se imaginava. “No geral, com as mudanças climáticas, espécies arbóreas e raras serão substituídas por outras não arbóreas e generalistas, ou seja, capazes de ocorrer em várias regiões do bioma”, explica Moura. “Esse tipo de mudança na estrutura da vegetação pode causar uma diminuição de serviços ecossistêmicos, como produção de biomassa vegetal e armazenamento de carbono.”
De acordo com ele, a modelagem ambiental, auxiliada por métodos estatísticos e de inteligência artificial, oferece “soluções inteligentes” para antecipar o futuro da biodiversidade da Caatinga. “Aqui, existe uma oportunidade única para reverter décadas de degradação ambiental e promover a resiliência do sertão”, diz o biólogo. “A mitigação dos impactos das mudanças climáticas requer uma reavaliação das nossas relações com o meio ambiente.”
Nesse contexto, acrescenta, é imperativo que governos, sociedade civil, empresas do setor privado e organizações multilaterais colaborem para desenvolver e priorizar iniciativas de restauração ambiental. “As vantagens da regulação climática estendem-se muito além da simples saúde dos ecossistemas, abrangendo também a criação de empregos, melhorias na segurança alimentar, e no bem-estar social das populações humanas”, assegura.
Imagem do banner: Cuíca (Gracilinanus agilis), espécie da Caatinga que pode ver sua população reduzir nos próximos anos. Foto: Gionorossi, CC BY-SA 4.0, via Wikimedia Commons